Cultura Filmes

Ficção científica brasileira vê produção crescer enquanto tenta se firmar como gênero

Diretores afirmam que apostar no gênero exige capacidade de invenção

Cena de ‘Deserto azul’, de Éder Santos
Foto:
Divulgação
Cena de ‘Deserto azul’, de Éder Santos Foto: Divulgação

RIO — Adirley Queirós sempre quis fazer um filme sobre uma realidade distópica, com o porte de produções milionárias como “Blade runner — O caçador de androides” (1982), ou “Mad Max” (1979). Como ficou claro que dificilmente conseguiria dinheiro para realizar sua ambição no Brasil, redimensionou seu sonho para o tamanho de “Branco sai, preto fica”, longa-metragem de ficção científica realizado com modestos R$ 220 mil de um edital de apoio para documentários do Distrito Federal.

Em cartaz em três salas no Rio, o filme é um exemplo de como o gênero, cada vez mais popular entre os realizadores locais, precisa se reinventar para caber no cinema brasileiro. “Branco sai, preto fica” usa um episódio real, envolvendo violência policial contra um baile de música negra ocorrido na cidade-satélite de Ceilândia, nos anos 1980, para imaginar o Distrito Federal em 2073, na qual a população local planeja uma vingança contra Brasília, que exige passaporte dos moradores das periferias.

— Fazer filme de ficção científica no Brasil depende de nossa capacidade de invenção, de improvisação. Foram quatro anos de pesquisas, buscando soluções simples e baratas para contar uma história que se passa no futuro. Cenografamos fachadas de casas de Ceilândia, criamos objetos e roupas e até um elevador externo — conta o diretor de 44 anos, que já prepara uma nova investida no filão, com um filme sobre uma sociedade dominada por mulheres. — Tem um monte de loucuras, até descoberta de petróleo em Ceilândia.

EXPOSIÇÃO GEROU CENÁRIOS

Criatividade também foi a palavra de ordem nos bastidores de “Deserto azul”, do videoartista mineiro Éder Santos, com estreia prevista para o segundo semestre deste ano. Exibido no Festival do Rio, na Mostra de São Paulo do ano passado e na Mostra Tiradentes deste ano, o filme é descrito por seu autor como uma “ficção científica metafísica” ambientada em um cenário futurista, no qual um homem (Odilon Esteves) busca a transcendência em um mundo sem guerras, religiões ou problemas sociais.

Durante muito anos, o projeto esbarrou no orçamento exigido pelos cenários imaginados pela artista plástica Maria Tavares. Para viabilizá-lo, Santos refez o roteiro e convidou 16 artistas plásticos — a brasileira Adriana Varejão, a americana Rita Meyers e a holandesa Judy Whitman entre eles — para criar instalações para uma exposição que ocupou o Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, em 2010. O público visitava as peças durante o dia, e equipe de Santos as usava como cenário à noite.

— Adaptamos cada uma das instalações à trama. “Saunas”, uma pintura da Adriana Varejão, acabou virando um banheiro no filme — conta o diretor de 54 anos, que já desenvolve um novo projeto do gênero, “A casa do girassol vermelho”, inspirado no livro de contos homônimo do escritor mineiro Murilo Rubião. — A história se passa em uma fazenda onde se cultivam girassóis. Terá um visual right tech , em que todos os objetos são de madeira e máquinas são movidas a vapor.

A primeira experiência em ficção científica no Brasil de que se tem notícia é de 1908, o curta-metragem “Duelo de cozinheiras”, dirigido pelo português Antônio Leal (1876-1947), vendido para o público como uma “fita cômico phantastica”. De lá para cá, as mais bem-sucedidas incursões no filão são releituras das narrativas mais populares de sua época: no período das chanchadas, tivemos a comédia musical “Carnaval em Marte” (1954), de Watson Macedo; depois, títulos como a comédia erótica “O inseto do amor” (1980), de Fauzi Mansur.

Lançado em 2011, “O homem do futuro”, de Cláudio Torres, chegou na esteira do sucesso das comédias românticas. Estrelado por Wagner Moura, o filme, sobre um cientista que viaja no tempo para desfazer uma humilhação sofrida no passado e assim alterar o presente, teve um orçamento mais generoso, de R$ 7 milhões. O diretor cresceu consumindo livros de Julio Verne e Isac Asimov e programas de TV como “O túnel do tempo”, mas acredita que existe um imaginário próprio brasileiro a ser explorado.

— Somos o país do ET de Varginha, da mula sem cabeça e de Thomas Green Morton. Temos escritores e diretores maravilhosos, e supervisores de efeitos especiais tão bons quanto os gringos — enumera o diretor carioca, de 51 anos. — O que nos falta é uma grande bilheteria, um blockbuster nacional. Até “Tropa de elite”, ninguém achava que brasileiro sabia fazer policiais. “O homem do futuro” fez 1,4 milhão de espectadores. Se tivesse feito 3 ou 4 milhões, talvez pudesse ter implementado o gênero no Brasil.

Para Torres, o tamanho do orçamento não é determinante na qualidade do produto final:

— O bonito desse gênero é exatamente o fato de que a fantasia muitas vezes pode prescindir de dinheiro. O “Deserto azul”, por exemplo, é um filme bem barato ( R$ 2,3 milhões ) e que tem uma incrível realização — opina.

Autor de “O som ao redor” (2013), um dos filmes brasileiros mais premiados dos últimos anos — aqui e lá fora —, o pernambucano Kleber Mendonça Filho avança sobre versões de ficção científica com dois projetos de baixo orçamento. “Aquarius”, que já conta com o prêmio de R$ 1 milhão de um edital do BNDES, é uma alegoria sobre o espaço urbano, centrada na batalha surda entre uma viúva rica e a construtora que comprou o prédio onde ela mora. Já “Bacurau” é, segundo o cineasta, o seu filme “mais experimental, sobre como o Brasil se vê diante do mundo”.

— O país já é por si só uma obra de ficção científica. Me espanta que o cinema brasileiro não reconheça isso oficialmente fazendo filmes de gênero. O Brasil tem o tom errado, a inversão de valores e a ironia do grotesco no seu cotidiano, está tudo pronto. É matéria-prima rica para o cinema — critica.

PARCERIA COM SUL-COREANOS

Um dos modelos mais antigos do gênero sci-fi, o que cria realidades alternativas para tecer comentários sobre o presente, é aplicado em “Pílula”, de Douglas Duarte (“Personal Che”), que deve ser rodado em meados de 2016. O enredo descreve uma sociedade de uma época indeterminada, em que uma empresa desenvolve uma pílula que impede que as pessoas adoeçam. O problema é que só a elite tem acesso ao medicamento. Para acelerar a produção, Duarte se associou à produtora sul-coreana Jan Junyoung, responsável por títulos como “O hospedeiro” (2006).

— Aqui, o que menos interessa é a ciência, mas a situação dramática que dispara a ação — explica o diretor, reforçando o caráter político de seu filme. — O paralelo com o Brasil é óbvio. Quando começei a escrever o roteiro de “Pílula”, o país estava se achando uma potência. Quero problematizar isso. Não sei se é bom ou ruim. Está bastante claro, agora, que o desenvolvimento não é igual para todos. Apesar dos avanços enormes, as grandes empresas têm cada vez mais poder de decisão nas políticas do governo.