Rio

A Rocinha quer saber: onde está Amarildo?

Sumido ao ser levado para UPP, morador ganha R$ 300 por mês e vive em barraco de 1 só cômodo com família

Elizabete, mulher de Amarildo, com quatro dos seus seis filhos no barraco de um só cômodo onde a família mora na Rocinha: “Eles (policiais) acham que pobre também é burro” -
Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
Elizabete, mulher de Amarildo, com quatro dos seus seis filhos no barraco de um só cômodo onde a família mora na Rocinha: “Eles (policiais) acham que pobre também é burro” - Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

RIO - Eles não têm dúvida de que “o que fizeram com o Boi foi uma grande judiaria”. Assim, moradores, amigos e parentes descrevem o que teria acontecido ao carioca Amarildo de Souza, que está desaparecido desde a noite do último 14 de julho, quando foi levado “para verificação” por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha. Amarildo é ajudante de pedreiro, nascido e criado na comunidade. Em seus 42 anos de vida, nunca ultrapassou a linha de pobreza, vivendo sempre na localidade pouco conhecida de Pocinho, área dominada pelo tráfico, com esgoto a céu aberto e muitos casos de tuberculose. Pai de seis filhos, divide com a mulher, Elisabete, e a família um barraco de um só cômodo, sem banheiro, e os cerca de R$ 300 que ganha trabalhando numa obra em Copacabana.

— Ele mora em área de tráfico, como todo mundo aqui, mas não se chama Boi porque é bandido, mas porque é forte o suficiente para levar nos ombros os doentes desta parte do morro. Porque mototáxi não chega aonde a gente mora. Eu mesmo fui resgatado e salvo por ele quando caí de uma árvore e fiquei desacordado. Eu tinha 15 anos. Desde então, Boi me chama de Sete Vidas — lembra Carlos Marques, de 21 anos, que, como outros, já participou de protestos e buscas por Amarildo.

Preso na porta de birosca

A história que estarrece a família e joga suspeitas sobre os policiais da UPP começou um dia depois da Operação Paz Armada, que mobilizou 300 policiais com 58 mandados. O objetivo era prender os “ficha limpa”, suspeitos de tráfico que não têm passagem pela polícia. Entre os dias 13 e 14, 30 pessoas foram presas, 22 delas com base nos mandados. Segundo a polícia, as outras oito pessoas foram detidas em flagrante. Boi foi levado por volta de 20h do dia 14, um domingo, no meio do jogo Vasco e Flamengo, munido de documentos.

— Ele estava na porta da birosca, já indo para casa, quando os policiais chegaram. O Cara de Macaco (como é conhecido um dos policiais da UPP) meteu a mão no bolso dele. Ele reclamou e mostrou os documentos. O policial fingiu que ia checar pelo rádio, mas quase que imediatamente se virou para ele e disse que o Boi tinha que ir com eles. O Cara de Macaco conhecia o Boi e vivia implicando com ele e a família. Esse policial é ruim, gosta de humilhar os pobres daqui — contou um dos homens que acompanharam a batida policial na birosca.

Elizabete estava em casa, aguardando o marido para fritar o peixe que ele mesmo pescara domingo com o primo. Avisada sobre a detenção de Amarildo, ela correu até o posto de comando da UPP, que fica na Rua Dois, e ouviu as últimas palavras dele:

— Ele me olhou e disse que o policial estava com os documentos dele. Então eles disseram que já, já ele retornaria para casa e que não era para a gente esperar lá na sede do Parque Ecológico. Fomos para casa e esperamos a noite inteira. Depois, meu filho procurou o comandante, que disse que Amarildo já tinha sido liberado, mas que não dava para ver nas imagens das câmeras da UPP porque tinha ocorrido uma pane. Eles acham que pobre também é burro — disse Elizabete.

Devido a uma portaria da Chefia de Polícia Civil, casos de desaparecimento são investigados inicialmente pela delegacia da área, que, em 15 dias, deve entregar um relatório informando se há indícios de homicídio. Só então o caso é levado para a Delegacia de Homicídios. Assim, o caso de Amarildo foi registrado na 15ª DP (Gávea) no dia 16, terça-feira. Responsável pelo inquérito, o delegado Orlando Zaccone ouviu todos os policiais envolvidos, já tem a lista do GPS dos carros da UPP e tenta localizar Amarildo em imagens de outras câmeras. Também constatou uma contradição: os policiais envolvidos na prisão informaram que não conheciam Amarildo.

— Nós recebemos informações de que na verdade havia uma rixa entre um dos policiais e Amarildo. E que que esse policial já tinha inclusive prendido um filho dele. Amanhã (hoje) temos um encontro com a família e amigos do ajudante na Comissão de Direitos Humanos da Alerj. O objetivo é conseguir a confiança deles, para que ajudem com informações. Nosso interesse é esclarecer esse caso. Preciso ter informações mais precisas e formalizar algumas denúncias, até mesmo para realizar buscas nas matas — informou Zaccone.

Como credencial para pedir a confiança da família, o delegado lembra a investigação de um caso ocorrido no Morro do Borel: ele indiciou cinco policiais do 6º BPM (Tijuca) pela execução na favela de quatro inocentes, em 17 de abril de 2003. Entre as vítimas, estava Carlos Magno Oliveira Nascimento, de 18 anos, que estudava na Suíça e fora ao Borel visitar a avó.

Protestos fecharam autoestrada

Inconformados com o desaparecimento de Amarildo, moradores da Rocinha já fizeram pelo menos três protestos. Em dois deles, fecharam a Autoestrada Lagoa-Barra. Também organizaram buscas para tentar localizar o corpo ou pistas que possam levar ao esclarecimento do caso. Na última quinta-feira, um grupo encontrou uma enxada numa área próxima à sede do Parque Ecológico, junto a um monte de terra revolvida.

— A gente localizou o dono da enxada, que contou que ela tinha sido levada da casa dele, na segunda-feira, dia seguinte ao da prisão, por policiais da UPP. Pode não ter nada a ver, mas pode ser uma importante pista. Só que precisamos de cães farejadores. Precisamos dos guardas florestais. Mas isso a polícia não manda para cá — reclamou Rogério Vilas Boas, que participou das buscas juntamente com William Roberts, um dos primos de Amarildo.

O ajudante de pedreiro tem duas passagens pela polícia: uma por furto, em 1989, quando tinha 18 anos, e outra por ter sido flagrado trabalhando como flanelinha, em 2005. Segundo Elizabete, trabalhando agora com carteira assinada, seu marido estava prestes a realizar um sonho:

— Ele estava comprando material para construir o segundo andar da nossa casa. Os tijolos estão ali, no telhado.

No sábado passado, o tenente-coronel Paulo Henrique de Moraes, coordenador de Polícia Pacificadora, informou que os quatro policiais que levaram o pedreiro Amarildo até a UPP “antes de ele ser liberado” estão afastados e farão curso de reciclagem. Os quatro são soldados recém-saídos do Centro de Formação de Praças. Contra eles, há outras acusações de moradores, que se queixam de abuso de autoridade e truculência.

O comandante informou também que vai analisar o rastreador instalado em todos os carros da UPP da Rocinha, para verificar por onde os PMs passaram. Segundo testemunhas, no dia em que levaram Amarildo, havia dois veículos do Bope dando cobertura às operações. Esses carros, no entanto, não contam com GPS. Procurada, a PM informou que não daria, no momento, mais declarações sobre o assunto.