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Mario Sergio Conti O colunista escreve às quintas
Mario Sergio Conti Foto: O Globo

Marina entre junho e outubro

O derretimento de sua candidatura parece mostrar como a ordem vigente vem se recuperando

A prudência e a experiência recomendam que se fique com um pé atrás com as pesquisas eleitorais. A poucos dias do primeiro turno, porém, o derretimento da candidatura de Marina Silva parece mostrar como a ordem vigente vem se recuperando. Inclusive com o concurso da candidata do PSB, que se apresenta como uma política tradicional — conformista e conciliatória. A pane da sua campanha é uma etapa no esvanecimento do movimento social mais terrível desde a campanha popular pela derrubada de Collor: os dias de ira de junho do ano passado.

Naquele mês, relembre-se, uma faísca acendeu a nação. Milhões de pessoas foram às ruas e fizeram com que o preço das passagens de ônibus e metrô baixasse, impondo uma derrota lancinante ao poder político institucional, tanto da situação ou da oposição. Apesar da vitória, o movimento ficou mais agressivo, espalhou-se, enfrentou o Estado e levantou novas reivindicações. Ficou impossível classificá-lo pelos parâmetros usuais de esquerda e direita, PT e PSDB, que reagiram feito baratas tontas diante da vassourada.

Marina, que obtivera quase vinte milhões de votos na eleição de 2010, foi a única figura de proa da política a emergir incólume da grossa arruaça que, desordenadamente, buscava um novo estado de coisas. E o que ela fez desde então foi se afastar cautelosamente da energia bruta oriunda da conflagração. Resultado: não conseguiu nem montar o seu partido, a Rede.

A morte de Eduardo Campos lhe deu uma segunda chance. Ela se tornou candidata e, mais do que depressa, se aninhou no status quo . Parou de falar das manifestações de junho, adotou um discurso conservador, escorou-se em marqueteiros e se aproximou de potentados da grande finança. Entre eles, a mais sintomática é a herdeira de uma grande casa bancária, Neca Setúbal. Proprietária de algumas centenas de milhões de dólares, ela teima em se apresentar como uma humilde educadora. Como se a sua fortuna pessoal fosse um detalhe biográfico sem consequência.

Octavio Paz escreveu nalgum lugar que a corrupção numa sociedade começa pela corrupção da linguagem. Está certo que o idioma da política está em crise em tudo quanto é canto, e pouco expressa da vida concreta aqui e alhures. Mas o linguajar de Marina, de um new age neobarroco e pernóstico, é corrupto na raiz. Espremendo-o, o bagaço que sobra é o regressivo “governo dos bons”. Como não se está na França de Voltaire, e sim no Brasil de Silvio Santos, o esculhambado poder iluminista quer dizer uma coisa só: governo oligárquico.

Com isso, ela contribuiu com o seu quinhão para evitar a superação de junho. “Superação” é um conceito ilustre do vocabulário filosófico. Significa, na tradição contraditória que vem de Hegel, o choque de um estado de coisas com o seu contrário, dando origem a uma síntese que os incorpora numa nova negação. Com Marina, a superação adquiriu feição individual e circular, num moto perpétuo paralisante. A superação que ela busca está nos manuais de autoajuda: a menina oprimida e doente veio do Acre e venceu as dificuldades. Triunfou numa sociedade a ser maquiada, pois que propicia a quem se esforçar a possibilidade de superação. Salve-se quem puder.

Ninguém cultivou a ilusão de que Marina tivesse algo do gume de Rosa Luxemburgo, longe disso. Até porque não está dado que, fosse a musa verde contundente, o outubro de agora pudesse superar o junho passado. Os grandes partidos fizeram de tudo para que as eleições transcorressem vicariamente, com os seus candidatos no papel de vigários, encarnações do poder maior. (Um pouco de filologia: “vigário” tem a mesma raiz semântica que “vigarista”, et pour cause ).

Basta ver o óbvio: não houve passeatas, comícios, atos públicos, agitação de rua. Não houve nada que se assemelhasse à confusão criativa de junho, quando os objetos atomizados da política se tornaram sujeitos, ainda que por poucas semanas. No máximo, aparecem uns mirrados cabos eleitorais, pagos para fazer o papel de figurantes em espetáculos para a televisão, e tiram selfies com os bem assentados na vida. O pau só come na internet, onde a sociedade cultiva e dá vazão ao seu lixo. Como o falatório virtual não significa força material, a internet serve de dissolução para impulsos reais.

Basta ver outra obviedade: a campanha para o parlamento no horário eleitoral. Lá estão os atemorizantes suspeitos de sempre, prometendo mundos e fundos num tartamudeio de poucos segundos. Boa parte deles promete até reformar o sistema político atacado em junho — e que garante o seu sustento, beneficiando-os de mil maneiras. Que os responsáveis pela reforma da política venham a abdicar o seu poder é mais uma quimera. Uma saída haverá, mas não parece que virá das urnas.

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