Rio

Do amor no Rio ao inferno da violência: o casal vítima na van

Casal de estrangeiros atacados pretendia ficar até julho na cidade, pela qual havia se encantado

Liberdade. No Facebook, a foto em que a vítima expressava seu amor pelo pôr do sol na Praia do Arpoador: “Lugar assim de lindo não existe”
Foto: Reprodução
Liberdade. No Facebook, a foto em que a vítima expressava seu amor pelo pôr do sol na Praia do Arpoador: “Lugar assim de lindo não existe” Foto: Reprodução

RIO - A cor de pele já curtida do sol da Praia do Arpoador e o português fluindo fácil, apesar de estar há apenas sete meses no Rio, fez da jovem de 21 anos, uma bela estudante de Relações Internacionais, uma autêntica carioca. Na verdade, a morena é americana. O namorado dela é um francês de olhos azuis, de 22, que também aprendeu rápido o idioma. Para tirar as dúvidas em português, consultava um dicionário da língua daqui para o espanhol, que ele já domina. O destino dos dois se cruzou no Rio, durante um intercâmbio numa universidade carioca, no ano passado. Para o namoro foi um pulo. Cheios de sonhos, ambos pretendiam ficar até julho no Brasil, quando ela terminaria o curso, mas a van do terror passou no caminho deles.

Na madrugada do último dia 30, o casal ficou quase seis horas em poder de uma quadrilha, sendo torturados física e psicologicamente, depois de pegarem uma van, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A jovem foi estuprada seguidas vezes por três homens e um adolescente. O francês, na tentativa de defendê-la, foi atacado com uma barra de ferro. A jovem, em estado de choque, embarcou no dia seguinte de volta aos Estados Unidos. O namorado, que chora a todo instante, só aguarda o momento de identificar o quarto bandido que os atacou para deixar o país. Ele ainda não consegue falar do assunto. As marcas são mais profundas do que o olho direito roxo do francês ou o nariz quebrado da americana, sem contar a violência sexual. O encanto pelo Brasil acabou, mas não a união dos dois, garante ele, que, ao depor na delegacia, ficou o tempo todo abraçado à namorada.

Rio: um lugar muito especial

Antes da tragédia, o Rio era um lugar especial para o casal. Com a finalidade de fazer um intercâmbio na área de administração, o francês chegou no dia 31 de julho do ano passado. A jovem desembarcou dois dias depois. Cada um alugou um apartamento na Zona Sul, dividindo o tempo entre o curso e a praia. O rapaz é surfista, enquanto a garota, como a maioria das jovens de sua idade, adora pegar sol.

Aproveitando a condição de turista, em janeiro deste ano, o francês visitou o Complexo do Alemão com mais dois amigos estrangeiros, chegando a postar no Facebook imagens do teleférico e da vista espetacular da Baía da Guanabara e da favela. Não fugiu do roteiro tradicional: deu uma parada no Cristo para apreciar a vista do Rio, mas também engrossou as fileiras do carnaval de rua, muito à vontade, sem camisa e com direito a colar havaiano pendurado no pescoço. Sempre rodeado de amigos gringos como ele e brasileiros. Seu ídolo é o jogador espanhol Andrés Iniesta.

Já para a americana, o Rio era uma espécie de paraíso. O ponto alto era o pôr do sol na Praia do Arpoador, que sempre a encantava, e a Pedra da Gávea: “As pessoas acham que um lugar assim de lindo não existe” (sic), postou ela na sua página de relacionamentos, em 19 de novembro do ano passado. Naquele mesmo dia, ela desabafou, na língua pátria, que não precisava de mágica para desaparecer, só um destino. Certamente, referia-se à liberdade por estar no Brasil. Viajar pelo mundo é uma de suas paixões. Ela também fez uma foto com a árvore de Natal da Lagoa ao fundo, no ano passado. Eleitora de Barack Obama, ela tinha um adesivo com o nome do primeiro presidente negro dos EUA no celular que foi roubado.

‘Não, por favor, não façam isso comigo’

O destino era a casa de show Rio Scenarium, na Lapa. O casal de turistas estrangeiros não esperou nem cinco minutos na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, esquina com a Rua Miguel Lemos, para embarcar numa van de vidros com película escura, à 0h50m. Dentro dela, o motorista Jonathan Froudakis de Souza, de 19 anos, e o cobrador, um adolescente de 14. Mais adiante, cinco jovens entraram no veículo. Mas foi quando Walace Aparecido Souza Silva, de 21, pegou a van que o francês e a americana perceberam que algo de errado iria acontecer. O motorista, em nenhum momento, esboçou surpresa quando o último passageiro anunciou o assalto.

Sob o comando de Walace, que simulava estar armado, o cobrador, com desenvoltura, retirou dinheiro e celulares de todos os passageiros. Antes de subir o Elevado da Perimetral, o carro parou e o assaltante determinou que as cinco passageiras saíssem da van, mas que o casal permanecesse. Começava ali a viagem do terror até São Gonçalo.

Jonathan algemou o turista francês e o pôs no banco traseiro. Segundo a americana, Walace assumiu o volante e mandou o adolescente bater no rapaz com uma barra de ferro de 40 centímetros. Indefesa, a jovem implorou que eles parassem com a violência, mas Jonathan lhe deu dois socos, quebrando-lhe o nariz. Em seguida, ele mandou que ela tirasse a roupa, apesar dos apelos dela: “Não, por favor, não façam isso comigo”. Ele próprio confessou a agressão e a série de estupros, com a van em movimento. À frente, mais um integrante da quadrilha entrou na van, reconhecido pelos estrangeiros como Carlos Armando Costa dos Santos.

O grupo parou em vários postos de gasolina com caixas eletrônicos para fazer saques, inclusive voltando a Copacabana para que a jovem pegasse um outro cartão de crédito no apartamento dela, enquanto o namorado era mantido como refém. Em lojas de conveniência, compraram bebidas importadas. Além dos celulares e um relógio, levaram um total de R$ 1.200. Ao fim do trajeto, depois de seis horas de terror, o casal de turistas, em estado de choque, foi deixado perto de uma favela de São Gonçalo, local que desconheciam. Carlos Armando deu R$ 20 a eles e mandou que andassem devagar, sem olhar para trás. Quando chegou em casa, a americana só queria duas coisas: tomar um banho e voltar para seu país, onde chegou a ficar internada.

Denúncia será feita amanhã: ‘Eles saíram das sombras’

A promotora da 32ª Vara Criminal Márcia Colonese irá entregar a denúncia contra os quatro bandidos que atacaram o casal de turistas amanhã. Eles devem responder por sequestro-relâmpago, cinco estupros como crime continuado — outras quatro jovens já registraram queixa contra o bando —, roubo, formação de quadrilha e corrupção de menor. Se condenados, eles podem pegar pena de até 60 anos, embora, pela legislação brasileira, não se cumpram mais do que 30 anos de prisão.

— Estou confiante de que daremos uma resposta à altura para a sociedade por toda essa monstruosidade que eles praticaram. Não podemos dar mais detalhes, pois o processo é sigiloso, mas a rapidez com que a Delegacia Especial de Apoio ao Turismo (Deat) investigou o caso foi fundamental. Em praticamente uma semana, a quadrilha foi identificada e a denúncia já está saindo — disse a promotora.

O que chama a atenção no crime contra os turistas foi o fato de que algumas vítimas de estupro e assalto não procuraram a delegacia para registrar. Nenhum dos acusados tinha antecedentes criminais. A quadrilha, segundo uma das vítimas, teria um quinto integrante, que não foi identificado.

— Eles nunca tinham sido presos antes, e muita gente não registrou na delegacia. Eles ficavam impunes, fazendo novas vítimas. Após a divulgação das fotos deles, as vítimas de estupro e roubo começaram a aparecer. Eles saíram das sombras — ressaltou Márcia.

O titular da Deat, Alexandre Braga, recomenda que as pessoas procurem a delegacia a fim de evitar a subnotificação dos casos.