23/10/2014 10h51 - Atualizado em 23/10/2014 11h56

Diretores retratam amor obsessivo em 'A vida privada dos hipopótamos'

Maíra Bühler e Matias Mariani lançam filme com narrador 'tipo Pinóquio'.
Documentário estreia na Mostra de SP nesta quinta, com debate após sessão.

Letícia MendesDo G1, em São Paulo

Entediado com sua vida nos EUA, um homem decide se aventurar na Colômbia. O propósito da viagem é conhecer os hipopótamos do traficante Pablo Escobar, que foram abandonados em seu zoológico particular após sua morte. Contudo, ele se apaixona por uma mulher misteriosa. A celebridade da história é Christopher Kirk, o protagonista do documentário "A vida privada dos hipopótamos", dirigido por Maíra Bühler e Matias Mariani. O filme estreia nesta quinta-feira (23) na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com a presença dos diretores para um debate após a sessão. (Assista ao trailer acima)

V., a misteriosa colombiana de quem Chris fala obsessivamente, não aparece em momento algum do filme. Mas o espectador sabe que ela é o motivo dele ter sido preso em uma cadeia de São Paulo, de onde saiu em 2013. O documentário tem imagens de arquivo e dados recuperados no computador do presidiário. Em depoimentos, Chris é definido por seus amigos como a encarnação do personagem Pinóquio, o que explicita que não devemos confiar totalmente em sua história. Leia a entrevista com os diretores Maíra Bühler e Matias Mariani:

G1 - Como a história do Christopher Kirk afetou vocês para dedicar um longa só para ele? Afinal, sua sentença nem é incomum.
Maíra Bühler -
Não foi a sentença do crime que ele cometeu o que nos motivou a fazer um filme sobre ele. Talvez este seja de fato o aspecto que menos nos interesse na história. O que nos afeta no personagem era a sua habilidade de narrar esse conto ambíguo da relação obsessiva entre ele, um norte-americano do interior, e V., uma espécie de "femme fatale"  colombiana. Ao mesmo tempo, nos fascinava a ideia pouco usual de fazer um filme sobre um americano, invertendo a lógica comum na qual os americanos fazem filmes sobre nós, os "outros". Havia nisso um aspecto antropofágico, ouvir uma história e reinventá-la criativamente. Por fim, algo que parecia bastante fascinante era contar essa história a partir de registros que ele fez de sua relação obsessiva com V. em seu computador.

Matias Mariani - O que nos atraiu a ele não foi a singularidade da pena. Entrevistamos centenas de presidiários para o nosso documentário anterior, "Ela sonhou que eu morri", e, apesar de todos terem sido presos por tráfico, a singularidade das histórias era o que nos atraía. A cadeia só como ponto focal, não como tema. E foi esse o mesmo caso de "A vida privada dos hipopótamos".

Christopher Kirk em 'A vida privada dos hipopótamos' (Foto: Divulgação)Christopher Kirk em 'A vida privada dos hipopótamos' (Foto: Divulgação)

G1 - Como foi o processo de pesquisa? Quanto tempo vocês demoraram para juntar todo esse material sobre a história dele com a V.?
Maíra -
Foi um longo processo. Conhecemos Chris em 2009, em 2010 viajamos aos Estados Unidos, encontramos seus amigos e visitamos sua cidade natal. Ainda em 2010, fizemos uma cópia dos 80 gigas do HD ao qual ele nos deu acesso e que tinha todos os tipos de registros sobre a história dele com a V. (fotografias, vídeos, trocas de mensagens, chats...). De volta ao Brasil, passamos anos montando essa narrativa labiríntica até ficarmos felizes com o filme. Neste meio tempo, também entrevistamos pessoas-chave para a história em conferências online por Skype.

Matias - Esse HD mencionado pela Maíra se tornou uma fonte inextinguível de material para o filme, a fonte para a qual sempre voltávamos quando o processo de edição “emperrava” por algum motivo.  Diferente de um documentário clássico, no qual se está limitado pelas gravações feitas, nós tínhamos infinitas possibilidades narrativas que vinham de dentro daquele HD.

G1 - Por que não revelar a identidade de V.?
Maíra -
V. é um personagem oculto, uma espécie de "Capitu", uma projeção do ponto de vista de Chris, algo que diz respeito mais a essa fabulação dele sobre uma mulher do que a uma mulher real. O que nos interessava para contar essa história é a intangibilidade da personagem, a incapacidade dele de "apreendê-la" completamente, de dominá-la absolutamente, de compreendê-la em todos os aspectos. Essa face misteriosa é a força deste personagem que não se revela. Acreditamos que o filme fala dessa incapacidade de sabermos toda a "verdade" e abre ao espectador inquietações que dizem respeito à natureza das relações humanas.

Matias - Não entrevistá-la foi uma das primeiras escolhas conceituais que fizemos – esta escolha deixa evidente que o filme não trata da V. verdadeira, que pode ou não ter existido, mas sim da personagem que habita a narrativa de Chris. Nesse sentido, não mostrar o rosto dela é uma metáfora que nos pareceu apropriada para o papel que ela ocupa no filme.

Cena de 'A vida privada dos hipopótamos' (Foto: Divulgação)Cena de 'A vida privada dos hipopótamos' (Foto: Divulgação)

G1 - Vocês ainda mantém contato com o Chris? Ele viu o filme?
Matias -
Sim, mantemos contato esporádico com ele, a última vez que o vimos foi quando ele foi a estreia do filme no festival FID Marseille, na França, o que foi uma situação bastante insólita. Ele já tinha assistido ao filme antes e, apesar de não concordar com tudo retratado ali, foi capaz de se reconhecer nele.

Maíra - Quando ele assistiu ao filme, ficou claro que ele tinha se transformado de fato em personagem de uma história da qual, até então, ele se sentia narrador com plenos poderes. Naquele momento, ele percebeu que havia uma nova camada construída por nós, os diretores, sobre a história de V.

G1 - Vocês chegaram a duvidar/desconfiar de alguns fatos do depoimento do Chris? O filme pode ser considerado um trabalho jornalístico?
Matias -
Sempre, até hoje duvidamos/desconfiamos. Acho que isto está na base do filme, essa utilização narrativa da dúvida se o relato é verdadeiro ou mentiroso. O filme não o trata como um narrador idôneo, a utilização da metáfora do Pinóquio logo no começo já deixa claro que não devemos confiar nele integralmente.

Maíra - Nunca quisemos fazer do filme um trabalho jornalístico. O filme é construído com ferramentas da ficção para afirmar nosso compromisso com a história. O nosso maior interesse é a ambiguidade, a não apreensão absoluta, a condução do espectador por este labirinto de especulações.

Sessões de "A vida privada dos hipopótamos":
Quinta (23), 20h10 - Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca 3 (Rua Frei Caneca, 569, 3º piso, Consolação)
Sábado (25), 16h30 - Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca 1 (Rua Frei Caneca, 569, 3º piso, Consolação)
Quarta (29), 17h50 - Cinesala Sabesp (Rua Fradique Coutinho, 361, Pinheiros)

Ingressos: Segundas, terças, quartas e quintas: R$ 16. Sextas, sábados e domingos: R$ 20

Maíra Bühler e Matias Mariani, diretores de 'A vida privada dos hipopótamos' (Foto: Divulgação/Mostra de SP)Maíra Bühler e Matias Mariani, diretores de 'A vida privada dos hipopótamos' (Foto: Divulgação/Mostra de SP)
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