Coluna
Mauro Ventura A coluna é publicada aos domingos na Revista O GLOBO

Dois cafés e a conta com Jonathan Caroba

O morador do Complexo da Maré que é exemplo de sucesso do Nave, escola pública eleita pela Microsoft uma das mais inovadoras do mundo

Jonathan Caroba, que passou em terceiro lugar em Jornalismo na Uerj: ex-aluno do Nave Foto: Mauro Ventura / Agência O Globo
Jonathan Caroba, que passou em terceiro lugar em Jornalismo na Uerj: ex-aluno do Nave - Mauro Ventura / Agência O Globo

RIO - No dia 14, o Colégio Estadual José Leite Lopes, mais conhecido como Nave (Núcleo Avançado em Educação), na Tijuca, foi reconhecido pela Microsoft como uma das 33 escolas mais inovadoras do mundo. É a única do Brasil na lista. Na cerimônia, um aluno arrancou uma ovação do público com sua apresentação. Morador da Maré, Jonathan Caroba, de 17 anos, é um dos casos de sucesso do Nave, parceria do Oi Futuro com a secretaria estadual de Educação que atrai por ano 5 mil candidatos para 160 vagas.

Dirigida por Ana Paula Bessa, a escola pública integral (das 7h às 17h) de ensino médio profissionalizante oferece três carreiras técnicas além do currículo regular: multimídia, programação de games e roteiro para novas mídias, curso escolhido por Jonathan, que passou agora em terceiro lugar em Jornalismo na Uerj, sem cursinho, e estagia no Nave, no Departamento de Mídiaeducação, gerido pelo planetapontocom, instituto que tem como missão produzir soluções inovadoras para a educação pública brasileira. A ideia do Nave é preparar o jovem não só para ser empregado, como também empreender.

Michel Levy, presidente da Microsoft Brasil, diz: “É emocionante quando vemos na prática a transformação da vida de um estudante a partir da inovação nos processos educacionais com o uso da tecnologia como meio. A história do Jonathan é um dos exemplos de como mudanças no processo de ensino e aprendizagem podem transformar a vida de alunos, que passam a contar com perspectivas de crescimento humano e profissionais ainda melhores. O projeto Nave é destaque mundial, pois vai além da capacitação profissional e prepara os jovens com competências de liderança, contribuindo para a formação de líderes contemporâneos.”

REVISTA O GLOBO: O Nave foi eleito uma das escolas mais criativas do mundo. Na cerimônia, você fez uma apresentação elogiadíssima...

JONATHAN CAROBA : O Nave faz com que os alunos sejam proativos. Tem muita prática. Fizemos blog, jornal online, games, roteiros, curtas. Mas usar o computador para ensinar não é novo, a didática é que faz a diferença. Na entrega do título, simulei uma conversa com uma versão minha no passado. Escrevi o roteiro num dia, a partir de uma ideia de Fernanda Sarmento ( coordenadora de projetos de educação e games do Oi Futuro ) e ensaiei com nosso professor de teatro, Carlos Marapod. No dia da cerimônia, eu estava sentado na plateia quando tocou meu celular num volume altíssimo, com uma música inconveniente. Todo mundo olhou para mim. Levantei-me, subi ao palco e disse que ia atender uma ligação importante. Quando falei alô surgiu um vídeo em que eu aparecia como se fosse três anos antes, entrando na escola. Há uma conversa entre os “dois”. No vídeo, falo das expectativas que tenho ao entrar na escola. Ao vivo, vou contando as realizações de lá para cá, como ter sido o primeiro da família a chegar à faculdade e estar estagiando.

De que forma seus pais estimularam seus estudos?

Quando você é da favela, tem inclinação a trabalhar cedo, constituir família, mas meus pais sempre me incentivaram a estudar. Minha mãe é doméstica, tem apenas o ensino fundamental. Meu pai era porteiro e hoje é auxiliar de produção em fábrica de salgados, nunca foi à escola, sabe ler e escrever por iniciativa própria. Mas eles sempre deram apoio psicológico: “Você tem a vida que nunca tive, tem uma visão de futuro que não tenho mais. Tem que aproveitar bem isso.” Minha mãe ia todo mês à escola saber como eu estava em sala de aula, conversava com os professores, não perdia uma reunião de pais. Olhava os cadernos para ver se tinha recado, acompanhava o boletim, procurava saber o que eu achava do colégio, cobrava notas altas.

Como é sua família?

Meus pais são casados há 19 anos. Sou filho único. Todos os meus amigos têm irmãos, mas minha mãe sempre quis um filho só, por questões econômicas. A estabilidade familiar me ajudou, mas existem outras pessoas daqui da Maré que não tiveram essa base e que conseguiram um espaço semelhante ao meu. Tenho uma amiga, caçula de quatro irmãos, cada um de um pai diferente, que perdeu a mãe aos 7 anos e só viu o pai duas vezes, e que está na universidade também.

As pessoas se surpreendem quando sabem de suas origens?

Poucos acreditam quando falo que moro no Complexo da Maré. Mas é questão de saber se colocar. Não usar gíria, se vestir de maneira adequada ao ambiente. Fiz entrevistas de estágio e se espantavam por eu ser da favela: “Você fala bem.” Na cerimônia da Microsoft, quando falei ao diretor de uma empresa que era da Maré ele levou um susto: “Faz muito tempo que não converso com alguém que mora na favela.” Mas as próprias pessoas da favela se autodiscriminam, têm vergonha de dizer onde moram e estudam. A sociedade faz com que se sintam inferiores. Lembro da primeira vez que fui à Academia Brasileira de Letras (ABL), com minha mãe e uma vizinha. Queria conhecer a biblioteca de lá. Minha vizinha não queria ir: “Não tenho roupa, as pessoas vão olhar para mim de modo estranho.“ Ela já tinha sido discriminada e tinha medo de se expor. Acabou que fomos tão bem recebidos que ela ficou maravilhada e chorou.

Como é a vida de um jovem na favela?

Se você nasce na favela, sua perspectiva de vida é outra. A visão de futuro é menos abrangente. O jovem fica muito focado no agora. Há poucas chances de educação, trabalho e cultura. Você acorda bem cedo, anda muito até o ponto de ônibus, pega condução lotada, às vezes dorme sob tiroteio. Algumas pessoas deveriam passar uma temporada na favela, para ver se valorizam as oportunidades que têm.

Qual o seu gosto musical?

Gosto de bossa nova e samba. Na verdade, só não ouço funk e rap. Mas na Maré ouve-se funk 24 horas por dia no volume máximo. Mas eu fico muito tempo fora, saio de casa às 7h e só volto às 19h, 20h, 20h30m. Quando estou na favela, fecho todas as portas e janelas e ouço Elis, Tom, Maria Rita.

Como você fazia para ter uma programação cultural?

Nunca tive mesada, somente depois que entrei no Nave. Eu estudava em Ciep anteriormente. Como só tinha internet discada em casa, procurava programas culturais no computador do colégio e sugeria aos professores, já que existem saídas pedagógicas oferecidas pelo governo aos colégios. Com isso, a escola nos levou à Bienal do Livro, a museus. Sempre gostei de teatro, exposição, cinema, leitura. Por iniciativa própria, vou a locais gratuitos ou baratos, como CCBB, Caixa Cultural, museus. Na biblioteca da Maré, li Machado de Assis, José de Alencar, os clássicos. A falta de dinheiro não pode servir de desculpa.

E-mail: mventura@oglobo.com.br

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