Rio

Testemunha da morte de jovem teria sido ameaçada por PMs

Moradores da Providência dizem que quem filmou adulteração da cena está sem proteção
Sepultamento. Enterro de Eduardo foi marcado por protestos: moradores da Providência foram ao cemitério em ônibus escoltados pela polícia Foto: Gabriel de Paiva / Gabriel de Paiva
Sepultamento. Enterro de Eduardo foi marcado por protestos: moradores da Providência foram ao cemitério em ônibus escoltados pela polícia Foto: Gabriel de Paiva / Gabriel de Paiva

RIO — Depois de gravar as imagens que revelaram a farsa armada por policiais militares para forjar um confronto com o adolescente Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, morto na terça-feira no Morro da Providência, a testemunha que fez o vídeo estaria recebendo ameaças de outros PMs. Segundo moradores da favela, a tentativa de intimidação aconteceu na terça-feira à noite, enquanto a Polícia Civil fazia uma perícia no local do crime. Acuada, a testemunha estaria trancada em casa e, de acordo com vizinhos, precisando de proteção do estado.

— A PM acompanhou o trabalho da Polícia Civil, onde foi identificada a casa de onde foram feitas as imagens. Houve intimidação, com os policiais deixando claro que já estavam cientes da autoria do vídeo. Ela (a testemunha) está confinada em casa, muito assustada, sem saber o que fazer. Está com medo tanto de sair quanto de ficar na comunidade — revelou um morador.

REVOLTA DURANTE ENTERRO

Na tarde de quarta-feira, o enterro do adolescente aconteceu em clima de revolta, no Cemitério São João Batista, em Botafogo. Um ônibus cedido pela Transportes São Silvestre levou parentes e amigos ao sepultamento. Eles foram escoltados pela Polícia Militar, tanto na ida quanto na volta ao morro. Na comunidade, um forte esquema de policiamento aguardava o desembarque dos moradores. Enquanto saíam do veículo, algumas pessoas hostilizavam os policiais, que foram chamados de “assassinos”.

Durante o enterro, houve muitas críticas à ação dos policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Fabrício Santos, ex-presidente da Associação de Moradores do Morro da Providência, afirmou que a repressão policial, sem que haja projetos sociais na favela, só vai aumentar o número de mortes de jovens recrutados pelo tráfico:

— Esse caso só terá uma punição porque um morador teve coragem de filmar. Se não fosse isso, seria mais um típico auto de resistência, maquiado por essa polícia corrupta.

Fabrício Santos disse ainda que, independentemente de o jovem ter envolvimento com o tráfico de drogas, não poderia ter sido morto:

— E daí que ele vendia drogas? Não existe pena de morte no país. Ele foi executado.

Outra amiga da família, a corretora de planos de saúde Railda França, disse que o rapaz tinha entrado para o tráfico porque faltam oportunidades na favela.

— Não há programas sociais na Providência, só a repressão policial. Sou moradora, e queremos reformas nas UPPs. Precisamos recuperar os jovens que estamos perdendo para o tráfico, não assassiná-los — disse.

Apesar de amigos e parentes admitirem o envolvimento de Eduardo Felipe com o tráfico, ele tinha cumprido apenas uma medida socioeducativa. De acordo com decisão da Vara da Infância e da Juventude, o adolescente ficou em liberdade assistida por uso de drogas.

No início da noite de quarta-feira, o tio de Eduardo, o advogado Leonardo Victor, divulgou uma nota da família. O texto afirmava que, “independentemente da situação na qual ele se encontrava, a Polícia Militar não tinha o direito de fazer o que fez” e que a corporação “existe para proteger e preservar a vida, não acabar com ela”. Os parentes do jovem disseram ainda esperar que os responsáveis sejam punidos “por esse ato desumano”.

De acordo com a nota, “nenhum pai e nenhuma mãe deveriam ter que enterrar seus filhos, ainda mais em uma situação como essa”. Mais cedo, a mãe do garoto, Patricia Santos, disse estar se sentindo um “lixo” após ver as imagens que mostravam os PMs forjando a cena do crime. Enquanto ela escolhia as roupas com as quais Eduardo seria enterrado, afirmou:

— Só tenho uma palavra para falar como me sinto: um lixo.

MAIS PROTESTOS NA QUARTA-FEIRA

Antes de os moradores deixarem a comunidade em direção ao cemitério, pelo menos oito ônibus foram apedrejados na quarta-feira de manhã, em mais um protesto contra a morte de Eduardo Felipe. Os coletivos foram depredados quando saíam da garagem, no bairro de Santo Cristo.

O motorista Antonio Cordeiro, que conduzia um ônibus da linha 133 (Rodoviária-Largo do Machado), da Viação São Silvestre, chegou a ser internado no Hospital municipal Souza Aguiar, no Centro. Ele foi atingido no peito por uma pedra lançada por um morador do Morro da Providência, na altura do Viaduto Trinta e Um de Março, próximo à esquina com a Rua América. Dentro de um dos coletivos apedrejados, foram recolhidos pedras e um paralelepípedo.

Os ônibus saíram em sequência e, depois de atacados, formaram uma fila ao lado do Batalhão de Choque, na Cidade Nova, para retornar à garagem em comboio. Após o apedrejamento, um grupo de moradores procurou a empresa para pedir a liberação de veículos para o transporte até o Cemitério São João Batista, para o sepultamento do corpo de Eduardo Felipe.

Em nota, a polícia informou que militares do 5º BPM (Praça da Harmonia) foram acionados pela manhã para checar uma ocorrência de ônibus apedrejados no Centro. Com a chegada dos policiais, as pessoas se dispersaram. Já a empresa de ônibus informou que os coletivos foram encaminhados para o setor de manutenção. A expectativa era que eles fossem reparados e voltassem a circular o “mais rápido possível”.

Na terça-feira, a morte de Eduardo Felipe já tinha provocado protestos no entorno da comunidade. O comércio chegou a fechar próximo à Central do Brasil.