• Camila Frois
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Em risco: castanha típica do centro--oeste, o baru está ameaçado pela conversão massiva de áreas de cerrado e é alvo de madeireiras ilegais (Foto: Alexandre Schneider/ Cardápios do Brasil)

Em risco: castanha típica do centro--oeste, o baru está ameaçado pela conversão massiva de áreas de cerrado e é alvo de madeireiras ilegais (Foto: Alexandre Schneider/ Cardápios do Brasil)

Sabe aquele prato com gosto de infância que reunia a família toda em torno da mesa no almoço de domingo? Já pensou que ele pode sair para sempre do cardápio da casa da sua avó se um dos ingredientes for extinto? A provocação é dos líderes do Instituto Slow Food, organização não governamental italiana empenhada em proteger matérias-primas regionais que podem desaparecer do mapa com a degradação ambiental e a excessiva industrialização dos alimentos. Segundo a ONG, embutidos, frutas, queijos, cereais, hortaliças, frutos do mar, variedades de vinhos, receitas e tradições gastronômicas que estão sendo esquecidos ao redor do mundo correm sério risco. Para protegê-los, chefs ligados ao movimento apostam na mesma estratégia que o personagem bíblico Noé teria usado para salvar espécies animais de um grande dilúvio. Intitulado Arca do Gosto, o projeto é uma espécie de catálogo mundial que descreve e divulga mais de mil ingredientes que podem desaparecer, incluindo 40 itens brasileiros. O pinhão (semente das dizimadas florestas de araucária), o pirarucu (peixe amazônico que chegou a ter a pesca proibida) e o berbigão (molusco quase extinto que foi base da alimentação dos pré-históricos homens de sambaquis) são alguns dos ingredientes que fazem parte da lista.

Para evitar uma padronização imposta pela indústria alimentícia, os adeptos da causa pesquisam ingredientes com visitas às roças e conversas com pescadores e cozinheiras locais, e submetem novos produtos à comissão científica da Arca do Gosto. Segundo Georges Schnyder, presidente da Associação Slow Food Brasil, existe uma comissão de avaliação nacional e outra internacional. Ambas são formadas por gastrônomos, nutricionistas, antropólogos, biólogos e outros profissionais da área. Na prática, esses especialistas investigam, através de pesquisas históricas e entrevistas, se o produto em questão é característico de uma região específica, se sua produção respeita critérios de sustentabilidade, se o alimento é ligado a tradições culturais regionais e se ele corre risco real de desaparecimento. Além disso, os representantes das comissões realizam degustações para atestar as qualidades sensoriais dos alimentos analisados. “A ideia é valorizar o produto e fomentar o consumo para que essa matéria-prima continue sendo relevante para o mercado”, diz Schnyder.

Pode parecer contraditório, mas alguns ingredientes correm risco de extinção não porque foram explorados demais, mas sim de menos. O baixo valor comercial faz com que a produção de determinada matéria-prima deixe de ser interessante ou torne seu habitat vulnerável. É por isso que a proposta da Arca do Gosto é estimular as cadeias produtivas. O molusco berbigão (conhecido como vôngole brasileiro) é um bom exemplo disso. Era um alimento muito usado para matar a fome de pescadores de Santa Catarina em dias de pouco peixe. Devido ao baixo valor comercial, seu habitat foi amplamente destruído com o aterramento de bancos de areia nos manguezais onde ele era encontrado em Florianópolis. Com a entrada na Arca do Gosto, o produto está voltando ao mercado como uma iguaria usada em restaurantes do sudeste que recriaram o famoso espaguete ao vôngole, só que desta vez com o molusco brasileiro ocupando o posto de principal ingrediente. A qualificação do uso acaba, em consequên­cia, estimulando a proteção da espécie.

Bolso cheio: Ricardo Sobrinho e sua família vivem em Painel, em Santa Catarina, e lucraram R$ 20 mil com a coleta de pinhão na última safra (Foto: Fernando Angeoletto)

Bolso cheio: Ricardo Sobrinho e sua família vivem em Painel, em Santa Catarina, e lucraram R$ 20 mil com a coleta de pinhão na última safra (Foto: Fernando Angeoletto)

DESAFIOS NA COZINHA
Uma das chefs empenhadas em resgatar esses sabores genuinamente brasileiros é a paulistana Ana Trajano. Há dez anos, a proprietária do restaurante Brasil a Gosto, em São Paulo, percorreu 20 estados do país em busca de informações sobre produtos, formas de preparo e importância cultural de dezenas de pratos. As pesquisas (que continuam até hoje) deram origem não só ao seu restaurante, especializado em pratos regionais, mas também ao livro de receitas, histórias e processos Cardápios do Brasil. Ana conta que a grande dificuldade para divulgar os sabores brasileiros são os desafios logísticos impostos por cadeias produtivas desestruturadas, que tornam o custo dos insumos do interior do país mais alto que o de ingredientes importados. “Tenho mais facilidade de usar o queijo cru francês do que o mineiro”, conta a chef, que tem em sua cozinha iguarias como o pinhão, o baru e o pirarucu, além de vários outros integrantes da Arca do Gosto. “Só tenho acesso aos produtos que uso no Brasil a Gosto por causa de uma rede de fornecedores que cultivo pessoalmente durante minhas viagens.”

Todos a bordo: a reserva extrativista Pirajubaé é um dos últimos redutos onde se pode encontrar o molusco berbigão em Florianópolis (Foto: Fernando Angeoletto)

Todos a bordo: a reserva extrativista Pirajubaé é um dos últimos redutos onde se pode encontrar o molusco berbigão em Florianópolis (Foto: Fernando Angeoletto)

Uma das iguarias que estão aos poucos superando os desafios ambientais e logísticos e caindo no gosto do público gourmet é o pinhão. Com o destaque internacional que conseguiu nos últimos anos, a matéria-prima saltou dos preparos mais rústicos para menus mais sofisticados, e hoje tem até demanda de exportação, embora mal consiga atender ao mercado regional. Semente bastante apreciada pelos tropeiros no sul do Brasil no século XVIII, o ingrediente praticamente desapareceu junto com 194 mil quilômetros quadrados de florestas de araucária (Araucaria angustifolia), que viraram toras de madeira para exportação. De acordo com Natal Magnanti, doutorando em antropologia social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o corte das árvores centenárias só foi proibido em 1985, quando restava apenas algo entre 2% e 3% da cobertura original dessas florestas coníferas – uma das formas de vegetação mais antigas do mundo. Com a regeneração, a espécie escapou da extinção, mas continua integrando o ecossistema mais devastado do país.

A chef Ana Trajano no Brasil a Gosto, em São Paulo (Foto: Fernando Angeoletto)

A chef Ana Trajano no Brasil a Gosto, em São Paulo (Foto: Fernando Angeoletto)

Na região serrana de Santa Catarina, o município de Painel é um dos redutos onde as árvores permaneceram em pé, compondo uma típica paisagem subtropical. Lá, quem resistiu ao tentador comércio madeireiro tem no quintal uma fonte perene de renda. O jovem Ricardo Sobrinho, 25 anos, é um dos produtores animados com a popularidade do ingrediente – degustado na forma de paçoca com tainha no cobiçado restaurante de Ana Trajano. A propriedade de Sobrinho tem 60 hectares, sendo que dois terços são ocupados pela mata de araucária (cerca de 200 mil pés). Seu pai, Antônio Sobrinho, 61 anos, garante que o produto nunca foi tão cobiçado. “Nesta safra, nem precisei sair para vender”, conta ele, que coleta pinhão desde os 8 anos de idade. “Os compradores vinham aqui e brigavam pelo saco da semente.” Em dois meses, a família lucrou R$ 40 mil, dinheiro que foi repartido com um “meei­ro” (vizinho que dividia os trabalhos da coleta).

Os engenhos de farinha no litoral catarinense preservam a tradição da produção da bijajica, bolo feito com massa de mandioca (Foto: Fernando Angeoletto)

Os engenhos de farinha no litoral catarinense preservam a tradição da produção da bijajica, bolo feito com massa de mandioca (Foto: Fernando Angeoletto)

PINHÃO NA SAPECADA
A valorização do produto é resultado da divulgação promovida pela Arca do Gosto e da atuação de organizações locais como o Centro Vianei, voltado para o desenvolvimento da agroecologia no interior de Santa Catarina. “Estamos fazendo parcerias para aquisição de conhecimento e tecnologia para o manejo, a coleta com segurança e o armazenamento do pinhão, que é um grande desafio para os produtores”, diz Eliane dos Reis, presidente da organização. A preocupação dos técnicos do Centro Vianei é contribuir com condições mais adequadas para os produtores que hoje se aventuram na coleta. Devido às condições ruins do extrativismo, atualmente a mão de obra está escassa, o que também oferece risco para o ingrediente.

Tainha com crosta de pinhão feita pelo chef Bernardo Simões, adepto do slow food (Foto: Fernando Angeoletto)

Tainha com crosta de pinhão feita pelo chef Bernardo Simões, adepto do slow food (Foto: Fernando Angeoletto)

Durante a coleta, Sobrinho se arrisca todos os dias, das 6h às 18h, no topo de 32 árvores de até 30 metros de altura, sem nenhum tipo de proteção, para fazer a coleta das pinhas. “Na hora do almoço, fazemos um fogo lá na mata mesmo e assamos uma linguiça e o pinhão para matar a fome, porque não temos tempo a perder”, conta o produtor. A tática é antiga. Os índios xoclengue, que habitavam a região no período pré-colonial, já consumiam o pinhão na sapecada: técnica de fazer o fogo com as próprias folhas (grimpas) da araucária para assar a semente à sombra das árvores da floresta. Era o que garantia a energia para o dia todo. Entre os extrativistas da cidade de Painel, ainda é a nutritiva semente da araucária que sustenta os trabalhadores durante o dia – e eles, por sua vez, sustentam a tradição gastronômica que já dura centenas de anos.

SABOR DA DIVERSIDADE Conheça alimentos brasileiros que integram a Arca do Gosto

 (Foto: Rafael Forte/ Instituto Mamirauá)

(Foto: Rafael Forte/ Instituto Mamirauá)

BIJAJICA - Uma tradição indígena adaptada pelos açorianos no litoral catarinense, a bijajica é um bolo cozido no vapor em engenhos onde se produz farinha artesanal, feito com massa de mandioca crua, amendoim e açúcar e aromatizado com cravo e canela.

 (Foto: Rafael Forte/ Instituto Mamirauá)

(Foto: Rafael Forte/ Instituto Mamirauá)

BERBIGÃO - Também conhecido como vôngole brasileiro, o berbigão (Anomalocardia brasiliana) é um saboroso molusco que há mais de 4 mil anos era degustado por povos pré-históricos, tendo ainda participado da base da alimentação dos índios carijós, dos imigrantes açorianos e dos nativos da ilha de Santa Catarina.

 (Foto: Rafael Forte/ Instituto Mamirauá)

(Foto: Rafael Forte/ Instituto Mamirauá)

PIRARUCU - O peixe amazônico, que pode pesar mais de 250 quilos, faz parte da lista que enumera espécies vulneráveis ou em extinção. Hoje, o Instituto Mamirauá gerencia um programa de manejo sustentável junto com os pescadores da reserva de mesmo nome. A iniciativa levou ao aumento de 27% na população da espécie no local.

SALÃO DO GOSTO

De dois em dois anos, o Instituto Slow Food promove o Salão do Gosto, em Turim, na Itália, reunindo representantes de 180 países. A edição 2014 recebeu cerca de 240 mil pessoas, incluindo uma delegação de 104 brasileiros – entre chefs de cozinha, produtores e enólogos. O evento funciona como uma grande mostra da diversidade alimentar mundial. Em seus corredores, os participantes podem conhecer mais de 600 variedades de maçãs da região italiana do Piemonte, mil rótulos diferentes de vinhos do mundo todo, ou dezenas de variedades de arroz aromático da Indonésia, por exemplo. Além de divulgar sabores pouco conhecidos, o propósito do encontro é fortalecer uma rede de profissionais capaz de promover uma gastronomia que resgate a conexão com o campo, com os pequenos produtores e as matérias-primas mais tradicionais e sustentáveis.