Economia

Entrevista: Armando Guedes relembra os desafios para evitar racionamento de combustíveis nos anos 70

‘Ele vendeu 400 mil toneladas sem ágio!’, relembra ex-presidente da Petrobras, sobre negociação bem-sucedida com xeique árabe

RIO - Armando Guedes, de 74 anos, foi o responsável pelas compras de petróleo do Brasil no exterior nos anos 70. Naqueles anos difíceis, viajou 24 vezes em um ano ao Irã. O bom relacionamento pessoal de Guedes, então chefe do departamento de compras da Petrobras, evitou o racionamento de combustíveis.

Apesar do ótimo relacionamento e da amizade com xeiques árabes, Guedes também passou por momentos difíceis: certa vez, na Líbia, onde negociava um desconto de US$ 0,10 por barril na compra de um carregamento de óleo, foi expulso do hotel onde estava hospedado e precisou dormir sob a escada do prédio. No dia seguinte, os negociadores líbios perguntaram se ele tinha desistido de conseguir o desconto. Em outra ocasião, para passar um fax para o Brasil, cortava uma nota de US$ 100 pela metade, entregava uma parte ao emitir o fax, e a outra ao receber a resposta da Petrobras.

Como foi manter o abastecimento de combustíveis no país em meio à crise do petróleo nos anos 70?

A década de 70 foi uma loucura. O Brasil vivia uma crise tremenda, não tinha dinheiro, importava 80% do petróleo que consumia. Eu viajava demais ao Oriente Médio. Houve um ano em que fui 24 vezes a Teerã, duas vezes por mês. Eu ia ao Iraque, à Arábia Saudita, ao Kwait, vivia por lá. Às vezes, eu chegava do exterior, ia direto para Brasília, voltava à noite ao Rio, e seguia de novo para o exterior. Minha mulher e meus filhos iam ao aeroporto para me ver.

O primeiro choque pegou a Petrobras de surpresa em 1973?

Vislumbramos com antecipação o que ia acontecer no Oriente Médio naquela ocasião, quando começou a nacionalização das empresas de petróleo. Vimos isso porque íamos lá com muita frequência e se percebia claramente a reação em relação às empresas americanas e inglesas. Eles (países do Oriente Médio) tinham que fazer alguma coisa para tomar conta de um bem que eles sabiam que lhes pertencia. Naquela época, eram as americanas, como Exxon e Chevron, que produziam petróleo lá no Oriente Médio.

E o que a Petrobras fez?

A primeira decisão foi se aproximar dos países árabes, devido a nossa forte dependência das importações. Sem recursos, qualquer problema que ocorresse deixaria a gente liquidado, era uma questão de vida ou morte. E, com isso, foram feitas várias associações via Braspetro com empresas do Irã e Iraque, por exemplo.

O trabalho de aproximação foi grande com países do Oriente Médio?

Foi um negócio impressionante. Trouxe vários executivos ao Brasil, levava eles para passear. Fizemos uma relação muito forte com eles.

Que outra medida preventiva a Petrobras tomou por temer um possível embargo nas vendas de petróleo antes de 1973?

Quando percebemos que poderia haver um embargo por parte dos países árabes em relação ao Ocidente, nós alugamos duas refinarias de grande porte na Itália em 1971. Como a Petrobras tinha uma imagem muito boa no Oriente Médio, nós comprávamos o petróleo para processar no Brasil e nas duas refinarias. Se houvesse o embargo, pegaríamos o petróleo dessas refinarias e traríamos para o Brasil. E não deu outra: quando ocorreu o embargo dos países do Oriente Médio para o Ocidente em 1973, na Europa, todos ficaram andando de bicicleta , faltou produto. Nós pegamos, fechamos as duas refinarias e trouxemos o petróleo para o Brasil. Por isso, o Brasil não passou por racionamento.

Como o Brasil conseguia comprar petróleo na época do primeiro choque, se não tinha carta de crédito para dar como garantia?

Foi graças à aproximação com países do Oriente Médio, como Irã e Iraque, com os quais fizemos vários acordos de negócios, incluindo exportações brasileiras. Nós vendíamos serviços e equipamentos para Irã, Iraque e Líbia e recebíamos em petróleo. Depois do segundo choque, após 1979, a Mendes Júnior se tornou praticamente dona do Iraque: fazia todas as obras de estradas, ferrovias e portos. O que o Iraque tinha que pagar à Mendes Júnior nós recebíamos em petróleo e pagávamos no Brasil para a construtora. Isso permitiu que a gente importasse petróleo sem a necessidade de carta de crédito.

No auge da crise do primeiro choque, a amizade com os países do Oriente Médio ajudou a Petrobras a comprar petróleo?

Houve um fato incrível, no meio do auge da crise, mesmo com todas as medidas que adotamos com as refinarias na Itália, e o bom relacionamento que tínhamos com os árabes, ainda faltavam 400 mil toneladas de petróleo (3,5 milhões de barris) para atender ao mercado. A decisão do governo foi que, se não conseguíssemos esse petróleo, seria introduzido o racionamento no Brasil.

O que foi feito para evitar isso?

Eu fui orientado a dar uma volta em todo Oriente Médio para buscar essas 400 mil toneladas de petróleo. Também fui à China, ao Japão. Um dia estava em Tóquio e pensei que se voltasse ao Brasil sem esse petróleo seria decretado o racionamento. No aeroporto de Tóquio, decidi comprar uma passagem para o Iraque. Naquela época, o Brasil importava cerca de 800 mil barris por dia, dos quais 400 mil vinham do Iraque, e consumíamos em torno de 1 milhão de barris por dia.

E o que ocorreu?

Eu tinha uma relação comercial e também de amizade muito forte com o presidente da Somo (State Oil Marketing Organization), a estatal de petróleo do Iraque, Ramsy Salman al Husseim. Cheguei ao aeroporto, peguei um táxi e fui lá. Quando cheguei à sala do presidente da Somo, tinha umas 15 pessoas, a maioria japoneses. Ele me recebeu, contei minha epopeia e ele começou a rir. E disse: “Armando, não tenho mais nenhuma gota de petróleo para lhe fornecer. Lá fora tem 15 japoneses que estão querendo petróleo”. Eu saí e continuei na sala. Passados uns cinco minutos, ele abriu a porta e disse para os japoneses: “Infelizmente a possibilidade de negócios que tinha com vocês acabou de ser desfeita, porque todo o óleo que eu tinha entreguei para aquele rapaz”. E apontou pra mim! Eu fiquei gelado. Ele vendeu pelo preço que vendia normalmente aqueles 400 mil barris diários, sem o ágio que estava cobrando naquela época, que era entre 30% e 40% em relação ao mercado. Foi um negócio incrível. Eu recebi telegrama do presidente da República, da Petrobras, de todo mundo porque consegui o petróleo que faltava e não houve racionamento.

Houve outros casos semelhantes?

Aconteceu também com o Qatar. O árabe tem muito disso, de olho no olho. Eu era chefe da área comercial da Petrobras e recebi um telefonema. Minha secretária disse que era uma pessoa que estava no aeroporto de Lisboa e que queria falar comigo. Era o gerente geral da Qatar Petroleum Company, dizendo que estava querendo vir ao Brasil. Ele disse que estava com o ticket da passagem na mão, mas a Varig não queria deixá-lo embarcar para o Brasil porque não tinha visto. E perguntou se eu não poderia resolver esse problema do visto. Liguei para o Itamaraty e pedi para eles verem se conseguiriam agilizar o visto dele, pois era do Qatar, de onde estávamos comprando petróleo. Eles conseguiram mandar um funcionário ao aeroporto para dar o visto para ele.

No Brasil, ele viajou por vários lugares, de Manaus à Iguaçu. Na véspera de ir embora, veio me visitar na Petrobras. Conversamos sobre negócios, e ele me agradeceu por ter conseguido o visto. Passado um tempo, veio a segunda crise do petróleo, outra vez a escassez, e eu, indo para o Oriente Médio, tentando conseguir mais petróleo, passei pelo Qatar. Minha secretária me ligou, dizendo que aquele executivo da petrolífera do Qatar queria falar comigo. Ao telefonar para ele, me disse que, por ter sido tão gentil com ele na ocasião do visto, tinha um volume de petróleo de 50 mil barris de petróleo e que tinha várias empresas interessadas, mas se lembrou de mim. E ele me disse: “Se o senhor quiser, venha aqui que assino o contrato na hora”. Peguei um avião e fui direto para Bahrein e assinei o contrato daquele volume a preços oficiais. Isso mostra como era uma relação amistosa.

E como as petroleiras americanas reagiram ao ver que o Brasil conseguia comprar petróleo do Oriente Médio em momentos de crise?

As empresas americanas e inglesas ficaram muito chateadas com a nacionalização dos árabes. E nós começamos a comprar diretamente das empresas nacionais, do Iraque, da Arábia Saudita, do Kwait. E algumas empresas americanas entraram na Justiça no Brasil contra os navios que estavam trazendo petróleo daquela região para cá, dizendo que o petróleo era deles. Tinha um navio que era para chegar ao Terminal São Sebastião e tivemos a notícia de que, com uma ação judicial, ele seria embargado. Falamos com a Polícia Federal, que conseguiu evitar o embargo do navio e conseguimos receber a carga. Tudo isso mostra que tipo de atitude tomamos para manter o país abastecido. O fato real foi que nós conseguimos, em uma situação extremamente difícil, ter que importar um monte de petróleo, não tínhamos dinheiro, com embargo ao Ocidente, e nós conseguimos manter o país suprido com esse tipo de aproximação. E isso fez com que o Brasil ficasse com uma posição forte.

E como foi o caso da descoberta pela Braspetro, na época subsidiária da Petrobras no exterior, do campo gigante de Majnoon, no Iraque, que a Petrobras foi obrigada a devolver?

O campo no Iraque ficava próximo à fronteira com o Irã, onde nós descobrimos um volume de óleo gigantesco. O Irã advertiu o Brasil que não reconhecia a área do campo como sendo iraquiana e qualquer empresa brasileira que colocasse dinheiro lá. O Irã não assumiria qualquer responsabilidade. Sendo do Iraque, nosso acordo para explorar Majnoon é que receberíamos esse petróleo a US$ 3, o barril, quando já custava US$ 12. Um dos chefes do governo do Iraque conversou comigo, dizendo que não seria possível entregar o petróleo naquele preço acordado de US$ 3, e que seria necessário chegar a um preço no meio do caminho, um pouco abaixo dos US$ 12.

No Brasil, conversei com o governo. E, diante de todos os riscos, disse que achava que não valeria a pena continuar com a exploração de Majnoon. A decisão foi negociar a saída da Petrobras de Majnoon com o Iraque. Nossa saída foi negociada, não é verdade que o Brasil foi expulso de lá. Passamos 15 dias em Paris, conversando com a delegação iraquiana. O Iraque nos deu um contrato de pouco mais de 100 mil barris por dez anos e nos pagou na época cerca de US$ 400 milhões para devolvermos o campo, de onde, até hoje, não se extraiu uma gota de óleo porque é uma área conflagrada. Então, foi o melhor negócio que fizemos na época.

As décadas de 70 e 80 foram de um trabalho grande de aproximação da Petrobras com os países do Oriente Médio.

As décadas de 70 e 80 foram de uma aproximação incrível com os países do Oriente Médio. Foi literalmente na base da amizade que conseguimos manter o país abastecido e não ter racionamento. Não foi uma posição de governo foi uma posição claramente de estratégia estabelecida pela Petrobras por meio da área comercial, na qual eu era o chefe do Departamento de Compras e Shigeaki Ueki, o diretor. Se não fosse a Petrobras e a política que estabelecemos naquela ocasião, nós teríamos entrado num colapso total.

Mas houve também momentos tensos, não?

Sim. Uma vez fomos à Líbia para comprar um carregamento. Quando embarcamos no aeroporto de Trípoli, quando estava dentro do avião entraram uns três soldados do Exército líbio, foram andando, pegando várias pessoas e mandando sair do avião. Foi um negócio brutal, chocante para um ocidental. Mas nós tínhamos uma relação impressionantemente diferenciada em relação a eles.

Na época havia sultões, filhos do rei árabes, que tinham cotas de petróleo que vendiam e ficavam os recursos. Como era isso?

No auge da crise, estava nos Estados Unidos, numa reunião da Federal Energy Administration, e as empresas americanas queriam saber o que fazer para conseguir petróleo. Uma maneira de conseguir óleo era se aproximar dessas pessoas para conseguir fazer negócio e ter acesso ao óleo. Na reunião estavam todas as companhias de petróleo e eu, com o crachá da Petrobras. Um deles perguntou ao presidente da Federal Energy Administration como se aproximar dessas pessoas para conseguir o petróleo. O presidente disse: “Eu não consigo, mas se tem alguém que consegue é esse cara que está do seu lado”. E apontou para mim. “Essa é a empresa que melhor compra petróleo no mundo.”

Quando o Brasil pediu concordata, em 1983, foi com essas relações de amizade que o país conseguiu manter o abastecimento de petróleo?

O presidente da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) era o todo poderoso Ahmed Zaki Yamani. Ele veio ao Brasil num avião particular 757 impressionante. Tinha tudo: piscina, sauna, torneiras de ouro. E, como todo árabe, queria ver água, e quis ir a Manaus. Queríamos assinar contrato com a Arábia Saudita, mas não tínhamos dinheiro. Ele quis fazer um passeio de barco e lá pelas tantas resolveu pescar. Pegamos um mergulhador da Marinha, compramos um tambaqui grande. E, quando o Yamani lançou o anzol, pegou o peixe. Ele assinou o contrato no barco. Foi o primeiro contrato da Aramco (estatal de petróleo da Arábia Saudita) com uma empresa internacional.

Por que, na década de 70, foram criadas tantas subsidiárias: a Braspetro pra atuar no exterior, a Interbras como trading, a Petrofértil na área de fertilizantes, a Petroquisa no setor petroquímico, entre outras?

Foi no sentido de reduzir investimentos na área de exploração e produção, onde não se estava conseguindo resultado nenhum, e para investir em algo que desse retorno. Fizemos essa experiência com os contratos de risco (em 1975), com a vinda de algumas empresas estrangeiras na tentativa de melhorar o conhecimento do nosso pessoal nessa área de exploração. Porque se desse certo teríamos recursos para investir. E não deu outra. Houve muita troca de tecnologias e veio junto a descoberta da Bacia de Campos. E a área de exploração se tornou a cabeça da companhia.

Mas apesar de toda a amizade, houve outros momentos tensos?

Estava no aeroporto de Riad, capital da Arábia Saudita, e entreguei o passaporte. Foi levado para dentro de uma sala e não voltou. Descobri que levaram meu passaporte para uma sala de arquivo e insisti e para me levarem lá. Me assustei, pois devia haver mais de 100 mil passaportes empilhados e eles me mandaram procurar o meu. Eu olhei desesperado, vi uma mesa e um passaporte estava sustentando o pé da mesa. Era o meu. Foi uma loucura.

As negociações com a Líbia também eram difíceis?

Estava negociando a compra de um carregamento, um desconto de US$ 0,10 por barril. No fim do dia, sem sucesso nas negociações, fui para o hotel e minha mala estava na porta da rua. Os funcionários do hotel informaram que receberam uma ordem para me tirar do hotel. Em resumo, dormi sob uma escada do lado de fora do hotel. No dia seguinte, ao voltar às negociações com o governo líbio, o chefe da empresa me disse: “Com certeza, o senhor deve estar com mais boa vontade para pagar os US$ 0,10, porque o senhor dormiu debaixo da escada do hotel”.

E na Nigéria?

Ocorreu outro fato marcante. Eu precisava trocar informações com a Petrobras e mandava via fax. Eu não conseguia receber as respostas da Petrobras. Então eu passei a pegar uma nota de US$ 100 e a cortava com uma tesoura pelo meio. Ao mandar o fax, entregava uma parte, e avisava que, ao receber a resposta, dava a outra metade da nota. E a partir daí as respostas vinham.

Tudo isso por causa da forte dependência das importações?

Costumo falar que as pessoas não têm ideia da importância de termos autossuficientes em petróleo. A dependência, como nós tínhamos, tinha um custo e um risco de tal ordem que sermos independentes se transformou para nós numa obsessão.

O senhor acha que, naquela época, o Brasil deveria ter racionado combustíveis, adotado uma ação mais drástica?

É claro que uma providência qualquer desse tipo teria ajudado, mas faltou uma visão estratégica como falta agora.

E hoje, como o senhor vê a Opep?

Ela é forte, mas não tem mais a força que tinha naquela ocasião por uma série de razões. A descoberta de shale gas nos EUA é importante. Eles consomem cerca de 20 milhões de barris diários e importavam 14 milhões de barris. Eles estão reduzindo drasticamente a dependência externa. A geopolítica do petróleo vai mudar.

E qual é o papel da Opep?

Ela é importante porque a produz cerca de 35 milhões de barris por dia para um consumo de 89 a 90 milhões de barris diários. Ou seja, um terço da produção mundial é da Opep. Todo ano há um decréscimo natural dos campos de 10%. Ou seja, são 9 milhões de barris por ano, a produção anual de uma Arábia Saudita. É preciso que haja nova descoberta de petróleo equivalente a uma Arábia Saudita por ano só para manter o volume de petróleo produzido hoje. Assim, quem produz um terço da produção mundial tem importância. Mas lá no Oriente Médio não há mais novas fronteiras para se descobrir petróleo. A busca que as empresas estão fazendo é para aumentar o grau de recuperação do petróleo e isso custa caro. Abaixo de US$ 80 o barril não vale para que as empresas invistam. Não interessa a ninguém o petróleo cair de preço.

E o que vem de novo por aí em termos de oferta de petróleo futuro?

O Atlântico Sul. O Oeste da África e o Brasil, em 2025, estarão produzindo entre 6 milhões e 7 milhões de barris por dia e consumindo uns 4 milhões de barris. Vamos ser exportadores de uns 3 milhões, Angola de uns 2 milhões, Nigéria de outro tanto. Então, o Atlântico Sul vai ser quase uma Opep, numa área não conflagrada. A geopolítica do petróleo vai mudar literalmente nos próximos cinco a dez anos. A importância do Oriente Médio vai cair vertiginosamente, com certeza, e o Atlântico Sul vai ter uma importância que nunca teve, principalmente por ser uma área pacífica.