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‘Para azar dos meus inimigos, continuo vivo’, disse Fidel a Frei Betto

Escritor conta que líder cubano se mostrou otimista sobre a retomada das relações com os EUA e elogiou Obama

Bem-vindos. Foto de Fidel em mercado estatal em Havana: segundo Frei Betto, cubano é entusiasta de Obama e acha que a reaproximação com os Estados Unidos é ‘fundamental’
Foto: Ramon Espinosa /
AP/26-12-2014
Bem-vindos. Foto de Fidel em mercado estatal em Havana: segundo Frei Betto, cubano é entusiasta de Obama e acha que a reaproximação com os Estados Unidos é ‘fundamental’ Foto: Ramon Espinosa / AP/26-12-2014

RIO — O escritor Frei Betto desembarcou semana passada em Havana, empolgado com as primeiras negociações entre representantes dos governos de Cuba e EUA e também apreensivo com rumores de que a saúde do ex-presidente Fidel Castro, de 88 anos e que não é visto em público desde janeiro de 2014, havia se deteriorado. Na terça-feira à tarde, no entanto, após uma visita que durou uma hora e meia, saiu aliviado da casa de Fidel: encontrou-o bem mais magro, em relação à ultima vez em que se viram em fevereiro passado, mas "absolutamente lúcido", como relatou ao GLOBO. Acompanhados o tempo inteiro por Dalia, mulher do ex-presidente, os dois conversaram sobre a reaproximação com os EUA, boatos de sua morte e até física quântica. Em Havana para o Congresso Mundial de Pedagogia e palestras, Frei Betto, que é colunista do GLOBO, ouviu elogios de Fidel ao presidente americano, Barack Obama, e ao Papa Francisco. A visita ganhou destaque nesta quarta-feira na imprensa cubana. "O encontro aconteceu em um clima afetuoso, característico das amplas e fraternais relações existentes entre Fidel e Betto", noticiou o "Granma", o jornal oficial, em sua edição on-line. Fidel só não quis tirar foto: "As chances de não sairmos bem são bem maiores do que as de sairmos bem", alegou ao amigo.

Como se deu o encontro com Fidel Castro?

Toda vez que venho a Cuba, Fidel me convida à sua casa, estive com ele em fevereiro passado. Nesta quarta-feira (terça-feira) ele mandou me buscar no hotel e fiquei lá durante uma hora e meia. Há muito tempo ele não aparece em público. E no dia 3, morreu o Fidel Castro Odinga, filho de Raila Odinga ex-premier do Quênia, gerando também rumores de que ele havia morrido. Comentei com ele sobre essa coincidência. Fidel riu e disse que já morreu várias vezes, e acrescentou: "Para azar dos meus inimigos, continuo vivo." Ele está muito bem e bem mais magro. A cabeça está perfeita. O Fidel é muito detalhista, anota tudo. Quis saber onde estou hospedado, o que eu fiz, com quem falei, e sempre anotando. Ele é o homem do detalhe. Me perguntou sobre o Papa Francisco, com quem estive em abril do ano passado e quis um relato detalhado do encontro. Disse que tinha lido meu livro "A obra do artista, uma visão holística do universo", que foi traduzido agora em Cuba. E mostrou-se entusiasmado. Fidel gosta muito de cosmologia e física quântica, e o livro aborda isso. Conversou sobre as hipóteses de universos paralelos. Estava muito empolgado com o assunto e me pediu mais bibliografia sobre essa linha. Eu me comprometi a buscar mais livros sobre a evolução do universo, e de física quântica para ele. Comentei sobre a carta que ele mandou para a Federação dos Estudantes Universitários, em que aborda o reatamento das relações com os Estados Unidos. Eu disse que o diálogo é importante, é o encontro do caminhão consumista com o Lada (marca de veículos russos) da austeridade. Por enquanto, vai ser muito difícil a sintonia, porque um fala em FM e outro em AM. Ele concordou.

O que mais ele disse sobre o movimento de aproximação entre Cuba e EUA?

Ele acha fundamental, mas disse que não pode perder de vista que os EUA ainda continuam com o objetivo de colonizar Cuba. Por outro lado, avaliou que primeiro é preciso acabar com o bloqueio econômico e tirar o país da lista dos países terroristas, que os EUA demonstrem medidas concretas de boa vontade. Ele está muito feliz com o prestígio que Obama está tendo nessa segunda gestão e com o fato de o Congresso americano estar com baixa popularidade.

Ele se mostrou entusiasmado com Obama?

Exatamente. Ele é um entusiasta do Obama e acha muito positivo o que o presidente americano vem fazendo. Mas, ao mesmo tempo, diz que o processo é muito longo. Os EUA tomaram uma série de medidas contra Cuba, que precisam ser canceladas.

Ele mencionou alguma dificuldade nessas primeiras negociações ocorridas semana passada em Havana?

Não, mas se disse muito otimista. E ressaltou: "Mesmo sendo inimigos, nós temos que dialogar". Mas sempre observando que é um longo caminho.

Vocês conversaram sobre as mudanças internas em Cuba?

Não. Abordamos muito política a internacional. Falamos sobre o atentado na França e ele disse que gostou muito da reação do Papa Francisco. Concordou com Francisco e disse: "A liberdade de expressão tem limites. Você pode se expressar, mas não tem o direito de humilhar ou ofender". Fidel elogiou a atitude do Papa, quando disse que se xingassem sua mãe, devolveria com um murro.

E quais foram suas outras impressões sobre o estado de saúde de Fidel?

Ele estava tão bem que eu lhe propus tirar uma foto. Ele não quis, mas brincou: "As chances de não sairmos bem são bem maiores do que as de sairmos bem". Eu acredito que ele não quis porque não havia fotógrafo oficial e a foto teria que ser improvisada por alguém. Mas me autorizou a divulgar o teor da nossa conversa. Foi um alívio para mim tê-lo encontrado tão bem. Muitos amigos daqui diziam que há muito tempo não tinham notícias dele, e especulavam que poderia ter piorado, estar doente ou no hospital. Quando os prisioneiros cubanos regressaram ao país, esperava-se que aparecessem em fotos com Fidel, e isso não aconteceu. Disseram-me que eles se encontraram com Fidel, mas em privado. Minha interpretação para isso é de que Cuba está tendo uma atitude muito respeitosa diante do reconhecimento de Obama de que o bloqueio não funcionou. Eles não querem tripudiar em cima disso. Estão tratando esse assunto com muito respeito. Interessa para Cuba o fim do bloqueio, interessa o reatamento com os EUA. A previsão é de que virão três milhões de americanos por ano para o país. E a preocupação é que não haja infraestrutura para absorver tanta gente.

Fidel estava andando?

Desde que cheguei, ele permaneceu o tempo inteiro sentado à mesa de trabalho, vestido com traje esportivo, e sempre fazendo anotações. Está bem magro, mas absolutamente lúcido. Durante a conversa, fomos acompanhados pela Dalia, sua mulher.

Como o senhor acha que os cubanos estão encarando o degelo nas relações com os EUA?

Os cubanos, em geral, estão otimistas e ao mesmo tempo apreensivos. Sabem que será um grande choque cultural. Às vezes eu pergunto se estão preparados para a tsunami e recebo de volto uma pergunta: será que estamos preparados? A questão agora é saber como os valores da revolução serão preservados.

Quais as mudanças que o senhor notou em Cuba em relação à sua última viagem, no ano passado?

Eu noto que Cuba vive um momento de euforia, o prestígio de Raul é impressionante. Ouvi várias vezes frases do tipo: "A nossa sorte é que os dois estão vivos, pois sabem como conduzir esse momento". O processo de abertura econômica é inicial, está começando. Mas sinto otimismo de que isso vai melhorar as condições de vida do país.