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José Mariano Beltrame: “A guerra às drogas é perdida, irracional”

José Mariano Beltrame: “A guerra às drogas é perdida, irracional”

O secretário de Segurança do Rio diz que droga é problema de saúde, não de polícia – e que a descriminalização do uso não pode passar deste governo

RUTH DE AQUINO| DE PARIS
26/06/2015 - 21h22 - Atualizado 09/07/2015 19h00

José Mariano Beltrame, homem forte da segurança do Estado do Rio de Janeiro há mais de oito anos, nem na Europa consegue passear. Está a trabalho, em Portugal e na França. Num momento em que a descriminalização do uso de drogas é debatida no Brasil, no Supremo Tribunal Federal (STF), ele admira a estratégia do governo português para lidar com o problema. Tossindo forte, “com uma farmácia na bagagem”, Beltrame aproveita a viagem de uma semana para ler O homem que amava os cachorros, livro do cubano Leonardo Padura sobre o assassinato do revolucionário Leon Trótski, em 1940, a mando do líder da União Soviética, Josef Stálin. Está em um hotel sem luxo, ao lado da Sorbonne, em Paris. Na pasta preta, o documento de cima o amolece. É um desenho feito pelo garoto Francisco, de 5 anos, filho de Beltrame. Mostra pai e filho de mãos dadas. “O Francisco fez para eu me lembrar dele na viagem.” Horas antes de pegar o trem para ir a Nice abrir um seminário sobre Cidades inovadoras, Beltrame falou a ÉPOCA sobre bandidos, policiais, cidadãos e drogas.

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ÉPOCA – O que o senhor aprendeu nesta viagem?
​José Mariano Beltrame –
Fiquei encantado com a descriminalização das drogas em Portugal. De todas as drogas, inclusive heroína, cocaína. O programa começou em 2000. No Brasil, não pode passar deste governo a descriminalização do uso. A guerra à droga é perdida, irracional. Podemos começar pela maconha. Convidei os portugueses para ir ao Brasil na Semana do Policial, em novembro, e contar a experiência de seu país. Em Portugal, o assunto “drogas” não está inserido na polícia, mas no Ministério da Saúde. Com a ajuda de juízes, procuradores, psicólogos, médicos, e integrantes da sociedade civil. A polícia pega o usuário e ele é convidado a participar de encontros. São 90 clínicas em Portugal, completas com toda a assistência, voluntários e visitas. E uma comissão fiscaliza isso. Todos se juntaram para combater essa doença, porque o vício é uma enfermidade, e não um crime. Sem vaidade, sem luta de poder.

"No Brasil, tiro fuzis da polícia, mas a população continua a querer se armar. Estamos em retrocesso"

ÉPOCA – No Brasil, estamos longe desse consenso...
Beltrame –
No Rio, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) são uma forma de reconhecer o problema da droga, mas não abordar de uma forma belicista. Nunca foi nosso objetivo acabar com as drogas. É impossível. Parece que os brasileiros não acordam para o desperdício dessa guerra. Não existem vitoriosos. Descriminalizando o uso, um dos efeitos é o alívio na polícia e no Poder Judiciário, que podem se dedicar aos homicídios, aos crimes verdadeiros. Mas, olhe só: o governo federal está preparando um plano nacional de redução de homicídios sem consultar os Estados. Eu não fui consultado. Como não ouvir as secretarias estaduais para aprender com acertos e erros? Espero que o plano não envolva só questões policiais. Que venha com o foco de recuperar mecanismos sociais para prevenir a violência. A polícia nada mais é que a seta da ponta da flecha. 

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ÉPOCA – O senhor é a favor do desarmamento. Como vê as pesquisas, no Brasil, que vão em sentido contrário?
Beltrame –
Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama vai à televisão se colocar pessoalmente contra a venda indiscriminada de armas, que certamente contribuiu para o massacre de negros por um jovem branco (na cidade de Charleston, em 17 de junho). Não importa se é no Alabama ou em Louisiana, o presidente não foge de tomar uma posição, e diz: “Se não foi possível regular as armas, temos como nação a obrigação de resolver o problema”. No Brasil, estamos em retrocesso. Eu tiro fuzil de policiais, levo uma surra quando tento tirar armas de bombeiros e uma grande parte da população continua querendo se armar.

ÉPOCA – A sensação é que bandidos, traficantes, milicianos, PMs descontentes e até políticos tentam torpedear sua política de segurança. Quem o apoia?
Beltrame –
As populações das comunidades. Recebo e-mails de senhoras do Chapadão (ainda dominado pelo tráfico e considerado o novo Alemão, porque a polícia ali não sobe) me pedindo que instale uma UPP. Vamos instalar, sem Forças Armadas, só polícia. Os números me ajudam. As UPPs já pouparam mais de mil vidas. Na Baixada Fluminense, em cinco meses deixaram de morrer 250 pessoas. Os índices de criminalidade no Estado melhoraram muito. Mas não me sinto confortável. Sei que a percepção da insegurança aumentou em áreas estratégicas da cidade do Rio, com o aumento dos furtos e assaltos seguidos de morte.Agora, quero um plano de ação. Quem vai fazer o que, para quem e para quando. No início de abril, criei o Comitê Executivo de Políticas Públicas e Sociais nos Territórios Pacificados e convoquei para esse grupo representantes de todas as secretarias envolvidas com cidadania. Da água e esgoto à iluminação, educação, saúde, urbanização.

ÉPOCA – A que se deve o aumento nos furtos e assaltos seguidos de morte?
Beltrame –
De uns quatro anos para cá, houve um aumento enorme de menores no crime. O receptador, maior de idade, sabe que o menor é uma mão de obra que retorna rapidamente à ativa, porque é assim a lei. O crime de receptação de objetos roubados é a mãe dos crimes de furto e assalto. E também, de acordo com a lei, o receptador não fica preso. Não estou pedindo para encarcerar, criminalizar esses menores. Mas, na rua, eles não podem ficar. A polícia falha, sim, mas por que se culpa só a polícia? Esse rapaz de 16 anos que tinha 15 registros e foi acusado de esfaquear o médico ciclista na Lagoa, ninguém foi saber quem era, onde morava, quem era a família, se frequentava escola, se fazia parte de um programa assistencial.

ÉPOCA – Por que aumentou tanto o número de crimes com faca?
Beltrame –
Porque é arma branca, o porte não é crime, e se enterra até na areia. Qualquer um compra por R$ 2 uma faca que tem potencialmente o poder letal de uma arma de fogo. Ainda tem a desculpa de que a faca é para cortar laranja. Descobrimos mais de 20 facas enterradas em galhos de árvore no Parque de Madureira (um complexo de esporte e lazer para carentes). A pergunta que a sociedade se faz – “por que matar e não só furtar?” – nós também nos fazemos. Falta prevenir a violência urbana. Tomar uma atitude contra a faca também é uma discussão atravessada. Se não tem faca, o assaltante vai usar um caco de vidro.

ÉPOCA – A supervisão e a formação dos policiais ainda devem ser preocupações suas.
Beltrame –
Sempre. Agora, com ajuda de um grupo de empresários, vou botar smartphone no peito dos policiais para saber direito o que todos estão fazendo. As câmeras são muito úteis, a sociedade sabe. O smartphone ajudará também a evitar desvios de conduta. E, em julho, vamos aumentar o curso de formação de policiais de sete meses para dez meses. Vamos fazer um currículo transversal com todas as disciplinas. Criamos, para treinamento de PMs, dois simuladores de tiros 360 graus. É um cenário com situações de estresse para avaliar a capacidade de reagir. Também acabamos com as silhuetas de tiros para matar. Agora, os pontos que mais valem são de neutralização, e não de morte. Há turmas de 60 policiais em cursos de segunda a sábado na Coordenação de Operações Especiais. Em conflitos, a tônica é “abrigue-se” em vez de “reaja”.

ÉPOCA – Como o senhor reagiu às novas imagens sobre a morte de Amarildo, mostrando um volume suspeito na caçamba de policiais da UPP da Rocinha, que poderia ser o corpo do pedreiro, até hoje desaparecido?
Beltrame –
Temos interesse e urgência na elucidação do caso Amarildo e a Secretaria está à disposição do Ministério Público, inclusive com informações da nossa Inteligência. Há 12 policiais presos. Trabalhamos com transparência. A UPP é um programa de respeito à vida, que permite o esclarecimento de crimes, seja quem for o autor ou a vítima.

ÉPOCA – Em algum momento, haverá uma UPP que não seja somente policial?
Beltrame –
Meu sonho é criar uma comunidade-modelo, uma UPP integral, que englobe segurança e todos os mecanismos de cidadania. Pretendo fazer numa comunidade pequena, a Vila Kelson, com não mais de 10 mil habitantes. Vou apresentar o projeto a órgãos públicos e a empresários. Precisa ter rua com placa, calçamento, casas ou pequenos prédios em vez de barracos. Precisa ter saneamento, Comlurb, Light, CEG, creche, posto de saúde, hospital, maternidade, ouvidoria civil, agência de crédito para empreendedores locais, centro cultural, biblioteca, escola. Para mostrar o que deve ser feito se quisermos de verdade que a UPP dê certo. O projeto nós temos, com a Associação Brasileira de Arquitetura. Nós todos somos passarinhos de uma asa só, precisamos nos abraçar para poder voar. 

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José Mariano Beltrame em entrevista a ÉPOCA  (Foto: Daryan Dornelles)


 








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