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Matías Molina lança primeiro volume de trilogia sobre história da imprensa brasileira

No livro, jornalista e historiador cobre período até 1840, mostrando papel dos jornais na formação política do país

Prelo Stanhope, que chegou ao Rio de Janeiro junto com a frota que trouxe a Família Real, em 1808
Foto: Divulgação
Prelo Stanhope, que chegou ao Rio de Janeiro junto com a frota que trouxe a Família Real, em 1808 Foto: Divulgação

RIO - O ano era 1808. O cenário, o cais do porto de Lisboa. Funcionários da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de Portugal esperavam ansiosos pelos dois prelos Stanhope (a marca mais respeitada de prensa da época) e por várias caixas de tipos móveis que o governo havia encomendado ao Reino Unido. O material serviria à impressão de documentos oficiais e facilitaria enormemente o dia a dia do governo português. Era, portanto, motivo de comemoração. Mas o francês Napoleão Bonaparte se aproximava de Lisboa a passos largos e, antes mesmo que os funcionários pudessem pôr os olhos nos desejados aparelhos, eles foram embarcados no navio Medusa e cruzaram o Oceano Atlântico, integrando a frota que trouxe a Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro. Foi assim — meio aos trancos e barrancos — que a imprensa chegou ao Brasil.

A saga, contada no primeiro volume da trilogia “História dos jornais no Brasil”, que o jornalista e historiador Matías Molina lança pela Companhia das Letras, ainda teve novos capítulos. Na colônia, eram poucas as pessoas capazes de manusear o prelo e os tipos móveis. Então o governo decidiu enviar a Londres alguém que pudesse aprender tudo sobre os Stanhope e tirar o máximo deles. O escolhido passou dois anos estudando no Reino Unido e, quando voltou, pronto para fazer deslanchar a imprensa brasileira, teve um “desacordo salarial” e retornou a Lisboa — levando consigo todo o conhecimento adquirido. Insistente, D. João ordenou então que um inglês especializado no assunto fosse trazido ao Brasil para que desse aulas a uma equipe. O selecionado, entretanto, aportou no Rio de Janeiro sem falar português, e o workshop naufragou.

Essas são algumas das muitas histórias reunidas por Molina neste primeiro volume, que acompanha a trajetória da imprensa brasileira do período colonial até 1840, na Regência. Os dois próximos livros, ainda sem data de publicação, tratarão da imprensa carioca e paulista, respectivamente, e se estenderão até os dias atuais. Neles, o escritor também levantará hipóteses sobre o futuro da imprensa, com destaque para a adequação ao ambiente da internet e para a opção por jornais populares.

Nascido em Madri e naturalizado brasileiro há seis décadas, o jornalista e historiador Matías Molina, de 77 anos, foi editor-chefe do grupo de revistas técnicas da Editora Abril, editor de Economia do jornal “Folha de S.Paulo” e correspondente em Londres e editor-chefe da “Gazeta Mercantil”. Nos últimos seis anos, encheu sua casa, em São Paulo, “com todas as publicações sobre a imprensa brasileira de que se tem notícia”, diz. Com isso, comprovou que até 1808 não circulava por aqui qualquer publicação e que a primeira oficina de fundição só surgiu em 1859, mais de 400 anos depois de o alemão Johannes Gutenberg imprimir as primeiras Bíblias do mundo e dar início a uma revolução que ecoa até hoje.

BRASIL SÓ TEVE IMPRENSA DEPOIS DE OUTRAS COLÔNIAS

Nos primeiros capítulos de “História dos jornais no Brasil — volume I”, Molina revisita uma polêmica das grandes: por que não houve imprensa no Brasil colônia se Portugal já conhecia a tipografia desde 1487, 13 anos antes de Pedro Álvares Cabral aportar por aqui? De quem é, afinal, a culpa por esse atraso de quase quatro séculos?

— Esse é um debate sem fim — adverte Molina, rindo. — Mas temos dois fatos concretos com os quais podemos trabalhar. O primeiro é que não se conhece nenhum decreto nem qualquer lei vinda de Lisboa que tivesse proibido a imprensa no Brasil. O segundo é que nas outras colônias portuguesas, na África e na Ásia, a tipografia foi instalada pelos jesuítas já no século XVI e XVII. Então, ao que tudo indica, só o Brasil ficou de fora mesmo.

Molina pontua ainda que em 1502, apenas dez anos depois da descoberta da América, a Coroa espanhola autorizou a impressão no Novo Mundo. As primeiras tipografias do continente foram instaladas no México (então Nova Espanha) e no Peru (Nova Castela) poucos anos depois da chegada das caravelas de Cristóvão Colombo. Há documentos históricos, impressos na região, que datam de 1533. O Brasil teria, portanto, ficado realmente para trás. Em sua obra, Molina levanta algumas hipóteses para isso.

— Sofremos com o tamanho do país, a baixa densidade demográfica, a dificuldade do transporte, a deficiência dos Correios, a baixa renda, mas, sobretudo, com o elevado nível de analfabetismo e a pouca escolaridade. Talvez esse tenha sido o principal motivo do atraso brasileiro com relação à imprensa. Talvez seja isso o que nos distingue dos países vizinhos.


O jornalista e historiador Matias Molina
Foto: Fernando Donasci
O jornalista e historiador Matias Molina Foto: Fernando Donasci

A Universidade de Santo Domingo, na República Dominicana, por exemplo, foi fundada em 1538. A de San Marcos de Lima, no Peru, em 1551. Os brasileiros, por sua vez, precisavam ir a Coimbra — única universidade em todo o Império português — para ter um curso superior. Dados históricos apresentados por Molina indicam que, entre 1775 e a Independência, só 720 brasileiros se graduaram em Portugal. “No mesmo período”, escreve o autor, “da Universidade do México saíram 7850 bacharéis e 473 doutores e licenciados".

Mesmo tendo chegado tarde ao território nacional, a imprensa foi peça fundamental para o desenrolar da História do Brasil, pondera Molina.

“Desde 1808, a imprensa ajuda a formar a sociedade brasileira. Ela serviu para construir a unidade nacional e até hoje pauta os principais debates do país”

Matías Molina
Jornalista e historiador

— Desde 1808, a imprensa ajuda a formar a sociedade brasileira. Ela serviu para construir a unidade nacional e até hoje pauta os principais debates do país. É claro que há momentos de maior e menor influência dela. É claro que, antigamente, o jornal era a única fonte de informação, e que depois vieram o rádio, a televisão e a internet, fazendo com que ele perdesse força. Mas ainda vêm dos jornais as informações consideradas mais confiáveis, mais profundas, aquelas que realmente repercutem e fazem o país pensar — afirma Molina.

Depois de repassar a história de centenas de publicações, o autor apresenta nas 560 páginas do primeiro volume um perfil detalhado de 20 jornais que circularam pelo Brasil até 1840. Molina dá informações sobre preço de venda e de assinatura, sobre a diagramação, sobre os responsáveis por todos esses jornais e revistas e, é claro, sobre sua influência política nos rumos do país.

O livro apresenta saborosas histórias de amor e ódio, de rancores aparentemente eternos e das mais divertidas intrigas da Corte. Usando linguagem simples, sem cair no tom enciclopédico, Molina traz à tona casos curiosos como o da verborrágica briga de D. Pedro com o português João Soares Lisboa por meio das páginas de “O Espelho” e “O Correio do Rio de Janeiro”. De um lado, estava o príncipe regente, nascido em berço de ouro e intelectualmente bem formado. Do outro, um comerciante iletrado disposto a defender com unhas e dentes a Independência do Brasil.

NOS PRÓXIMOS VOLUMES, IMPRENSA DO RIO E SP ATÉ SÉCULO XXI

Molina chama atenção para três jornalistas que, em sua opinião, jamais poderão ser esquecidos pelo povo brasileiro: Hipólito da Costa, do “Correio Braziliense”; Gonçalves Ledo, de “Reverbero Constitucional Fluminense”; e Evaristo da Veiga, de “A Aurora Fluminense”.

— Em comum, esses homens têm o fato de terem encarnado os jornais que publicavam, de terem sido a essência do jornalismo que praticavam. Tanto que, quando se afastaram da linha de produção, por morte, cansaço ou doença, os jornais que faziam simplesmente minguaram e desapareceram. Evaristo da Veiga, por exemplo, é para mim um dos dez maiores jornalistas do país até hoje. Se não fosse pelo tom moderador que ele adotou durante o período da Regência, provavelmente o Brasil teria se esfacelado, repetindo o ocorrido nas colônias espanholas. E nós estaríamos vivendo hoje em dia num país completamente diferente.

Para o segundo e o terceiro volumes, que Molina diz já estarem “95% escritos”, ele promete não só novas histórias — dessa vez sobre o passado recente da imprensa de Rio de São Paulo —, como também uma avaliação sobre seu futuro.

— O maior desafio pela frente é, sem dúvida, o da adaptação à internet. Existe uma preocupação imensa na imprensa atual com relação a isso, e quero ter alguns capítulos dedicados a esse assunto. Na minha opinião, o futuro a curto e médio prazo seguirá por dois caminhos. Ou os jornais passam a fazer uma versão robusta para a internet ou partem para a venda a preços muito baixos — diz Molina.