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Assinaturas em troca de frango e leite

Usando métodos inusitados governo venezuelano busca reunir dez milhões de nomes contra decreto da Casa Branca
Filas no centro de Caracas na campanha por assinaturas contra o decreto do governo americano que classificou a Venezuela como "uma ameaça". Maduro espera atingir recorde de 10 milhões de assinaturas Foto: Ariana Cubillos / AP
Filas no centro de Caracas na campanha por assinaturas contra o decreto do governo americano que classificou a Venezuela como "uma ameaça". Maduro espera atingir recorde de 10 milhões de assinaturas Foto: Ariana Cubillos / AP

CARACAS — José María Rodríguez assinou cegamente uma petição contra Barack Obama em troca de um frango inteiro no hipermercado Urbina Makro em Caracas. Antes disso teve que encarar uma longa fila de duas horas no porão do estabelecimento às 6 da manhã e, em seguida, outras duas horas dentro do supermercado para comprar o frango racionada, uma vez por semana.

— Na fila me deram a senha para pegar um frango, mas primeiro eu tinha que assinar a lista contra Obama — contou Rodríguez, um pedreiro desempregado, ao diário "ABC de España".

Com Nicolás Maduro no comando, o chavismo tem monopolizado por três semanas a agenda na busca por 10 milhões de assinaturas contra o decreto de Obama, que sancionou sete funcionários por violação dos direitos humanos durante os protestos em 2014 e classificou a Venezuela como “uma ameaça à segurança nacional”. Uma reportagem do jornal espanhol "El Mundo" descreveu a mobilização em Caracas como "uma enorme exibição de propaganda que combina as músicas gravadas por Chávez, 'Imagine' de John Lennon, manobras militares em todo o país e palavras para 'Barack Hussein Obama'".

“Já chegamos a 4 milhões de assinaturas pela paz, pedindo a Obama que revogue o decreto imediatamente. E chegaremos a 10 milhões. Vamos bater nas portas, vamos recolher a maioria do povo com as assinaturas de pessoas porque a vontade da maioria é respeitada na Venezuela. Alerto e aviso que a espada de Bolívar seguirá pela Venezuela e pela América Latina para a vitória!”, bradou Maduro.

O presidente pretende entregar as assinaturas durante a Cúpula das Américas, que será realizada nos dias 10 e 11 de abril, no Panamá. Dez milhões, um número mágico para os revolucionários. Em 1970, Fidel Castro liderou uma campanha nacional de recolhimento de 10 milhões de toneladas de açúcar na safra anual, que terminou com um fracasso econômico retumbante. O próprio Hugo Chávez adotou a luta de Castro, para pedir o seu povo nas eleições de 2006 “dez milhões de votos para a cultura”. Ao comandante venezuelano faltaram 2.700.000 assinaturas, mas ainda assim, ele esmagou seu adversário nas urnas.

Maduro, no entanto, não quer parar no meio do caminho. Vale tudo para se aproximar do recorde estabelecido pelo seu aparelho de propaganda: desde a retórica nacionalista repleta de princípios anti-imperialistas até a distribuição de frangos e leite, bens tão difíceis de obter em um país dominado por um agravamento da crise de escassez de alimentos e escassez de mercadorias.

— Esta é uma exigência. Se queremos a paz, vamos de casa em casa, acordar os que estão dormindo, e colocar em ação os que estão despertos — afirmou Maduro em em um discurso televisionado. — E que sigamos juntos como vi acontecendo nas ruas de San Carlos.

Visitas domiciliares

A implantação acontece em todo o país e inclui visitas domiciliares e operações para distribuir alimentos. Em Bolívar de Mérida, capital do estado andino de mesmo nome, seis mulheres ficam sob um pequeno toldo, todas de frente a um laptop, esperando que as pessoas venham. Em um dos quatro tubos segurando o toldo, há um sinal que exige: “Obama, revogue o decreto imediatamente! Nós não somos uma ameaça”.

A música do cantor Alí Primera, o Victor Jara da revolução bolivariana, grita repetidamente “Yankee go home”. Mas não é suficiente: é melhor para oferecer dois quilos de leite em pó, que não estão disponíveis em praticamente nenhum mercado, como recompensa.

“Assinei porque preciso de leite. Espero que o meu nome não apareça em lugar nenhum. Sei que é tudo uma demonstração de governo, mas preciso de leite”, admite o professor da Universidade dos Andes, que, por razões óbvias na Venezuela bolivariana, prefere preservar seu nome.

Estas razões óbvias são conhecidas como lista Tascón. Ninguém esquece no país como aqueles que assinaram pedindo um referendo sobre o governo de Hugo Chávez em 2003 e 2004 foram estigmatizados: sem empregos ou bolsas de estudo ou benefícios públicos estaduais.

— Isto será mais grave do que a lista Tascón. Em órgãos públicos você é obrigado a assinar —afirma Rocío San Miguel, presidente da ONG Control Ciudadano, que recolhe alegações de demissões ou ameaças contra funcionários públicos que se recusam a assinar.

E não apenas os funcionários ou policiais foram intimados a assinar: até detentos de cinco prisões foram transferidos para o Ministério da Administração Penitenciária para darem sua assinatura. “Nós, os prisioneiros, levantamos nossa voz, com a permissão da primeira combatente e mãe da alma dos presidiários, Iris Varela (a ministra) e anunciamos nossa rejeição retumbante ao decreto de Obama”, afirmaram detentos em um comunicado oficial.

Esta prática não acontece apenas nas prisões. Na frente de ministérios e instituições do Estado, o Governo instalados toldos, equipamentos de som e pessoal entregando propaganda contra os Estados Unidos e recolheu as assinaturas daqueles que iam para o trabalho ou percorriam as ruas. A pressão continua, mais ou menos disfarçada, dentro de órgãos públicos.

Em Petare, o bairro mais populoso de Caracas, formou-se uma outra fila: se você assinar, leva uma galinha. “Eu saí daquela fila. Melhor que terminem de nos invadir de uma vez", protestou uma mulher depois de se recusar a assinar.

A ironia é que as assinaturas anti-imperialistas têm como recompensa dois quilos de leite em pó chileno ou um frango brasileiro. Ambos os alimentos quase não são produzidos na Venezuela e precisam ser importados.