Rio

Jovem que fundou ONG na Baixada Fluminense aos 16 anos chega sos 28 com 500 'filhos'

Formada em serviço social, Bianca Simãozinho Carvalho atende a crianças e adolescentes na Chatuba

Bianca Carvalho, fundadora de uma ONG na Baixada Fluminense: vida pessoal vem depois das necessidades do projeto
Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo
Bianca Carvalho, fundadora de uma ONG na Baixada Fluminense: vida pessoal vem depois das necessidades do projeto Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

RIO - A lista de sonhos de Bianca Simãozinho Carvalho, de 28 anos, tem muitos desejos que precedem o de ser mãe. Primeiro ela quer terminar sua pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas, ao mesmo tempo em que aprende a falar inglês. Depois pretende fazer mestrado e também um intercâmbio no exterior. Em seguida, talvez seja o momento de ter um filho. Comum a tantas jovens de famílias com recursos, uma trajetória como essa é bem mais rara no lugar onde Bianca nasceu: o bairro da Chatuba, em Mesquita, na Baixada Fluminense.

Formada em serviço social, Bianca nunca foi uma pessoa comum. Em um dos lugares mais pobres da Baixada, ela criou, com apenas 16 anos, a ONG Mundo Novo, que atende cerca de 500 crianças e adolescentes. Por lá já passaram, desde que tudo começou, mais de cinco mil beneficiados. Com uma estrada já percorrida, Bianca não é mais a menina de 16 anos que surpreendeu o Brasil com sua solidariedade ao participar do programa "Domingão do Faustão". Quem caminha ao seu lado nos corredores e salas da nova sede da ONG, construída com as mãos e o suor de toda a família, percebe que ela se tornou uma gigante, apesar do 1,53 metro de altura. "Tia, estou com fome", diz uma menina de uns 6 anos. "Tia, posso te dar um beijo?", pede um guri um pouco mais velho. Atenciosa, ela pergunta à cozinheira Erivanda Fernandes - sua tia - se o almoço já está pronto. Mas primeiro dá um beijo na testa do menino.

- É assim o dia todo. Eu morro por essas crianças. O lugar onde estamos era um lixão. No início, as pessoas me olhavam e diziam que eu era louca. O terreno foi doado em 2007, mas só conseguimos começar a construção dois anos depois. Até hoje estamos em obras, sempre é preciso fazer alguma coisa - conta.

Recentemente, foi concluído o terceiro e último andar da sede, que agora ganhou um teatro com capacidade para 300 pessoas. É lá que ocorrem as apresentações culturais dos diversos cursos da Mundo Novo.

O projeto é aberto a crianças e adolescentes de todas as idades. Quem tem entre 2 e 6 anos pode frequentar as aulas de educação infantil, equivalentes às de uma escola convencional do município. Dos 4 aos 18, os jovens participam do programa Arte Com Visão, que oferece aulas de balé, jazz, teatro, artesanato, corte & costura e leitura. Além disso, desde a inauguração da nova sede, os adultos passaram a fazer parte do público-alvo da ONG. Há uma turma de alfabetização que já soma 30 alunos, além de cursos de formação em parceria com o Senac.

- Visitamos todas as famílias e fazemos um perfil socioeconômico. Sempre quisemos atender os adultos, mas não havia oportunidade, pois a sede antiga era muito pequena. Em 2011, finalmente, conseguimos dar início aos cursos para adultos - recorda ela. - O resultado foi que os jovens começaram a incentivar seus pais a frequentarem a Mundo Novo. Hoje, boa parte dos adultos é formada por parentes de crianças do projeto.

As aulas mais disputadas são as das turmas de balé, dadas em piso profissional para reduzir o risco de lesões. Entre as professoras, há uma ex-aluna do projeto: Patrícia Duarte Dias, de 21 anos. Ela estava com 12 quando entrou na Mundo Novo. Era pequena e quietinha, mas desabrochou nas aulas de dança e teatro. Hoje, Patrícia leciona não apenas na ONG, mas também numa creche de Mesquita.

- Minha vida mudou aqui dentro. Continuo sendo tímida, mas ganhei segurança e me descobri no balé - diz, orgulhosa de si.

Quando vagas são abertas, as mães chegam à porta da ONG de madrugada, algumas às 3h. Já foram avisadas diversas vezes de que todas são entrevistadas e que a escolha não se dá por ordem de chegada. Mas, segundo Bianca, "elas estão tão acostumadas a madrugar para conseguir aquilo de que precisam que os avisos não são ouvidos". É uma observação triste, porém verdadeira.

Bianca enfrenta problemas de todo tipo para manter vivo o sonho de transformar a Chatuba. Na semana passada, as aulas tiveram que ser canceladas duas vezes, segunda e quarta-feira. Motivo: faltou água no bairro de Mesquita. O problema se repete com absurda frequência, não menos que duas vezes ao mês. Com as torneiras secas, Bianca costuma pagar R$ 300 por um carro-pipa de dez mil litros - economizando muito, a água dura no máximo três dias. Dessa última vez não foi possível fazer a encomenda, por falta de dinheiro. Este ano, a jovem participou de uma audiência pública com a Cedae, quando cobrou - pela enésima vez - a solução do problema.

- Temos que improvisar, economizar água, fazer render ao máximo. Fico triste, pois são os mesmos problemas de sempre. Luto para que as crianças sintam orgulho de ser da Chatuba. Elas nunca podem sentir vergonha do lugar onde nasceram, de ser quem são. A nossa história é a nossa essência, mas é preciso viver com dignidade - afirma.

Bianca ergue a cabeça diante das dificuldades. Lembra que as coisas já foram mais difíceis. Nos primeiros anos do projeto, ela organizava as oficinas de teatro, dança, desenho e artesanato na sua própria casa. A mãe, Lucimar Simãozinho Carvalho, se lembra de tudo.

- Com 9 anos, ela começou a escrever pequenos livros. Estava sempre quietinha, escrevendo, chegamos a pensar que ela era doente. Aos 13, conseguimos publicar o primeiro livro, chamado "Reino do amor". Uma amiga nos ajudou na edição, fizemos o lançamento no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes. Foi a primeira vez que pisei em um teatro - lembra.

Pedro Werneck, presidente da ONG Instituto da Criança, que se dedica a encontrar investidores dispostos a patrocinar projetos sociais, é um dos parceiros e admiradores da Mundo Novo.

- Existe um tipo de pessoa que é capaz de mudar o mundo. Ela vê um problema e faz alguma coisa a respeito, não importam as dificuldades. Bianca é assim, uma legítima empreendedora social.

A jovem casou-se há cinco anos com um militar da Marinha, com quem já está há oito. Mas nem os pedidos da mãe devem fazê-la engravidar tão cedo. Com tantos pequenos ao seu redor, não é de surpreender que ela não queira filhos agora. É como se já os tivesse.

- Todo dia é uma batalha, mas também uma vitória. Existem crianças que só comem aqui, pois os pais não cuidam delas. Algumas chegam subnutridas, até sujas. Eu me sinto responsável, quero que elas saibam que é possível mudar - afirma. - Tudo começa com um sonho.