Rio

Rotina de dor e luta após dois anos do massacre de Realengo

Famílias das crianças mortas se unem para mudar segurança nas escolas

Adriana Maria da Silveira, mãe de Luiza Paula, mantém fotos e um quadro da filha na sala de sua casa
Foto: Custódio Coimbra / O Globo
Adriana Maria da Silveira, mãe de Luiza Paula, mantém fotos e um quadro da filha na sala de sua casa Foto: Custódio Coimbra / O Globo

RIO - Ao acordar cedo e não ajudar a filha a se aprontar para escola. Na hora do almoço, em que prepara um prato a menos. A árvore de Natal que não é mais montada. O Dia das Mães que se tornou uma data triste... Tudo no cotidiano de Adriana Maria da Silveira, de 42 anos, faz ela lembrar a filha Luiza Paula da Silveira Machado. Neste domingo, completam dois anos que a menina, aos 14 anos, foi uma das 12 vítimas do assassino Wellington de Oliveira, que atirou contra as crianças da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, e deixou o país de luto com a estupidez do crime. Desde aquele 7 de abril de 2011, Adriana revive diariamente a dor da tragédia. E não adianta dizer a ela que o tempo vai consolá-la. Na verdade, ela não consegue nem quer esquecer o que aconteceu. E atualmente passa por cima do sofrimento para presidir a Associação de Familiares e Amigos dos Anjos de Realengo.

Com o lema “lembrar é reagir, esquecer é permitir”, o grupe reúne as famílias dos mortos no massacre. E embora muitos deles ainda convivam com a depressão e o desalento da perda, encontraram forças juntos para buscar providências em relação à segurança nas escolas e o combate ao bullying, que teria motivado o assassino a entrar na em sua antiga escola e cometer a barbaridade.

— É mentira que o tempo vai aliviar a dor. Outro dia falei para meu filho mais velho, de 18 anos, que morri junto com a Luiza, e vou ter que ressuscitar por ele. Estamos reaprendendo a viver. E nos reunimos para que o sangue de nossas crianças não tenha sido derramado em vão. Nem nos conhecíamos antes. Mas nos tornamos uma grande família. Temos servido de muleta uns para os outros. Quando um cai, o outra ajuda a levantar. Temos altos e baixos. Tem dia que levantamos da cama, tem outros que nem conseguimos. Mas costumo dizer: trocamos o luto pela luta. Lutamos a cada dia para estarmos de pé. E também para que aconteçam mudanças nas escolas — afirma Adriana.

Entre as reivindicações da associação estão a permanência de psicólogos nos colégios, a criação de uma linha telefônica gratuita para denúncias de bullying, a transformação do 7 de abril num dia em lembrança das crianças da Tasso da Silveira e do desarmamento, além da construção de um memorial às vítimas do massacre. Esses pedidos serão reunidos numa carta, que será entregue à prefeitura do Rio e à Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). E também serão lembrados neste domingo, numa programação em Realengo para marcar os dois anos da tragédia.

Protestos em Realengo vão lembrar os dois anos da tragédia

A partir das 9h, será celebrada uma missa na Igreja Nossa Senhora de Fátima João de Deus, quando serão arrecadados alimentos para vítimas das enchentes de Petrópolis e trocadas armas de brinquedo por brinquedos educativos. Em seguida, acontece uma caminhada até a Tasso da Silveira, onde será feito um grafite no muro da escola. Às 15h, acontece uma carreata pelas ruas do bairro em defesa do desarmamento. E depois será exibido o documentário “Armados”, na Igreja Presbiteriana do bairro.

Na programação, os participantes vão usar fitas verdes, representando a esperança, o desejo de mudança. E camisetas com as fotos das vítimas, que os pais dizem estar cada vez mais presentes em suas vidas. Na sala da casa de Adriana, por exemplo, um quadro e porta-retratos têm muitas fotos de Luiza Paula. No peito, ela carrega uma medalha com a imagem da menina impressa numa concha do mar. E no braço, tatuou o nome da filha. Tatuagens, aliás, que vários familiares fizeram em homenagens às vítimas do massacre.

Maria Suely Guedes Pereira, de 46 anos, sempre foi contrária às tatuagens. Mas não hesitou em deixar o nome da filha Géssica Guedes, outra das crianças mortas na Tasso da Silveira, gravado no braço. Maria Suely faz questão de lembrar a filha brincalhona. E recorda sempre os dias anteriores ao massacre. Naquela semana, a menina havia preparado um bolo para comer com a família, dormiu na cama com a mãe na noite anterior ao ataque e deixou como última mensagem na rede social Orkut a inscrição “quando a dor não cabe dentro do peito, transborda pelos olhos”.

Dor que transparece claramente nos olhos da irmã mais velha da menina, Kelly Cristina de Oliveira, de 26 anos. Até hoje, ela precisa frequentar psicólogos, embora afirme que atenção especial dada aos parentes das vítimas após a tragédia esmoreceu e quase não exista mais. Desde a morte de Géssica, ela nunca mais subiu ao segundo andar da casa da mãe, onde ficava o quarto da irmã. E conta que, a cada novo caso de violência a que assiste na TV, como a morte do menino João Felipe Bichara, assassinado por uma manicure mês passado em Barra do Piraí, revive a tragédia como se estivesse acontecendo tudo de novo. E um dos maiores traumas de Kelly vem à tona quando ouve tiros.

— Moro numa comunidade. Cresci vendo armas. Mas desde que aconteceu a tragédia, aumentou meu medo quando ouço tiros. Parece que toda minha família vai ser morta. Naquele dia, não ouvi os tiros. Mas é como se tivesse vivido tudo dentro da escola, junto com minha irmã, e não pude salvá-la. A tristeza aumenta ainda mais a cada quinta-feira, a cada diz 7 e a todo mês de abril, que para mim nem devia existir mais no calendário — diz Kelly.

Além de Luiza Paula e Géssica, também foram vítimas do massacre Igor da Silva, Karine Lorraine de Oliveira, Larissa dos Santos Atanázio, Laryssa Martins, Mariana de Souza, Milena dos Santos, Rafael da Silva e Samira Ribeiro.

Estudantes tentam retomar a rotina

No bairro de Realengo, as feridas do massacre na Tasso da Silveira permanecem abertas. Pelo menos em sua estrutura física, a escola lembra pouco a que vivenciou a tragédia: a fachada foi mudada, a sala de aula onde ocorreram as mortes teve as paredes demolidas, e guardas municipais vigiam a entrada e saída de alunos. Mas os estudantes que estavam no colégio quando os tiros ressoaram pelos corredores continuam tentando superar os traumas.

É o caso de Débora Caroline de Andrade, hoje com 13 anos, do 9º ano do Ensino Fundamental. Embora tenha perdido a prima Larissa, a estudante decidiu continuar na Tasso da Silveira, apesar de sua mãe ter tentado convencê-la a mudar de colégio.

— Queria continuar perto de minhas amigas. Hoje, estarmos aqui é uma vitória — diz a adolescente, que ainda recebeu a ajuda da irmã mais nova, de 10 anos, que mudou de escola e foi estudar na Tasso para apoiar Débora.

Casa da família de Wellington ficou estigmatizada

Perto dali, a casa em que o assassino Wellington de Oliveira morou com a família, na Rua do Cacau, também guarda marcas do sentimento que tomou conta do Rio após a tragédia. Logo depois do massacre, o imóvel foi posto à venda. Isso já faz um ano e meio. A placa de “vendo” continua lá. Abaixo dela, uma das tantas pichações que foram deixadas no muro persiste até hoje, com a palavra “covarde”.

Para muitos, continua o medo até de passar pela calçada em frente à casa. Em poucos minutos, na última quarta-feira, muitos pedestres preferiam ir para o meio da rua ou atravessavam a via ao se aproximarem da casa. Comportamento que Valcélia de Paula, uma das que atravessaram, explicou:

— Tenho um sentimento ruim, de medo. Ali na frente não passo. Atravesso a rua. E não sou só eu. É quase todo mundo. Sou vizinha de duas das vítimas. E morador daqui nunca vai esquecer.