Cena de "Sniper americano", com Bradley Cooper Foto: Divulgação

É tudo (quase) verdade nos indicados ao Oscar

Filmes baseados em histórias reais são criticados por modificar, em nome de tramas mais adequadas para o cinema, biografias de personagens célebres

por André Miranda

Verdades, versões, criações ou até mesmo mentiras deliberadas. Entre os filmes indicados ao Oscar, muitos deles são adaptações de histórias reais, mas nem sempre a ficção condiz com os fatos. A dúvida vem gerando polêmica nesta temporada de prêmios, servindo para alimentar ainda mais a disputa pelo principal prêmio do cinema mundial.

— Cobrar da arte um respeito fiel aos fatos é quase uma quimera, um desejo irrealizável. Nem imagem de câmera de segurança garante a verdade — diz o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos. — Hoje, o público entende que um filme tem um coeficiente grande de invenção. Mas é claro que há níveis para isso. Quando você falsifica a história política de um país, por exemplo, aí a coisa fica mais grave, podendo haver intenções desconhecidas por trás.

'Sniper americano'

Bradley Cooper em cena de 'Sniper americano' - Keith Bernstein / AP

Em "Sniper americano", de Clint Eastwood, o franco atirador Chris Kyle (Bradley Cooper) matou um garoto que carregava uma granada. No livro de memórias de Kyle, porém, a cena retratada envolve uma mulher e não uma criança, como no filme. Já a história de que Kyle se tornou uma lenda entre os militares americanos pela quantidade de pessoas que atingiu com seu rifle é verdade. Oficialmente, o militar americano matou 160 pessoas em suas campanhas no Iraque.

— Um filme tem apenas duas horas para contar uma história e precisa ser verdadeiro com sua expressão artística. Então compreendo totalmente que haja situações em que diretor, roteirista e até ator precisam alterar a história original para que ela funcione melhor no cinema — diz o escritor americano Jim DeFelice, coautor com o próprio Chris Kyle e com o advogado Scott McEwen do livro de memórias “Sniper americano” (editora Intrínseca), obra na qual Eastwood se baseou para fazer o filme.

Chris Kyle, autor do livro 'American Sniper', em sua casa em Dallas em março de 2012 - Brandon Thibodeaux/The New York Times / NYT

Depois de se tornar conhecido por sua atuação na Guerra do Iraque, o verdadeiro Kyle morreu em 2013 e não pôde ver a repercussão e responder as polêmicas em torno do filme. A versão para cinema, que estreia no Brasil em 19 de fevereiro, foi criticada por gente como o ator Seth Rogen e o documentarista Michael Moore por supostamente glorificar o militarismo e retratar Kyle como herói.

Além da cena em que o franco-atirador americano mata uma criança iraquiana, o filme também mostra um duelo pessoal entre Kyle e Mustafa, um franco-atirador sírio que lutava ao lado dos iraquianos. É uma rivalidade que só existiu na imaginação dos roteiristas.

— Há realmente muitas diferenças entre o livro e o filme. Mas acho o resultado do filme muito bom em pegar a essência da história, sobretudo na relação de Kyle com sua mulher. Sei que vai parecer estranho, mas para mim boa parte do livro é sobre a história de amor entre duas pessoas — afirma DeFelice. — Por isso também discordo das críticas feitas contra Kyle. Dizer que um franco-atirador é um covarde, como fez Moore, é não conhecer como de fato funciona uma guerra. Kyle foi um herói pelo que fez em combate, mas também por cuidar de sua família e depois se engajar em ajudar veteranos.

'Selma'

Cena do filme 'Selma' - Divulgação

Outra história indicada ao Oscar e motivo de debate pelo modo como retrata o passado é “Selma”, de Ava DuVernay. O filme trata das marchas pelos direitos dos negros americanos nos anos 1960, com Martin Luther King Jr. (David Oyelowo) à frente. Para historiadores, porém, a produção comete um erro ao posicionar o democrata Lyndon B. Johnson (Tom Wilkinson) como uma espécie de antagonista, alguém que teria se manifestado contrário à luta de King.

Uma das sequências mais incômodas é quando “Selma” sugere que Johnson teria ordenado ao diretor do FBI que enviasse à mulher de King gravações que comprovariam sua infidelidade. O filme estreia em 5 de fevereiro no Brasil.

Presidente Lyndon B. Johnson conversa com líderes do movimento dos direitos civis, na Casa Branca, em Washington - AP

— Na política externa, o governo Johnson esteve ligado aos golpes na América Latina e a grupos que reprimiram direitos humanos e civis. Mas, na política interna, colocar na conta dele a repressão aos movimentos negros é no mínimo um exagero — afirma Oswaldo Munteal, professor de História da PUC-Rio. — Ou então é uma tentativa de politizar uma história, tendo em vista que o debate racial está muito forte, o partido democrata anda fragilizado e haverá eleições presidenciais em 2016. Nos EUA, a relação entre cinema e política sempre foi muito estreita. Não podemos ignorar a possibilidade de uma manipulação face à corrida eleitoral.

Mas “Selma” consegue retratar com fidelidade a tensão anterior à decisão de Lyndon Johnson em assinar a Lei do Direito de Voto de 1965. O “domingo sangrento”, em que manifestantes negros foram atacados por policiais, realmente aconteceu.

'O jogo da imitação'

Cena do filme 'O jogo da imitação' - Divulgação

“O jogo da imitação” é um drama dirigido por Morten Tyldum, sobre como o matemático britânico Alan Turing criou uma máquina para decodificar o sistema de comunicação criptografada dos nazistas durante a Segunda Guerra. Turing é interpretado por Benedict Cumberbatch, um dos queridinhos de Hollywood. O filme tem previsão de lançamento para 5 de fevereiro no Brasil.

Mas são tantas críticas à falta de precisão do filme que talvez seja mais fácil convencer a Igreja de que “O código Da Vinci” não cometeu heresia ao dizer que Jesus teve filhos do que listar todos os erros de “O jogo da imitação”. Eis alguns exemplos: diferentemente do que está retratado na tela, Turing nunca foi investigado sob suspeita de ser um espião soviético; nunca batizou sua máquina como Christopher, em referência a um amigo de adolescência por quem era apaixonado; não teve contato com o chefe do serviço de inteligência do Reino Unido; e tampouco foi chantageado por um colega que ameaçava revelar sua homossexualidade.

Alan Turing na escola em Dorset, Inglaterra, aos 16 anos - - / AFP

Para terminar, a história de que Turing se suicidou após sofrer castração química, difundida na época, é considerada por historiadores contemporâneos um equívoco: sua morte, envenenado por cianureto, teria sido um acidente.

Num artigo sobre “O jogo da imitação” publicado no “Guardian”, a historiadora Alex von Tunzelmann escreveu: “Uma coisa é ter licença criativa. Caluniar a reputação de um grande homem, ao comprar o preconceito nojento dos anos 50 que considerava homens gays como um risco automático para a segurança nacional, é outra completamente diferente”.

É verdade, contudo, que o matemático inglês foi processado por “indecência” e obrigado a receber castração química. Também é fato a história de que ele pediu sua colega Joan Clarke (Keira Knightley) em casamento para mantê-la em sua equipe de pesquisadores. Foi o único jeito de impedir que os pais de Joan obrigassem que ela voltasse para casa.

'A teoria de tudo'

Cena do filme 'A teoria de tudo' - Divulgação

Com estreia prevista para 29 de janeiro, "A teoria de tudo" retrata a relação entre o físico Stephen Hawking (Eddie Redmayne) e sua primeira mulher, Jane Wilde (Felicity Jones), com direito a muitas cenas do cotidiano bastante comum do casal e dos pais de Hawking.

Só que, diferentemente do que mostra o filme dirigido por James Marsh, nada era tão harmonioso. O carro dos pais de Hawking era um táxi, e eles criavam abelhas no porão. Em seu livro “Travelling to infinity — My life with Stephen”, Jane escreveu que os sogros eram excêntricos e se consideravam intelectualmente superiores. Ela também descreveu as dificuldades de sua relação com Hawking, que teria deixado o sucesso subir à cabeça e tentaria impor suas ideias, como o ateísmo, à católica Jane.

Professor Stephen Hawking em seu escritório na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, em 2011 - Sarah Lee / AP

Por outro lado, “A teoria de tudo” se aproxima da realidade ao relatar a separação do casal. Hawking realmente deixou Jane depois de 30 anos de relacionamento. A motivação foi uma das enfermeiras do físico, Elaine Mason, com quem se casou em 1995.

'Invencível'

Cena do filme 'Invencível', de Angelina Jolie - Divulgação

Dirigido por Angelina Jolie e já em cartaz no Brasil, "Invencível” pecaria por romantizar demais uma história naturalmente dramática, a da prisão do ex-atleta Louis Zamperini pelos japoneses no Oceano Pacífico, quando ele servia na Força Aérea americana durante a Segunda Guerra Mundial.

Ao contrário do que retrata o filme, Zamperini não era o único alvo das torturas na prisão. “Invencível” mostra um carcereiro mandando que dezenas de prisioneiros façam fila para socar o protagonista. Isso realmente aconteceu, mas não apenas com Zamperini, e sim com um grupo de soldados americanos acusados de roubar comida. Além disso, diferentemente do apresentado, não era permitido que os presos americanos se falassem.

Já a história de que Zamperini passou mais de um mês num pequeno bote no Oceano Pacífico, se alimentando de aves e peixes crus, está descrita em biografias e perfis sobre o americano.

'Foxcatcher'

Cena de 'Foxcatcher - Uma História que Chocou o Mundo' - Divulgação

“Foxcatcher” causou desconforto para um dos principais retratados e único do trio de protagonistas ainda vivo: Mark Schultz, medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1984 na luta greco-romana, reclamou no Twitter de uma sequência que sugeriria um afeto homossexual de seu personagem, interpretado por Channing Tatum, com o milionário John du Pont (Steve Carell). Schultz chamou o diretor Bennett Miller de “ mentiroso”, mas depois pediu desculpas.

Mark Schultz durante uma luta em 1983 - AP Photo/David Longstreath / AP

O filme também condensou 12 anos da história dos irmãos Mark e David Schultz (Mark Ruffalo) em praticamente apenas quatro anos, das Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, até pouco depois das Olimpíadas de Seoul, em 1988. Além disso, diferentemente do que está no longa-metragem, Mark e David nunca treinaram juntos na equipe de luta Foxcatcher, de propriedade de Du Pont.

O próprio Mark Schultz, porém, declarou que Steve Carell representou com perfeição as excentricidades de John du Pont. O milionário realmente tinha, por exemplo, um tanque de guerra com que passeava por seu rancho.

O filme já está em cartaz no Brasil.