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Apesar de indenizações milionárias, prefeitura não consegue acabar com a Vila Autódromo

Em meio a escombros, cerca de 170 famílias ainda vivem na comunidade, que é vizinha ao Parque Olímpico da Barra da Tijuca
Mudança de uma das casas às margens da Lagoa de Jacarepaguá: indenizações pagas pela prefeitura a 33 moradores chegaram a valores acima de R$ 1 milhão Foto: Antônio Scorza / Agência O Globo
Mudança de uma das casas às margens da Lagoa de Jacarepaguá: indenizações pagas pela prefeitura a 33 moradores chegaram a valores acima de R$ 1 milhão Foto: Antônio Scorza / Agência O Globo

RIO — Iniciada na década de 1960, com algumas poucas ocupações irregulares nas margens ainda desertas da Lagoa de Jacarepaguá, a novela que envolve a comunidade da Vila Autódromo, vizinha do futuro Parque Olímpico, vive atualmente um capítulo que bem poderia se chamar “Os contrariados”. Apesar de demonstrar insatisfação, o prefeito Eduardo Paes publicou nos últimos meses uma série de decretos concedendo indenizações milionárias para que fossem desocupados imóveis à beira d’água ou no caminho da construção de novas vias. Os valores mais altos — de até R$ 3 milhões cada — não deixaram felizes, no entanto, quem teve de sair: pessoas de classe média, que possuíam estabelecimentos comerciais ou casas que não fariam feio em qualquer condomínio da Barra. E a história se completa com cerca de 170 famílias — boa parte carente — que ainda resistem na favela, no meio dos escombros de tudo que já foi demolido. É bem provável que a comunidade ainda esteja ali nos Jogos de 2016.

BRIGA NA JUSTIÇA DESDE 1993

Enquanto enfrenta uma interminável briga na Justiça — que começou em 1993 e até hoje não tem decisão definitiva —, a prefeitura resolveu abrir os cofres públicos para desapropriar imóveis na região. Somente de novembro do ano passado para cá, segundo um levantamento feito pelo gabinete da vereadora Teresa Bergher (PSDB) a pedido do GLOBO, foram nada menos que R$ 95 milhões liberados em decretos para indenizar 116 pessoas. Dentro desse grupo, 33, ou menos de um terço, receberam valores acima de R$ 1 milhão. O total para eles foi de R$ 55 milhões, ou quase dois terços do montante geral.

— Eu acho um absurdo (pagar as altas indenizações), um negócio inaceitável. Mas o fato é que em algum momento alguém foi e legalizou a situação daquelas pessoas. Em um determinado momento, veio um bando de ONGs, de organismos internacionais, de partido político e de defensoria pública defender esses caras... E está aí o resultado: pessoas que não precisam recebendo fortunas para desocupar uma área pública. A demagogia impera, a hipocrisia vem e acontece isso. E só conseguimos desocupar depois de muita negociação. Foram seis anos negociando isso — afirma o prefeito Eduardo Paes.

Entre os 33 que receberam mais de R$ 1 milhão, há diversos casos curiosos. O maior valor por um imóvel foi para o empresário e piloto de automobilismo Cláudio Capparelli: R$ 2.992.341,00. A indenização foi paga para ressarcir uma oficina de carros de competição que ele montou há mais de 20 anos próximo à Lagoa de Jacarepaguá. Demonstrando muita insatisfação, Capparelli diz que comprou a posse do terreno e que não queria sair, mas acabou sendo forçado pela prefeitura.

— Ninguém queria sair dali. Fomos obrigados por uma espécie de tática de guerrilha da prefeitura, que começou a dificultar o acesso, impôs uma série de obstáculos. A vida ficou muito difícil, foram nos sufocando. Então, resolvi ceder quando consegui chegar a um valor que considerei razoável. Não levei em conta fatores como o meu imóvel ser um comércio, o transtorno da mudança... Levei em conta a metragem construída e quanto ia custar montar uma nova oficina na Barra. Isso não vai sair por menos de R$ 3 milhões — reclama o empresário. Ele acrescenta: — Como contribuinte, realmente acredito que poderia haver uma saída melhor do que essas indenizações. Seria muito mais barato, por exemplo, reurbanizar aquela área.

Na lista dos que receberam os maiores valores, há ainda o ex-piloto Lucas Molo, que foi contemplado com R$ 2,3 milhões, também por ter uma oficina que, segundo a prefeitura, foi construída numa área de proteção da lagoa. Ele se manifestou apenas através de uma nota, dizendo que era contrário à desapropriação, mas acabou aceitando sair principalmente por não ver mais futuro no automobilismo no Rio. Atualmente, Molo vive na Califórnia, nos Estados Unidos, onde tem uma academia de MMA.

Dois policiais militares também aparecem na lista das indenizações mais altas: José Cleidson Ramos Reis, lotado no Bope, com R$ 1,299 milhão, e o coronel da reserva José de Oliveira Penteado (R$ 2,2 milhões). O nome de Penteado ganhou notoriedade no passado por ele ter sido o comandante do Bope durante o caso do sequestro do ônibus 174, que terminou com um bandido e uma refém mortos. Cleidson foi procurado através da assessoria de imprensa da PM, que disse que não poderia responder por uma demanda particular do agente. Penteado não foi localizado para comentar a desapropriação.

Até um ambientalista de São Paulo foi indenizado: Mauro Frederico Wilken, que já foi presidente da Sociedade Ecológica Santa Branca (cidade do interior paulista) e membro suplente do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), foi contemplado com um decreto de R$ 1,199 milhão, de ressarcimento por um imóvel na faixa marginal de proteção da lagoa. Ele não foi encontrado para comentar a indenização.

Conselheiro da OAB-RJ, o advogado especializado em direito imobiliário Antônio Ricardo Corrêa confirma que, em casos de ocupações irregulares consolidadas, não resta ao poder público outra opção a não ser a indenização ou concessão de outra moradia:

— A legislação não dá direito à propriedade quando há uma ocupação de uma área pública. Mas, se em algum momento houve leniência, deixaram a pessoa construir, e ela, de boa-fé, fez benfeitorias, obrigatoriamente precisa ser ressarcida por isso ao ser retirada.

Dos 760 imóveis catalogados pela prefeitura na Vila Autódromo, 590 já foram desocupados. Desses, 336 eram de famílias carentes, que foram para o conjunto habitacional Parque Carioca. O restante foi indenizado. Apesar das remoções, em fotos aéreas ainda é possível ver que a favela — que está ao lado de um futuro hotel para a imprensa e do Centro Internacional de Transmissões (IBC) do Parque Olímpico — parece manter a sua unidade territorial. Ainda há muitos escombros espalhados. Um dos terrenos mais limpos vem sendo usado como um estacionamento improvisado para quem trabalha nas obras vizinhas.

Com uma camiseta preta com os dizeres “SOS Vila Autódromo”, o professor de educação física Luiz Cláudio Silva está entre os que resistem. Amante do esporte, ele diz que a Olimpíada acabou se transformando no grande pesadelo de sua vida.

O morador da Vila Autódromo Luiz Cláudio Silva anda pela comunidade Foto: Antônio Scorza / Agência O Globo
O morador da Vila Autódromo Luiz Cláudio Silva anda pela comunidade Foto: Antônio Scorza / Agência O Globo

— Hoje, o que se vê aqui é um cenário de guerra. Por que não cuidar da comunidade e deixar um legado social? — pergunta ele, lembrando que os próprios moradores fizeram em 2013 um projeto de reurbanização premiado, com técnicos da UFF e da UFRJ, que previa um custo de pouco mais de R$ 13 milhões com as obras.

PAES ADMITE MANTER COMUNIDADE

O porteiro Francisco Marinho diz que lutou 13 anos para conquistar cada tijolo de sua casa e não pretende sair. Ele nem tem deixado funcionários da prefeitura fazerem a medição da residência para um futuro cálculo de indenização:

— Quando nós trabalhamos para os ricos da Barra, somos cheirosos. Agora, uma favela do lado da Olimpíada ninguém quer. Fiz a minha vida aqui, lutei por cada parede. Não fui para um daqueles apartamentos que ofereceram porque sei que “faveleiro” não sabe morar em apartamento, com as taxas, com todos os custos que existem.

Apesar de todas as desapropriações, o prefeito Eduardo Paes admite que, entre os 170 que ainda resistem, poderão ficar aqueles que não estiverem no caminho de novas vias ou na faixa marginal da lagoa. Perguntada, porém, a assessoria da prefeitura não conseguiu informar quantos são. Paes também admitiu fazer um projeto de reurbanização.

O defensor público João Helvécio de Carvalho, que acompanha o caso dos moradores carentes, diz esperar que Paes deixe ficar quem assim o quiser:

— Esperamos que haja diálogo e que essa intenção se concretize. Que quem fique permaneça de uma forma decente.