Rio Bairros Zona Sul

Inspirados no economista Muhammad Yunus, cariocas propagam o empreendedorismo social

Salada que custa menos do que uma Mc Oferta, energia solar na favela e um hostel diferente são algumas das ideias

Moradora do Santa Marta, que investe em empreendedorismo social
Foto:
Agência O Globo
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Bárbara Lopes
Moradora do Santa Marta, que investe em empreendedorismo social Foto: Agência O Globo / Bárbara Lopes

RIO — “As pessoas têm capacidade ilimitada de criar e imaginar”. Uma das convicções do economista bengalês Muhammad Yunus, de 74 anos, que o levaram a ganhar, em 2006, o Prêmio Nobel da Paz, tem encontrado eco em iniciativas que já estão transformando a vida de moradores da cidade como Gilson Fumaça. O carioca e o bengalês se conheceram em 2011, durante uma visita do economista ilustre ao Morro Santa Marta. Fumaça, conhecido guia turístico da comunidade, recebeu a incumbência de conduzir Yunus pelas ruelas da favela. Quatro anos depois, o ímpeto empreendedor do carioca o levou novamente ao universo da celebridade que tanto o impressionou. Fumaça, hoje um microempresário, é um dos empreendedores assessorados pela Yunus Negócios Sociais Brasil, que, fundada há dois anos, busca desenvolver negócios sociais pelo país. A instituição, que oferece consultoria para empresas, governos, fundações e ONGs, atualmente acompanha 22 projetos no país com a intenção de, por meio de uma aceleradora e de um fundo de investimentos, torná-los viáveis. Três deles estão no Morro Santa Marta.

Atuando em segmentos diferentes, os projetos, que já estão transformando a realidade de moradores da favela antes mesmo de receberem um aporte de investimentos da Yunus Brasil, têm em comum, além da missão de solucionar um problema social, uma característica peculiar que as difere das tradicionais Organizações Não Governamentais: serem autossustentáveis financeiramente. Elas funcionam como empresas, seguem a lógica do mercado, mas não distribuem dividendos. Todo o lucro é reinvestido para alcançar o maior impacto social possível.


Gilson Fumaça no terraço do Hostel Casa dos Relógios
Foto: Agência O Globo / Bárbara Lopes
Gilson Fumaça no terraço do Hostel Casa dos Relógios Foto: Agência O Globo / Bárbara Lopes

Fumaça, que ainda trabalha como guia turístico e produtor de eventos, é o idealizador do Hostel Casa dos Relógios, cuja lógica desafia conceitos da hotelaria em nome do bem-estar das pessoas que cresceram com ele na favela. A sede do negócio fica no terceiro andar da construção onde ele mora com sua família desde que nasceu. Mas os quartos oferecidos aos clientes, privativos ou compartilhados, são disponibilizados por famílias que têm cômodos livres em diferentes pontos da comunidade. Gilson Fumaça conta que a procura maior é de estrangeiros ávidos por entender a dinâmica da vida cotidiana dentro de uma favela.

— Durante a Copa do Mundo chegamos a ter 40 pessoas aqui. Tive até que alugar o meu quarto, e trocar a minha cama de casal por duas beliches — lembra Fumaça, sentado na mureta com vista para Botafogo, a Praia de Copacabana, a Lagoa e o Cristo.

Fumaça já tinha o hostel antes de receber a ajuda dos consultores da Yunus Brasil. Mas os outros dois projetos do Santa Marta, como a maioria dos empreendimentos acompanhados pela instituição, só estão saindo do papel graças à ajuda da aceleradora. Um deles é a Saladorama. Idealizada pelo estudante de engenharia de alimentos Hamilton Santos e pela nutricionista Mariana Fernandes, a empresa tem como proposta oferecer uma opção saudável e barata de alimentação e, ao mesmo tempo, ser uma fonte de renda para moradores desta e de outras comunidades.

— Comecei a me perguntar por qual motivo as pessoas cobravam preços altos por um prato de salada. Queria criar uma alternativa a isso. Fiz a parte de custos e a Mariana executou o cardápio. Atualmente temos as opções prontas, com preços a partir de R$ 10 com taxa de entrega, e uma opção na qual as pessoas escolhem os itens — explica Hamilton, que diz estar contente por ter um produto “mais barato que uma Mac oferta”.

Gestada desde dezembro com o auxílio dos mentores, a Saladorama começou a funcionar em março numa cozinha do Santa Marta. Em menos de dois meses, o projeto vende uma média de 100 saladas por semana e emprega nove pessoas, incluindo os sócios. A expectativa da dupla é que a iniciativa recupere o investimento já no segundo semestre, menos de um ano depois da criação da empresa. E os planos futuros não preveem a abertura de filiais, mas a transformação dos atuais funcionários, que foram treinados e capacitados pela dupla, em sócios responsáveis por unidades da empresa em outros pontos da cidade. A palavra de ordem é empoderar.


Hamilton e Mariana, com saladas da Saladorama: mais barato que “fast food"
Foto: Agência O Globo / Bia Guedes
Hamilton e Mariana, com saladas da Saladorama: mais barato que “fast food" Foto: Agência O Globo / Bia Guedes

— Dos sete projetos que estamos acompanhando no Rio, dois estão totalmente validados e já estão aptos a receber aporte do nosso fundo. Um é o Saladorama. Este é um modelo que a gente quer expandir para o todo o Brasil — diz, entusiasmado, Rogério Oliveira, fundador e gestor geral da Yunus Negócios Sociais Brasil.

O terceiro projeto do Santa Marta, por sua vez, está quase apto a receber investimento, segundo Rogério. Criado pelo economista Michel Baitelli e pelo administrador Henrique Drumond, a Insolar ganhou visibilidade recentemente em uma das maratonas de negócios sociais promovidas pelo Sebrae do Rio. A empresa propõe a utilização da energia solar como fonte de energia elétrica em comunidades pacificadas do Rio, de forma que os beneficiários possam reduzir suas contas em função da energia gerada no telhado de casa. Para isso, propõe o uso de painéis fotovoltaicos. Instalar o equipamento, no entanto, é apenas parte do processo:

— Temos uma lógica mais holística. Além da instalação dos painéis, estamos preocupados com a educação ambiental e a capacitação e treinamento da mão de obra local. A ideia é que as pessoas entendam o projeto e se preparem para o mercado, sejam como eletricistas, engenheiros ou até empresários deste novo mercado que surge — explica Henrique.


Michel e Henrique no Santa Marta: energia mais barata
Foto: Agência O Globo / Felipe Hanower
Michel e Henrique no Santa Marta: energia mais barata Foto: Agência O Globo / Felipe Hanower

Ele e Michel já conquistaram sua primeira batalha: foram aprovados na fase inicial da Chamada Pública de Projetos para o Programa de Eficiência Energética da Light. Com isso, a Insolar vai instalar painéis solares na creche Mundo Infantil, no Santa Marta. O investimento, em torno de R$ 30 mil, inclui equipamento, treinamento e capacitação de alguns profissionais. Com a aprovação do projeto, os dois pretendem reduzir a conta de energia da instituição a um valor próximo da taxa de serviço da companhia.

— O projeto vai além do benefício financeiro. É uma forma de mostrar que as pessoas podem ser protagonistas de projetos que podem mudar o mundo ou, ao menos, o seu próprio ambiente. A partir do momento que você tem essa visão empoderadora, abre caminhos para resolver os seus problemas — diz Henrique.

A fala vai ao encontro dos ensinamentos do próprio Yunus, que no início do mês esteve no Brasil para uma série de palestras:

— Não vamos olhar os bilhões de pessoas (do mundo), vamos olhar para somente um indivíduo, para ver se conseguimos resolver o problema de um. Se nós sabemos como resolver o problema de uma pessoa, nós podemos resolver o problema de centenas, de milhares, de milhões e de bilhões — disse o economista em um dos encontros, em São Paulo.

TRILHANDO UM CAMINHO ALTERNATIVO

Criada em fevereiro de 2013, a Yunus Negócios Sociais Brasil está ligada à Yunus Social Business Global Initiatives, empresa com sede na Alemanha que atua em países como Haiti, Albânia, Tunísia, Togo, Colômbia, Índia e México. Tem como missão ser uma ferramenta prática para pessoas e organizações no Brasil, interessadas em se engajar na construção de um país livre de seus maiores problemas, por meio dos mecanismos do negócio social. Mas, mesmo com dois anos de existência e 22 projetos na carteira, seis deles prontos para receber investimentos, a instituição ainda tem um longo caminho a percorrer.

Afinal, assim como o conceito de uma empresa que age dentro da lógica do mercado mas que não tem o lucro como objetivo, a ideia de uma aceleradora regida pelos princípios ditados pelo bengalês ainda é estranha a investidores, empresários e ao público em geral. Um negócio social, da forma como o termo tem sido usado, foi descrito nos livros “Um mundo sem pobreza: a empresa social e o futuro do Capitalismo”, de 2008, e “Criando um negócio social”, de 2009. Ele é estruturado obedecendo certas diretrizes, dentre as quais se destaca a busca pela redução da pobreza ou de problemas em áreas cruciais para o desenvolvimento humano, como educação, saúde, meio ambiente e acesso à tecnologia. Dessa forma, o sucesso do negócio não é medido pelo total de lucro gerado, mas pelo impacto criado para as pessoas ou para o meio ambiente.


Gestor da Yunus Brasil, Rogério Oliveira quer aumentar o número de projetos acelerados
Foto: Divulgação/Yunus Brasil
Gestor da Yunus Brasil, Rogério Oliveira quer aumentar o número de projetos acelerados Foto: Divulgação/Yunus Brasil

— O conceito é até simples. Mas as pessoas não conseguem entender o que você, que trabalha com um negócio social, ganha com isso — conta Rogério Oliveira, gestor geral da instituição, admirador e, agora, sócio do economista bengalês.

O gestor, que trabalhou no mercado corporativo tradicional por 14 anos, é categórico ao afirmar que não quer salvar o mundo, mas que trabalha por um sentimento de satisfação pessoal em ajudar outras pessoas e melhorar o ambiente onde vive. Ele conta que começou a rever seus conceitos depois de ler, em 2000, “O banqueiro dos pobres”, livro do economista que conta como, quase 40 anos atrás, ele começou a fazer empréstimos a pessoas pobres — sobretudo mulheres — de Bangladesh. A iniciativa em microcrédito deu origem ao Banco Grameen e lhe rendeu o prêmio Nobel. Dez anos mais tarde, depois de ler “Criando um negócio social”, Rogério deu uma guinada na carreira fundando a Movimento Buena Onda, uma incubadora de negócios sociais que se especializou em difundir a filosofia da felicidade no trabalho. Conhecer e se aproximar de Yunus foi uma consequência natural.

— Comecei a me aprofundar no tema e fui num congresso que o próprio Yunus realiza, chamado Global Social Business Summit, que naquele ano, em 2011, aconteceu em Viena. Foi lá que o conheci. Quando ele esteve no Brasil para a Rio+20, no ano seguinte, já estávamos mais próximos. Numa conversa, ele comentou que o que estávamos fazendo era muito parecido com o que eles faziam em outros países e perguntou se o nome dele ajudaria a potencializar o trabalho — lembra Rogério.

Da conversa à criação da Yunus Brasil, menos de dois anos se passaram. O desafio passou a ser criar um fundo que conseguisse seguir o modelo proposto pelo economista, uma novidade no país. Uma tarefa nada fácil, uma vez que, por princípio, os investidores não seriam remunerados.

— O primeiro desafio era achar um parceiro, alguém que topasse abrir um fundo, e convencer a Comissão de Valores Mobiliários de que isso era possível — explica Rogério — Ao mesmo tempo, começamos a testar o discurso para captar dinheiro e esbarramos em outro problema: num fundo normal, o imobiliário, por exemplo, o investidor quer saber, em que imóveis ele vai investir. No nosso caso, os possíveis investidores queriam saber sobre os projetos que iríamos acelerar. Eu mostrava os cases de fora do Brasil, mas a pergunta, invariavelmente, era a mesma. “E aqui? O que a gente tem aqui?”

O questionamento gerou uma inversão na estratégia. A empresa, que começou a atuar em São Paulo, passou a selecionar projetos que pudessem ser acelerados. Sete foram selecionados inicialmente. Num segundo ciclo de aceleração, a empresa expandiu sua atuação e selecionou sete projetos no Rio de Janeiro, além de outros oito em São Paulo.

— Só depois disso, conseguimos iniciar a captação de recursos. Começamos em janeiro e já conseguimos R$ 1 milhão. Além disso, temos cerca de R$ 4,5 milhões que têm boas chances de acontecer. Nossa intenção é captar R$ 30 milhões até o meio do ano e mais dez até o fim de 2015 — diz Rogério.

Um bom começo para quem quer, em pouco tempo, multiplicar exponencialmente o surgimento de negócios sociais no Brasil. Rogério explica que um outro passo nesse sentido foi a criação de uma rede de universidades para apoiar o ensino e a capacitação de empreendedores sociais.

— Quero criar o problema de ter cem projetos por semestre pedindo nosso apoio — brinca o administrador.

Ele diz que espera que a rede estimule a discussão e sistematize o aprendizado sobre o tema. Lindália Reis, diretora de inovação da Universidade Estácio de Sá, uma das sete instituições que já fazem parte da rede, faz coro:

— A expectativa é que possamos aprender não só como desenvolver negócios sociais, mas também que estimulemos entre os alunos a fome de empreendedorismo social.

EM BUSCA DE VIDAS COM PROPÓSITO


Para o economista, negócios sociais fazem parte do processo para a erradicação da pobreza
Foto: Agência O Globo / Leo Martins/02-05-2015
Para o economista, negócios sociais fazem parte do processo para a erradicação da pobreza Foto: Agência O Globo / Leo Martins/02-05-2015

O empreendedorismo é uma estratégia eficaz para combater a pobreza e trazer crescimento socioeconômico, mesmo em tempos de crise. A lição, que parece óbvia, tem sido dada por Muhammad Yunus nos lugares por onde passa. Numa palestra ministrada no último dia 2 no galpão do Ação & Cidadania, no Centro, para uma plateia lotada com cerca de mil ouvintes, o economista que dedicou a vida ao combate à pobreza voltou a defender sua tese.

— Não somos buscadores de emprego, nós somos criadores de emprego — declarou Yunus, que afirmou ainda que o sistema educacional deveria incentivar o empreendedorismo em vez de formar pessoas à procura de um trabalho. — O sistema paralisa quem está desempregado, faz você se esquecer que é uma pessoa com condições de cuidar de si próprio e do outro. É preciso redefinir essa forma de viver.

Embora ainda pouco difundida, essa nova perspectiva se espalha gradualmente entre os empreendedores cariocas. De acordo com Carla Teixeira Panisset, coordenadora de negócios sociais do Sebrae-RJ, o número de interessados nos programas da instituição relacionados ao tema vem crescendo. Em 2014, o órgão orientou 238 empresas e 470 potenciais empresários, além de ministrar 251 minicursos e dois cursos para formar empreendedores sociais. Além disso, promoveu a maratona de negócios sociais que ajudou a modelar o projeto que deu origem à Insolar, que atua hoje no Santa Marta.

— No último curso, que só tinha 25 vagas, recebemos só na primeira semana mais de 50 pedidos de inscrição — recorda Carla— São pessoas que querem concretizar uma ideia, empresas já estabelecidas que precisam de orientação ou mesmo ONGs que querem atuar como empresas. Em todos os casos, são pessoas que percebem que o mercado pode ser uma solução interessante para resolver m problema social.

Carla diz que um dos maiores desafios, tanto para os empresários quanto para os novos empreendedores, é a métrica dos indicadores que podem aferir o impacto positivo dos negócios e a modelagem jurídica das empresas. A coordenadora do Sebrae conta, no entanto, que trabalha com um conceito mais elástico de negócio social do que o modelo Yunus, e defende o lucro tanto quanto o retorno social que a empresa proporciona à comunidade onde atua.

— O retorno financeiro é tão fundamental quanto o impacto gerado pela empresa. Nosso desafio é achar formas para que esse empreendedor consiga alavancar seu negócio.

E esta tarefa não parece ser simples.

— Todo negócio social é uma inovação. Por isso, carrega uma série de dificuldades para empreender. Quanto maior o impacto, mais difícil é empreender — afirma Rodrigo da Silva Carvalho, coordenador do Curso de Negócios Sociais e Inclusivos da ESPM Rio e consultor do Sebrae-RJ.

Rodrigo, no entanto, diz que o Rio tem se mostrado um terreno fértil para gestar empresas com foco nos problemas sociais:

— Nossa formação socioespacial nos impõe diariamente uma realidade contraditória e excludente, mesmo para os mais descolados da realidade. Aqui, as relações são muito mais próximas do que em São Paulo, por exemplo. Mas há uma outra questão, presente nessa geração que acabou de entrar no mercado de trabalho, mas não quer o que está aí. Ela procura algo com algum propósito na vida.