Rio

Policial civil atira em dois ladrões, médica socorre criminoso que a ameaçava e PM faz deboche

Viagem de ônibus da linha 2329 termina com policial militar dizendo que assaltante ensanguentado 'vai ver o diabo de perto'
Buracos de balas no para-brisa do ônibus: um policial civil baleou dois dos três bandidos que assaltavam passageiros da linha Recreio-Castelo Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Buracos de balas no para-brisa do ônibus: um policial civil baleou dois dos três bandidos que assaltavam passageiros da linha Recreio-Castelo Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

RIO - Cena um: o policial civil Eduardo Bezerra, de 40 anos, arrisca-se. Saca sua pistola .40 e decide atirar em três assaltantes dentro de um ônibus. Com boa mira, apurada recentemente durante um curso de tiro em São Paulo, ele faz disparos certeiros, derruba dois dos bandidos e põe o terceiro para correr. Nunca baleara alguém antes, tornou-se policial há apenas um ano. Sentiu um “medo controlado” de que algo desse errado, mas não hesitou. Estava a caminho do trabalho, e, segundo outros passageiros, disse a seguinte frase antes de abrir fogo: “Esse não vai assaltar nunca mais”. Bezerra, no entanto, nega. Acostumado a praticar esportes radicais — seu preferido é saltar de paraquedas —, afirma ter calculado cada gesto. O ato acaba com um herói.

Cena dois: escorre sangue pelas pernas da médica Simone Soares de Souza, de 43 anos. Suas alparcatas marrons ficaram manchadas de vermelho, banhadas de sangue. Ela estava ao lado de um dos bandidos, que caiu sobre seu colo após ser atingido. Simone acabara de ouvir do criminoso que todos morreriam se não mantivessem a calma. Difícil manter-se sereno durante o assalto a um ônibus em movimento. A médica conseguiu, e foi além. Com o baleado aos seus pés, atendeu-o ali mesmo, do jeito que podia. Ficou ao seu lado quando todos desceram do veículo. “Onde houver uma vida, a medicina tem que atuar”, disse mais tarde. Foi a décima vez que ela foi assaltada.

Cena três: “Aí, vai ver o diabo de perto”, diz um policial militar, em tom de piada, para o bandido ensanguentado. Inconsciente, com uma bala alojada na cabeça, o moribundo não esboça reação. O PM ainda pisa sobre sua perna esquerda com todo o peso de seu corpo. Tira de um bolso o celular, filma, fotografa. Está à vontade. Assaltado pela segunda vez esta semana, o motorista Carlos Barbosa, de 35 anos, também registra imagens do criminoso entre a vida e a morte. Terá uma história dramática para contar quando chegar em casa, e fotos para provar. Antes de a ambulância deixar o local, o mesmo policial repete a piada macabra: “Vai ver o capeta de perto”. Parece gostar da frase.

Esses são os três atos principais do espetáculo de horror vivido na manhã desta quarta-feira, na Barra, por passageiros de um ônibus da linha 2329, que vai do Recreio ao Castelo. A sequência se passou em poucos minutos — tempo suficiente para unir, no inesperado da quase tragédia, vidas que nunca se cruzariam. Um policial civil solteiro e sem filhos, uma médica que põe seu dever acima de tudo, um bandido com 12 passagens pela polícia — a primeira quando era adolescente —, o PM que faz chacota. E também os outros passageiros, como o analista de sistemas Dennis Lobato, de 41 anos, que elogiou a intervenção e a frieza de Bezerra:

— Ele teve calma e boa pontaria. Surpreendeu a todos nós.

Eduardo Bezerra (com um distintivo): convicto Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Eduardo Bezerra (com um distintivo): convicto Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Outros passageiros também defenderam a ação do policial, embora pairasse no ar o fantasma do sequestro ao ônibus 174, que terminou com a morte de uma inocente em junho de 2000. A analista financeira Cláudia dos Santos, de 32 anos, chegou a ir até a 16ª DP, na Barra da Tijuca, para testemunhar a favor de Bezerra.

— Penso que ele foi um herói, que está muito bem treinado. Foi impressionante.

Nadine do Carmo, de 26 anos, técnica de enfermagem, relatou os momentos de pânico dentro do ônibus que ela pega diariamente para ir ao trabalho:

— Dei o dinheiro e ele (um dos assaltantes)também pegou minha carteira e meu relógio. Ele ainda estava com minha nota de R$ 50 numa mão quando foi levado para um hospital por bombeiros.

Já a conduta do policial militar que pisou sobre um dos criminosos — esse momento foi registrado em vídeo pelo repórter fotográfico Gabriel de Paiva, do GLOBO —, será investigada. De acordo com a corporação, o PM, que não teve o nome divulgado, terá que prestar esclarecimentos. Segundo o tenente-coronel Sérgio Chalioni, já foi instaurada uma sindicância para apurar o caso e, se forem constatadas irregularidades, o policial será punido. Agentes da 16ª DP (Barra da Tijuca) que investigam o assalto acreditam que o trio de ladrões é responsável por dezenas de roubos praticados na região.

'FIZ MEU DEVER', DIZ MÉDICA

Passado o susto, Simone disse não saber ao certo o que sentiu durante o assalto.

— Sou impulsionada pela vida. E ali tinha uma vida no chão. Acho que tive uma atitude normal, fiz meu dever, a gente tem que cuidar um do outro. Se ele é criminoso, quem vai dizer é a Justiça.

Sobre os cuidados médicos, ela diz que não havia muito o que fazer, pois não tinha instrumentos. Perguntou o nome do assaltante, ele não respondia, pois já “estava com a respiração bem comprometida”. Simone trabalha em um hospital público no Centro. Conta que vê muitos problemas no dia a dia, mesmo assim, acredita que dias melhores virão:

— Eu acredito no Rio, no carioca, no brasileiro. A gente tem jeito, sim.

A médica Simone de Souza (à direita), que socorreu assaltante baleado Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
A médica Simone de Souza (à direita), que socorreu assaltante baleado Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Acostumado com a rotina de insegurança que ronda a profissão, o motorista Carlos Barbosa diz já ter sido assaltado várias vezes — o roubo de ontem foi o segundo esta semana. Ele parecia ser um dos menos abalados.

— Um dos bandidos apontava a arma para mim enquanto os outros assaltavam os passageiros. Já fui assaltado outras vezes, mas, dessa vez, senti mais medo, por causa dos tiros.

O motorista Carlos Barbosa fotografa um dos feridos Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo
O motorista Carlos Barbosa fotografa um dos feridos Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Os bandidos foram identificados no fim do dia. Atingido na cabeça, Mayron Gomes dos Santos, de 25 anos, foi internado em estado grave no Hospital municipal Miguel Couto. De acordo com a Secretaria municipal de Saúde, até o fim da noite, ele permanecia em coma induzido e respirava com a ajuda de aparelhos. Em sua ficha criminal, constam 12 anotações. Carlos Rafael Silva Augusto, de 24 anos, foi atingido por três tiros na barriga, mas nenhuma bala atingiu órgãos vitais. Ele foi operado no Hospital municipal Lourenço Jorge e seu quadro clínico é estável. Carlos tem seis passagens pela polícia.

O papel de cada um nessa viagem infernal foi analisado pelo antropólogo Roberto DaMatta. Segundo ele, seu ‘‘coração sangra’’ ao imaginar o policial pisando sobre o criminoso ensanguentado.

— É uma história bíblica, estamos vivendo tempos bíblicos, são cenas do Velho Testamento. Por mais que o sofredor seja um marginal, ele é um ser humano. Entre a vida e a morte, é preciso escolher a vida. O que a médica fez foi cumprir seu juramento. Ela se pôs ao lado da vida — afirma DaMatta.