Opinião

Os sonhos da mulher saudita

Os fundamentalistas sauditas, como os do Brasil, têm uma força muito além de sua minoria, aos berros tentam apavorar e calar a população

Fui ver o filme saudita “O sonho de Wadjda”, na semana passada, aqui em Brasília, e saí do filme com esperança de que há um jeito para a situação precária das mulheres vir a melhorar, e muito.

Da diretora Haifa al-Mansour, o filme é sobre o sonho de uma menina de 12 anos, chamada Wadjda, de um dia conseguir bastante dinheiro para comprar uma bicicleta que ela viu numa loja perto da sua escola. Em paralelo, mostra a vida da mãe dela que trabalha num lugar longe de casa, e que é refém de um motorista caprichoso (já que mulheres são proibidas de dirigir no reino), e de um marido que insiste que tem que ter um herdeiro homem, custe o que custar.

Este filme começou a ser exibido no Brasil ao mesmo tempo em que a Fundação do Rei Khaled lançou uma campanha de conscientização do abuso de mulheres na Arábia Saudita. Anúncios em jornais e na televisão mostraram o rosto de uma mulher saudita, coberta pela burca preta, com aberturas para os olhos, um normal o outro roxo, com o slogan: “O que está escondido é muito mais”, querendo dizer que as consequências psicológicas eram muito maiores do que os hematomas deixados na pele por causa do abuso.

Quase imediatamente surgiu uma discussão sobre o assunto, com muitos críticos apontando que junto com campanhas de conscientização a Arábia Saudita tinha que ter leis severas que protegessem mulheres e punissem homens que batessem em suas mulheres e crianças. A colunista Samar Fatany escreveu no “Saudi Gazette” que de acordo com o Programa Nacional de Segurança Familiar 65% do abuso doméstico são praticados por maridos, e que 88,5% dos sauditas sondados pelo programa disseram que vítimas de violência doméstica precisavam de mais proteção.

A campanha da Fundação do Rei Khaled tem uma página na internet com todos os telefones dos grupos de direitos humanos e dos abrigos para que mulheres abusadas possam ligar para pedir ajuda jurídica, e às vezes abrigo, se for necessário sair de casa. O problema, com isso, é que nada está amparado por lei. Legalmente, mulheres são tratadas como menores perante a lei, necessitando da permissão dos seus guardiões masculinos, geralmente do marido ou do pai, para viajar, estudar, sofrer uma cirurgia médica, e até para trabalhar fora de casa. E as mulheres que acabam nos abrigos são geralmente mandadas de volta para a pessoa que abusava delas, porque mulheres na Arábia Saudita não podem morar sozinhas ou com outras mulheres.

A razão de não haver leis que protejam mulheres de abuso físico e mental se deve ao fato de que todas as leis no reino são baseadas no Shariah, ou lei islâmica. Infelizmente, muitos líderes religiosos na Arábia Saudita ainda pregam que maridos podem bater nas suas esposas e crianças para impor disciplina a elas. Isso vem de uma interpretação deturpada do Alcorão e dos ensinamentos do profeta Maomé. Eu já escrevi sobre o abuso de crianças e mulheres na Arábia Saudita, e como juízes têm aplicado sentenças muito leves nesses casos.

“Um grande desafio que não foi abordado ainda na sociedade saudita é a falta de compreensão do Shariah,” escreveu Fatany. “Muitos homens, que são os principais responsáveis da violência contra mulheres e crianças, acreditam que eles têm todos os direitos a recorrer a surras disciplinares, e que eles não podem ser responsabilizados por isso. Enquanto o comportamento violento não for criminalizado, nós nunca vamos acabar com a violência dentro de famílias,” ela adiciona.

Com certeza, o governo saudita não suporta ver toda essa violência deflagrada com mulheres, mas o medo de interferir na vida particular dos seus cidadãos o leva a não agir fortemente quando os excessos acontecem. E é aí aonde a voz da sociedade tem que soar mais alto e exigir dos seus dirigentes ações dramáticas e rápidas para pôr fim as essas barbaridades. E foi isso que exigiu a jornalista saudita Ebtihal Mubarak (radicada em Nova York), semana passada, no programa The Stream da Al Jazeera English, que eu tive que assistir na internet porque nenhuma operadora de TV a cabo no Brasil disponibiliza o canal. “Como nós podemos nos organizar para promover os direitos das mulheres se o governo não deixa mais de dez pessoas se reunirem de cada vez?” perguntou Mubarak, referindo-se à proibição de partidos políticos e de grupos cívicos não autorizados pelo governo.

Mesmo sem a violência doméstica, a vida de mulheres sauditas não é nada fácil. A cada passo parece que há mais uma restrição ou proibição nas vidas delas. “O sonho de Wajdha” mostra um pouco disso, num retrato intimista da vida da Wajdha, que é informada que não deve andar de bicicleta porque pode romper seu hímen e assim acabar com qualquer chance de se casar no futuro, e de sua mãe, que é punida porque não tem condições físicas para dar mais um filho ao marido.

Espero que, desta vez, essa campanha contra violência doméstica dê algum tipo de resultado. Não estou muito confiante, por causa da relutância dos fundamentalistas, que como aqui no Brasil têm uma força muito além dos seus números minoritários, e que aos berros tentam apavorar e calar a população. Para ter uma mudança radical na posição das mulheres na sociedade saudita, teríamos que ver a abolição da lei de tutela. Somente assim, mulheres sauditas não serão mais tratadas como crianças. E se tiver a chance vá ver “O sonho de Wajdha”. Eu recomendo, vale a pena.

Rasheed Abou-Alsamh é jornalista