Rio

Jailson de Souza e Silva, o pensador que tenta reinventar a periferia

Um dos fundadores do Observatório de Favelas, na Maré, o geógrafo, educador e ativista social acumula publicações e projetos na busca pela construção de um novo olhar sobre as comunidades populares

Jailson na sede do Observatório, na Maré: a organização civil, criada em 2001, tem hoje cerca de 350 alunos em projetos de pesquisa, arte, comunicação, políticas urbanas e outras áreas
Foto: Leo Martins / O Globo
Jailson na sede do Observatório, na Maré: a organização civil, criada em 2001, tem hoje cerca de 350 alunos em projetos de pesquisa, arte, comunicação, políticas urbanas e outras áreas Foto: Leo Martins / O Globo

RIO — Homem de sorriso fácil, Jailson de Souza e Silva não se sentiu à vontade com o pedido para estampá-lo algumas vezes na tarde da última quarta-feira. Enquanto posava para as fotos desta matéria na entrada do Observatório de Favelas, organização civil que criou com o amigo Jorge Barbosa na Maré em 2001, Jailson ponderou que o momento da comunidade não é de muitos sorrisos. Pouco mais de uma semana após a morte de dez pessoas numa incursão do Bope na Favela Nova Holanda, parte do Complexo da Maré, o geógrafo, educador e ativista social de 53 anos tentava, novamente, digerir um episódio violento no lugar onde deixou de morar em 1995 para fugir da guerra cotidiana. Na época, ele foi com a família para Niterói, mas a ligação com a Maré ficou: com a criação do Observatório e a proposta de interferir nas políticas públicas voltadas para a periferia, Jailson passou a ajudar o conjunto de favelas espremido entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha a escrever a própria história e a ter mais voz na cidade.

História que se confunde com a própria trajetória de Jailson. Filho caçula de migrantes nordestinos e nascido numa comunidade em Brás de Pina onde viveu 11 anos sem água encanada, ele teve uma infância marcada por brigas na rua. A violência só ficava de lado quando lia. Por três vezes na entrevista, Jailson se disse salvo pela literatura. Hoje, sem religião e agnóstico, ele conta que começou a militar aos 13 anos na Igreja Católica, onde deixou de brigar de vez, descobriu o poder da fala e começou a pensar na questão da desigualdade. Trabalhando dez horas por dia como entregador, prestou o vestibular de geografia na UFRJ. Para infelicidade de seu pai, que era militar e achava que o curso era coisa de comunista, Jailson passou.

Perseguição na universidade

Já na faculdade, um belo dia, ele se deparou com a metafísica. Uma colega de turma discutia o conceito de que ele nem sequer tinha ouvido falar. Mas o estudo do ser enquanto ser, a tal metafísica, não o afastou da vida acadêmica: Jailson chegou ao doutorado, concluído em Sociologia da Educação pela PUC-Rio. Difícil mesmo na faculdade foi enfrentar o preconceito escancarado da professora da disciplina Didática de Geografia, que ele, aliás, ministra desde 1992 como professor da UFF.

— Ela dizia que eu era negro, suburbano e comunista, porque eu era do centro acadêmico. Até pediu minha expulsão, alegando que eu não tinha postura para ser professor. No dia da minha apresentação sobre um livro, ela me botou na frente da turma, virou para o meu melhor amigo e perguntou: “você não acha que ele me ofendeu muito?”. Tentei falar e ela só me mandava calar a boca. Enquanto ela reclamava, comecei a escrever no quadro: “você é autoritária, grosseira, arrogante, mal-educada.” A galera aterrorizada. Ela leu, olhou para mim, para a turma e disse: “tenho certeza que todos vocês pensam isso. Pelo menos ele tem coragem de falar. Dez para ele, zero para vocês”. Ficou alucinada. Ali aprendi que você tem mais vantagens se rebelando contra situações injustas do que se conformando. Essa história marca minha vida. Precisei trabalhar essa raiva por anos.

A dificuldade enfrentada por alunos de origem popular para se manter na universidade ganhou a atenção do Observatório num de seus primeiros projetos, o Conexões de Saberes. Criada em 2002, a proposta era dar uma ajuda financeira a esses estudantes, que, por sua vez, produziriam pesquisa sobre seus lugares de origem. Começava a se tornar clara uma das principais frentes de atuação do Observatório: a formação e a pesquisa. Seis anos depois, o programa se tornou política pública e foi assumido pelo Ministério da Educação. Antes disso, o Observatório conseguiu ter dois mil bolsistas em 33 universidades. Mais recentemente, sua Escola Popular de Comunicação Crítica começou a capacitar jovens nas áreas de audiovisual, cultura digital e publicidade afirmativa. Em todos os seus projetos, hoje, o Observatório tem cerca de 350 alunos.

— Há muitos intelectuais da favela falando pela favela atualmente. Não são mais apenas os setores médios nesse papel. Sou um intelectual da periferia e me orgulho disso, como me orgulho do meu nome. Jailson é típico do migrante nordestino. Souza e Silva é o que tem de mais comum no Brasil. Mas detesto esse papo de que sou um cara legal, um herói. Esse foi o jeito que achei para dar significado à minha vida — diz Jailson, pai de três filhos, que diz ter como únicos luxos o gosto por boas cervejas e mochilas de couro. — Buscamos mudar a representação da favela, sempre caracterizada por suas precariedades. Afirmamos que ela tem potência, criatividade. A favela é cidade, não é problema. Nossa utopia pragmática é construir uma cidade onde as pessoas se reconheçam nas suas diferenças e na busca por igualdade.

Parte fundamental dessa busca para Jailson é garantir que a segurança pública se torne um direito dos moradores das comunidades. Nesse sentido, um projeto recente do Observatório e de organizações parceiras começou a orientar os moradores da Maré a não aceitar, por exemplo, a entrada da polícia em suas casas sem mandado legal. A ação ajuda a preparar o terreno para o processo de implantação de UPPs na Maré, anunciado para março deste ano, mas ainda não iniciado. Jailson lamenta que, na noite da operação do Bope, casas tenham sido invadidas pelos agentes. Uma delas foi a de Rodrigo, seu filho de criação, de 32 anos.

— Entraram perguntando se ele escondia drogas e dinheiro, onde tinha conseguido o relógio bonito, o celular bacana. Disseram que ele era ladrão. Botaram muito terror. Ser jovem e negro na favela é isso. Às vezes, dizem que a gente defende bandido, mas nossa preocupação é com os moradores — afirma Jailson, que já sofreu ameaças do tráfico de outras favelas, de milícias e de policiais. — Pensando na UPP, acho que é um grande avanço em relação à lógica da guerra de extermínio. O problema é que continua a lógica da ocupação policial. As regras deveriam chegar pela prefeitura, como no resto do Rio, não pela polícia. O que o comandante da UPP tem a ver com mototáxi, alvará ou baile funk? Isso é uma violência com a própria polícia. O estado não pode transferir para ela a responsabilidade de organizar o território. A UPP que queremos é uma Unidade de Política Pública. Queremos que o Estado deixe de ser partido e tenha políticas iguais na cidade toda.

A noção de Estado partido, em contraponto à de “Cidade partida”, título de um emblemático livro do jornalista Zuenir Ventura, é para Jailson mais próxima à realidade da periferia. No livro “O novo carioca”, escrito com Jorge Barbosa e Marcus Vinicíus Faustini, Jailson incluiu uma carta para Zuenir, explicando por que vê o Estado como um elemento partido.

— Passei dez meses frequentando Vigário Geral para escrever o livro, mas claro que tenho o maior respeito pela visão de dentro. Meu olhar era de estranhamento. Jailson é personagem da Maré. Sou testemunha. Tenho admiração pelo trabalho dele. São essas ações na periferia que unem a cidade partida — diz Zuenir.

Projeto ambicioso para 2018

Cineasta e diretor teatral, Faustini acredita que uma das principais contribuições do ativista seja teórica:

— O Jailson é o primeiro teórico com a visão de que a favela não é um mero espaço, mas um lugar de sujeitos desejantes. Ele influencia ativistas, artistas e outros teóricos com isso. Em seu livro de conclusão do doutorado, ele mostra o quanto o sistema educacional considera apenas o desejo da classe média.

No que depender de Jailson, o próximo e mais ambicioso projeto do Observatório poderá subverter as lógicas desse sistema. Em 2018, ele espera ver funcionando o Centro Universitário da Maré, uma instituição pública, mas não estatal, inicialmente, com oito cursos de graduação. Para ele, o desafio será desenvolver metodologias de ensino inovadoras. O plano é obter o registro no MEC em 2017, ano da (teórica) aposentadoria de Jailson.

— Quando eu me aposentar, espero só cuidar disso na vida. Já imaginou um campus na Maré?