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José Miguel Wisnik O colunista escreve aos sábados
José Miguel Wisnik Foto: O Globo

Mário de Andrade desce aos infernos

O modernista apostou tudo numa arte brasileira guiada pela pesquisa da cultura popular

Numa viagem juvenil pelo norte da Argentina, fui parar certa vez em Salta, muito perto da divisa com a Bolívia. Lá conheci o poeta e letrista Manoel J. Castilla, uma espécie de Vinicius de Moraes do altiplano andino. Entre vinhos, gins, runs e folhas de coca, que naquela região é costume mascar in natura, ele mostrou, para minha total surpresa, uma carta que recebeu de Mário de Andrade, em que este comentava o primeiro livro do poeta saltenho.

O fato confirma a lenda do epistológrafo insone da rua Lopes Chaves, pastoreando amigos através da caudalosa correspondência, conselheiro e aguilhão moral dos mais novos, travando diálogos poéticos e existenciais por toda parte, pairando “na renda fina dos Sete Saltos,/ na serrania mineira,/ no mangue, no seringal,/ nos mais diversos brasis,/ e para além dos brasis” (como disse dele Carlos Drummond de Andrade). O “Papa do Modernismo” morreu no dia 25 de fevereiro de 1945, há redondos setenta anos.

Mário não é um poeta límpido como Bandeira, claro como Cabral, densamente reflexivo como Drummond, nem um adivinhador de questões contemporâneas como Oswald. A sua poesia guarda o travo daquele “rúim esquisito” que Bandeira viu na sua obra de juventude. Mas é um pensador e artista inquieto, dilacerado de amor pelo Brasil, atuando em campos múltiplos, na poesia, na ficção, na crítica literária e de artes, na teoria, na musicologia, na etnografia, na organização da cultura. A modernização do país passa por ele na forma de uma encruzilhada: se o Brasil se moderniza deixa de ser Brasil (e perde o tesouro acumulado na criação popular coletiva), se continua Brasil, não se moderniza (e fica presa eterna do atraso, da incapacidade de sustentar projeto, de encarar os limites e o real).

Não muitos anos depois das batalhas campais da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade apostou todas as fichas numa arte brasileira guiada pela pesquisa da cultura popular. A aliança ideal do intelectual letrado com o povo, criador do bumba-meu-boi e das congadas, dos cocos e das cantorias, teria um efeito redentor sobre as distâncias sociais brasileiras. Seguiu assim até o fim, mesmo quando esse projeto se viu acuado, nos anos 1940, pelas exigências mais radicais de posicionamento político (a arte engajada na luta de classes), pelas novas cobranças da vanguarda artística (a introdução do dodecafonismo na música), complicadas ambas as exigências pelo avanço da indústria cultural internacionalizante, com a norte-americanização do gosto médio.

Pode-se dizer que morreu de tudo isso. Em 1938 o Estado Novo o dejetou do cargo de diretor do Departamento de Cultura em São Paulo. Viveu alguns anos no Rio, mergulhado em depressão, amargando o sentimento da precariedade das instituições culturais do país. De volta a São Paulo, publicava o rodapé “O banquete”, na “Folha da Manhã”, em que discutia, justamente, as contradições agônicas do papel social da arte, quando morreu do coração, num domingo à noite, aos 51 anos. O último capítulo da série inacabada chamou-se “A salada estrangeira”, e falava da pasteurização nauseante da cultura de massas.

Voltado por princípio para a pureza do folclore rural, anônimo e coletivo, e embora atento a Pixinguinha, Mário não deu maior atenção à música popular urbana, aos sambistas, aos poetas da canção, seus contemporâneos — Noel, Ismael, Wilson Batista, Dorival Caymmi. Não entreviu ali uma trilha original da cultura no Brasil. Ou melhor, viu, como sempre, mas não investiu, por princípio ou espírito de época. Num lampejo sobre “Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, pergunta numa carta: “Você já viu coisa mais humana e misturadamente humana? Tem despeito, tem esperteza, tem desabafo, tristeza, ironia, safadeza de malandro, tem ingenuidade, tem pureza lamacenta: é genial. Acho das manifestações mais complexas que há como psicologia coletiva”.

Mas mais complexo do que tudo, em Mário de Andrade, é sem dúvida “Macunaíma”, do qual se pode dizer tudo o que ele disse do samba de Ataulfo e Mário Lago e muito mais. Costuma-se ver Macunaíma de maneira esquemática, ou pelo prisma positivo (esperto, versátil, festeiro, original) ou pelo negativo (preguiçoso, inconsequente, mentiroso, incapaz). Mas o livro é uma rapsódia vivaz e agônica sobre a indecisão ambivalente desse destino, sobre as indefinições que carrega (e é mais nesse sentido que se fala em “herói sem nenhum caráter”). O nervo da questão é a incapacidade de sustentar um projeto, afundada num imediatismo infantil e quase cômico, se não fosse trágico e patético.

Quando o país entra de maneira arrevesada numa modernidade compulsória que nem a realiza (à modernidade) e nem o realiza (ao país), mostrando uma capacidade escandalosa de pôr-se a perder, “Macunaíma” brilha mais vivo o “brilho inútil” e potente das constelações e das obras de arte.

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