Invernada Brasileira

sex, 14/06/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, junho de 2013.

 

Antes de chegar às vias respiratórias e dar a sensação de que se está respirando milhões de agulhas afiadas, o spray de pimenta tem um cheiro adocicado. Há uma sensação boa, de se estar experimentando o aroma de algo bom, seguida de uma surpresa, um espanto e, enfim, um horror atordoante.

Aqui já foi mencionado que João do Rio, cronista da cidade no século XIX, dizia que para apreender os fatos deve-se ir à rua.

Este blog, então, foi fazer seu dever de casa. Acompanhar pessoalmente, do início ao fim, a edição carioca da marcha contra o aumento das passagens de ônibus. Levou consigo as perguntas que todo cidadão da cidade anda se fazendo a respeito do movimento – que um dos maiores jornais da Europa, o espanhol El País, igualou às já tradicionais marchas reivindicatórias que acontecem no continente há décadas:

“Quem sabe o Brasil, a partir de agora, terá que se acostumar a estas manifestações de rua tão conhecidas em outros países.” –  escreveu o correspondente Juan Arias.

O blog voltou com respostas. A rua respondeu. Ela nunca falha. Vamos a elas.

1. O movimento contra o aumento das passagens de ônibus é…?

Começa por aí. Já não é mais um movimento contra o aumento de passagem de ônibus. Foi, no início. Ainda é, oficialmente. Mas, na prática, juntaram-se aos reivindicadores cidadãos com diversas outras causas: da volta do  Bondinho a Santa Teresa até a falta de transparência com a qual foi gasto dinheiro público nos estádios do Engenhão e do Maracanã, passando pelo fim da PEC 32, que exclui do direito de investigar e abrir inquéritos procuradores e promotores de justiça nos âmbito federal e dos estados. Cada grupo com a sua reivindicação, todos concordando com a reivindicação do outro. Na prática, tornou-se um canal para o cidadão ir para a rua protestar contra um acúmulo de problemas, escândalos e descalabros noticiados diariamente aqui no portal.

2. O movimento (vamos chamar então, por enquanto, de) “Contra o estado das coisas hoje no país”, é partidário?

Em sua gênese, sim. A partir de ontem, não. Primeiro porque o cidadão, aos poucos, começa desenvolver uma percepção de que “todos os partidos são iguais”. Segundo, que o problema X é de responsabilidade de um partido, o Y do outro. Então, independente do partido, uniram-se todos os eleitores insatisfeitos para protestar. Tornou-se um movimento, enfim, contra a má-política.

 

 

3. O movimento é contra o Prefeito Eduardo Paes e Sergio Cabral? É contra a presidente Dilma?

Sim e não. Porque é contra todos que estão no poder agora – nas ruas, como nos comentários de notícias, a voz dada ao cidadão aqui no portal G1, há um consenso de que não há ninguém administrando bem coisa alguma hoje em dia. Há, também, uma percepção sofisticada, pela leitura dos cartazes exibidos, de que o problema não é exatamente Dilma, o PT, Lula, o PSDB, Fernando Henrique, Sarney. Há uma espécie de consciência acumulada do que todos os governantes fizeram de ruim nos últimos 60 anos. E uma vontade de passar todos a limpo, passado e presente, ou, pelo menos, um impulso incontrolável de ir à rua  gritar que não se aguenta mais sujeira. Em conversa com manifestantes mais velhos, gente de 40, 50 anos presente à passeata, este blog ouviu admitirem que o fato de isto tudo estar explodindo agora deve-se também a um amadurecimento da democracia.

4. Pessoas de 40 e 50 anos? Qual é, afinal, o perfil do público que participa deste movimento?

A maioria gente muito jovem. Dos 17 aos 27 anos. Trata-se de um grupo feito de grupos. Na concentração, a chegada de cada grupo é comemorada por todos os outros. O grupo mais aplaudido foi o de alunos uniformizados do Colégio Pedro II. São energéticos. Hormônios. Mas este blog presenciou um jovem de uns 17 anos que, ao terminar de tomar uma garrafa de água mineral, andou 100 metros até achar uma cesta de lixo para jogá-la fora.

5. Tão jovens assim? Então é razoável afirmar que a Geração Facebook resolveu finalmente deixar  de lado “o ativismo de sofá” ir para as ruas?

De jeito algum. Para essa garotada muito nova, vida virtual não restringe a vida real. Eles já nasceram sabendo viver as duas vidas – melhor, eles não veem o real e o virtual como algo antagônico. Nós, os mais velhos, é que temos essa impressão, como os adultos que bradaram que a invenção da TV iria acabar com o cinema.

6. São jovens de classe média?

De classe média baixa a pobres de fato. Esmagadora maioria vinda de Jacarepaguá, Campo Grande, Bangu e Duque de Caxias. Alguns poucos, bem poucos, jovens da Zona Sul.

 

 

7. Os manifestantes são vândalos?

Na manifestação de ontem, 2% são sim. Trata-se do grupo dos anarcopunks, garotada contra partidos políticos, contra o governo, pela anarquia. Os anarcopunks cariocas vêm das periferias, de recantos pobres da cidade, rebeldes cheios de causas e, sim, são vândalos com orgulho – é afinal o principio básico, seja em Londres ou em Nova York, para ser um legítimo anarcopunk. Os outros 98%, não. E ainda chamam a atenção dos que resolvem pichar um ponto de ônibus ou quebrar um orelhão. Algumas vezes, conseguem fazê-los desistirem do vandalismo. Outras, entendem que, afinal, desde antes da Bastilha, não se faz a História andar no sentido de revolução sem quebrar vidraças. Outras, os próprios se policiam. Exemplo: lugares como o Teatro Municipal, no roteiro da marcha, são respeitados. O Fórum do Rio, casa da Justiça do Estado, não.

8. Como foi reação à passeata e seus transtornos no trânsito do cidadão que estava no centro da cidade a trabalho?

No início da marcha, tensa. Mas, talvez porque o ato de ontem tenha sido maior, mais frequentado por gente que aderiu por simples empatia, à medida que a marcha descia pela Rio Branco ia recebendo palmas até de vendedores de uma ou outra loja que, surpresos, ao perceber o caráter pacífico de tudo o que acontecia, deixaram as lojas abertas. Na Rio Branco, na altura rua 7 de Setembro, escritórios jogaram papel picado, saudando a passeata. Outro sinal que está todo mundo com algo entalado na garganta. E a culpa não é só de quem está no poder agora.

9. Falando sobre quem está no poder agora: o governador Sérgio Cabral disse que estas manifestações são orquestradas. É verdade?

Tão orquestradas quanto a mobilização pelos royalties do petróleo organizada pelo próprio governador, prefeito e alguns artistas. Tão orquestradas quanto o evento Rock in Rio. Tão orquestradas quanto um encontro para ir jantar ou para ir ao cinema. Cria-se uma página de Facebook, chama-se por lá as pessoas, e durante a passeata o carro de som informa em que dia será a próxima manifestação.

 

10. Como foi a atuação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro durante a passeata?

Surpreendentemente sóbria, também. Havia uma curiosidade de toda a imprensa que lá estava sobre quem afinal ataca primeiro, a polícia ou os manifestantes. A PM escoltou toda a passeata sem sequer impor a ela um ritmo, deixando para os próprios manifestantes fazê-lo. Não havia, também, tensão entre polícia e manifestantes. Nenhuma cara feia, nem de um lado, nem de outro. A verdade é que todas as (poucas) bombas soltadas durante a passeata foram todas ativadas pelos manifestantes. Mais precisamente, por esse pequeno grupo de anarcopunks. Mas a PM, surpreendentemente, não reagiu. Apenas quando o ato terminou, em frente a  ALERJ, e 90% dos manifestantes e jornalistas já tinham ido embora, esse pequeno grupo, de 30 pessoas no máximo, foi, com o intuito de confrontar a polícia, em direção à Avenida Presidente Vargas. Lá, o pau comeu. Foi a cena que se viu ao vivo, captadas pelo helicóptero da emissora, no Jornal Nacional de ontem. Visto lá de baixo, coisa pequena se comparada ao que acontece em muitos jogos de futebol entre torcidas e polícia.

11. O movimento tem alguma liderança? Palavras de ordem?

Liderança, não. Deliberadamente não. É uma característica dos movimentos políticos do século 21. Quer-se passar a mensagem de que o que está ali é a personificação da voz sem rosto das ruas. Palavras de ordem? Sim. Fora governador, fora prefeito, fora mídia, fora poderosos – aquilo que se brada em passeatas desde que o mundo é mundo. As novidade ficou por conta de um refrão que provou a esta coluna que este movimento já não é, de fato, mais apenas sobre um aumento de passagem de ônibus:

“Nem Turquia… nem Grécia… isso é o Brasil saindo da inércia!”

 

 

Um repórter argentino comentava com coleguinhas brasileiros, durante a muito tranquila cobertura do ato, que “já era hora”, que “em qualquer país civilizado, metade dos escândalos que acontecem no Brasil teriam feito a população de Berlim, Nova York ou Paris atear fogo à cidade”. Citou a onda de estupros que sofremos praticamente ao mesmo tempo em que na Índia houve algo parecido e que, enquanto lá o povo foi aos milhões pra a rua e queimaram cidades inteiras exigindo justiça, aqui no Brasil nada aconteceu.

12. Parece, afinal, uma visão nada apocalíptica do que anda acontecendo no Rio de Janeiro. Recomenda-se então a adesão ao movimento?

Se o governo voltar atrás e mantiver a tarifa de ônibus onde estava, isso irá desmobilizar a porção articulada do movimento. Provavelmente ele se extinguirá. Se não, ele irá se transformar muito rapidamente em um evento de adesão de massa. Mortes não demorarão a ocorrer. Em pouco tempo, poucas pessoas não mais se lembrarão de que tudo começou com o aumento de passagens de ônibus e o movimento já terá ganhado um nome, quem sabe Invernada Brasileira. A manifestação de ontem foi um momento quase doce. Mas aquele doce que nos chega ao nariz, os cinco segundos de doçura antes de descobrir que, na verdade, trata-se de spray de pimenta.

O inverno começa daqui a uma semana.

E pode não ter previsão para terminar.

 

Post-scriptum: Uma última observação sobre a passeata de ontem, no Rio. Os manifestantes sabem o extenso hino brasileiro de cor; muito melhor do que os jogadores e a torcida da seleção brasileira que estreia neste fim de semana na Copa das Confederações.

 

 

Créditos das fotos: Dodô Azevedo.

 

 

 

 

 

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10 comentários sobre “Invernada Brasileira”

  1. Adriana Sousa disse:

    “Invernada brasileira”? Fala sério….

    #RevoltaDoVinagre ainda soa muito melhor (melhor inclusive que a “Revolta da Salada” que tentaram emplacar por aí…).

  2. Renata disse:

    “Winter is coming…”

  3. Marcela disse:

    Adorei! Parabéns pela matéria!

  4. Thiago disse:

    Bom dia Sr. Dodô Azevedo,

    Por que não colocou os cartazes que, por sinal é maioria, revindicando CONTRA A GLOBO E O QUE ELA É CAPAZ DE FAZER NOS LARES BRASILEIROS???

    Saberia me explicar???

    Abraço e fico no aguardo!

  5. SD disse:

    Vem, vamo pra rua
    Pode vim que a luta é sua
    Que o brasil vai tá gigante
    Grande como nunca se viu

    Vem, vamo com a gente
    Vem protestar por nossa gente
    Sai do sofá, vem pra rua
    Para o maior protesto do Brasil

    É eooH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil
    OOH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil

    Se essa rua fosse minha
    Eu mandava ladrilhar
    Tudo em verde e amarelo só pra ver
    O Brasil inteiro protestar

    É eooH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil
    OOH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil
    OOH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil

    (coro)
    Vem pra rua! Vem pra rua! Vem pra rua! Vem pra rua!

    Vem, vamo pra rua
    Pode vim que a luta é sua
    Que o Brasil vai tá gigante
    Grande como nunca se viu

    Vem, vamo com a gente
    Vem lutar por nossa gente
    sai do sofá, vem pra rua
    que é o maior protesto do Brasil

    É eooH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil
    OOH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil
    É eooH, Vem pra rua,
    porque na rua é o maior protesto do Brasil

  6. LUIZ OLIVEIRA disse:

    “SE O POVO SOUBESSE COMO SE FAZ SALSICHA E AS LEIS,NÃO COMERIA SALSICHA E NEM RESPEITAVA AS LEIS” BISMARCK.

  7. monica disse:

    Adorei os esclarecimentos, estava meio confusa com toda essa manifestação, a luta é legítima e esses baderneiros não conseguirão atrapalhar o protesto, serão repudiados.

  8. Péricles Vieira de Souza disse:

    Excelente materia. Não esperava ver na minha geração tal movimento no Brasil.

  9. Jorge Eduardo disse:

    Sem precedentes.

    Antes de ler sua matéria, tinha essa percepção de que os protestos que pouco assisti na televisão e jornais, e muito mais acompanhei nas redes sociais, são na verdade um movimento de um povo cansado de apanhar. Agora é hora de todos darmos a cara a tapa. Não somente os políticos, mas o próprio povo e até a mídia. Que também é feita de capital privado e interesses privados. Fomos todos pegos de surpresa.

    Quem sabe é a grande virada?

  10. Ninja Oculto disse:

    Faltaram os: “FORA GLOBO”; “[GLOBO] VOCÊ NÃO ME REPRESENTA”



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