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Inspirado em Jorge Luis Borges, projeto tenta ensinar poesia aos robôs

Experiência busca a dimensão literária dos algoritmos para tornar a interação entre humanos e computadores mais complexa

Foto alterada pelo Google Deep Dream, sistema de inteligência artificial que expõe as “redes neurais” das imagens
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DollarPhotoClub/Imagem alterada pelo site http://mattischro.me/
Foto alterada pelo Google Deep Dream, sistema de inteligência artificial que expõe as “redes neurais” das imagens Foto: DollarPhotoClub/Imagem alterada pelo site http://mattischro.me/

RIO — Passamos cada vez mais tempo interagindo com máquinas. Algoritmos conduzem nossas buscas na internet, nos ajudam com tarefas e, em tese, simplificam nossas vidas. Embora mais intenso do que nunca, o diálogo com esses robôs, no entanto, continua limitado. Até agora, as máquinas aprenderam a fazer apenas associações técnicas e objetivas, graças aos metadados que lhes fornecemos. Quando buscamos uma informação no Google, por exemplo, precisamos usar termos literais e puramente descritivos. Da mesma forma, assistentes operacionais como o Siri, do iPhone, não sabem lidar com perguntas filosóficas ou existenciais (experimente perguntar algo como “Qual é o sentido da existência, Siri?” e a resposta não convidará a uma discussão). Em resumo, somos obrigados a nos adaptar à pobreza da linguagem dos robôs se quisermos nos comunicar minimamente com eles.

Em um artigo de 1989, intitulado “The poet and the computer” (O poeta e o computador, em tradução literal), o jornalista e pesquisador americano Norman Cousins (1915-1990) já antecipava esse fenômeno. Diante da nossa dependência crescente dos computadores, Cousins temia que acabássemos por imitar a linguagem prática das máquinas, desumanizando nossa relação com o mundo. De tanto nos comunicarmos com os algoritmos, explicou, nossas mentes iriam absorver a sua lógica fria e calculista. Para ele, a poesia era a única saída para salvar nossa sensibilidade. “Seria frutífero encontrar algum tipo de junção entre o técnico do computador e o poeta”, escreveu.

“As máquinas já fazem parte do nosso dia a dia, e nessa relação é importante que não aprendamos demais na direção delas”

Corey Pressman
Antropólogo e e produtor de mídia

Mais de 25 anos depois, no momento em que os algoritmos invadiram de vez o nosso cotidiano, uma nova pesquisa tenta colocar em prática a receita de Cousins, ligando a subjetividade das metáforas com o raciocínio objetivo da informática. Parceria entre diversos centros de pesquisa americanos, o projeto Poetry for Robots (Poesia para Robôs) quer ensinar as máquinas a entenderem — e, por que não? — apreciarem a linguagem poética.

A experiência funcionará em duas partes. Lançada em maio, a primeira etapa convida os internautas a enviarem poemas para ilustrar uma série de 120 fotos sugeridas pelo site do projeto (http://poetry4robots.com). Cada texto será associado a uma imagem específica, gerando “metadados poéticos” ( a pedido do Prosa, os autores André Vallias, Angélica Freitas, Jacques Fux e Leonardo Villa-Forte escreveram poemas inspirados na proposta ). Em setembro, a equipe fará operações de busca nesse banco de imagens para conferir o que as máquinas aprenderam “da nossa poesia e das nossas conexões metafóricas, nossa visão humana do mundo”, ou melhor: que tipo de associações elas criam entre uma imagem e seu equivalente lírico. Em uma segunda etapa, o projeto testará ainda mais a criatividade dos robôs, fazendo com que eles escrevam seus próprios poemas a partir dessas informações.

— As máquinas já fazem parte do nosso dia a dia, e nessa relação é importante que não aprendamos demais na direção delas — argumenta o antropólogo e produtor de mídia Corey Pressman, idealizador do Poetry for robots, em entrevista por e-mail. — Ao contrário: devemos projetar a experiência para a dimensão humana. E a melhor maneira de fazer isso é envolvendo diretamente o pensamento das artes e das humanidades na ciência da computação. Então, sim, eu concordo com a receita de Cousins: poetas, artistas, autores, filósofos, todos devem acompanhar os engenheiros para que possamos transformar a computação em uma verdadeira e holística realização humana.

Além de Cousins, Jorge Luis Borges é outra fonte de inspiração para o projeto. Em uma palestra sobre a linguagem humana na Universidade de Harvard, nos anos 60, o escritor argentino definiu a metáfora como “uma identificação voluntária, por meio da emoção, entre dois ou mais conceitos diferentes”, capaz de criar conexões entre palavras tão díspares quanto “olhos” e “estrelas”. Atualmente, os sistemas de busca usados na internet funcionam na contramão desse conceito: quanto mais pobre e descritiva for a linguagem, maior a possibilidade de sucesso. Se digitarmos “olhos” no Google, dificilmente receberemos fotos de estrelas em troca.

Com os “metadados poéticos” gerados pelo projeto, no entanto, isso poderá mudar. Se os robôs forem capazes de manipular metáforas e entender as conexões descritas por Borges, as possibilidades de busca serão ampliadas significativamente. Para Corey, nossa relação com as máquinas ficará muito mais complexa se as ensinarmos a pensar como nós — e não o contrário.

— Percebemos, descrevemos e experimentamos a realidade através de nossa capacidade linguística — explica o pesquisador. — Esta é uma operação rica e complexa, cuja abordagem ainda escapa ao metadado descritivo típico. Em vez disso, ele inclui informações técnicas e, na melhor das hipóteses, uma pequena lista de adjetivos metonímicos fornecidos por estagiários não remunerados.

Poetry for Robots é apenas mais uma iniciativa recente a mergulhar na sensibilidade digital. Novos programas de inteligência artificial, como o Deep Dream, nos permitem conhecer as “redes neurais” do Google. Ao reinterpretar uma imagem através de uma camada de neurônios artificiais, que a transforma praticamente em uma obra surrealista, o sistema nos mostra uma espécie de “sonho” ou “inconsciente coletivo” dos robôs.


Jorge Luis Borges, cujas palestras em Harvard serviram de inspiração para o Poetry for Robots: foto do autor nos anos 80 alterada pelo Google Deep Dream
Foto: Foto original de Silvio Romero
Jorge Luis Borges, cujas palestras em Harvard serviram de inspiração para o Poetry for Robots: foto do autor nos anos 80 alterada pelo Google Deep Dream Foto: Foto original de Silvio Romero

Como previu Cousins, a poesia se mostrou uma ferramenta preciosa para desenvolver o potencial intelectual e criativo dos computadores. Embora seja preciso esperar até setembro para conhecer os versos que os robôs do Poetry for Robots irão criar, outros projetos já nos dão exemplos concretos de uma nova corrente conhecida como “poesia-robô”. É o caso do Pentametron (@pentametron), uma conta de Twitter que compõe sonetos a partir de tweets alheios. Com o uso dos algoritmos, ele rastreia publicações aleatórias na rede social e as combina formando pentâmetros iâmbicos, um tipo de métrica clássica muito difícil — era a favorita de Shakespeare.

Os autores dos tweets não são avisados de que estão participando da experiência, o que significa que, neste exato momento, o leitor desta reportagem pode estar compondo versos em parceria com robôs sem sequer saber disso. Mesmo abusando involuntariamente do nonsense, os sonetos permanecem fiéis à métrica rigorosa do pentâmetro, e acabam surpreendendo por sua estranha beleza e sonoridade.

— Os poemas são interessantes porque são tecnicamente perfeitos: o ritmo e a rima costumam funcionar muito bem, mesmo que o conteúdo seja arbitrário — avalia o artista e programador Ranjit Bhatnagar, criador do projeto. — É interessante ver as conexões entre dois tweets aleatórios, e é satisfatório quando eles parecem se relacionar de alguma forma.

“As Humanidades Digitais, que aplicam técnicas da ciência da computação e de data para entender a literatura de outras maneiras, é uma área de pesquisa relativamente nova.”

Daniel Rockmore
Professor de Ciências da Computação na Universidade de Dartmouth

Criado pela b_arco, um centro cultural de pesquisa de São Paulo, o Poetweet é um exemplo parecido de gerador automático poético. Ele permite a qualquer usuário transformar seus tweets em três tipos de composição poética: soneto, rondel e indriso. Autora de “Não conheço ninguém que não seja artista” (Editora Confeitaria), a poeta Ana Guadalupe testou o programa e ficou bastante impressionada ( leia o poema abaixo ).

— O algoritmo tem uma capacidade de encontrar trechos e ideias que você nunca usaria, rimando coisas absurdas que até fazem sentido — diz ela. — Parece que o robô alcança um espírito livre e um “caos criativo” que a gente não consegue.

Não por acaso, a academia também passou a explorar com mais ênfase o assunto. Em 2015, a Universidade de Dartmouth promoverá o primeiro Neukom Institute Prizes in Computational Arts, uma série de competições em que os participantes deverão montar códigos capazes de gerar contos, poemas e músicas. Estes concorrerão mais tarde com outras obras criadas por humanos — sem que o júri saiba qual é qual.

— As Humanidades Digitais, que aplicam técnicas da ciência da computação e de data para entender a literatura de outras maneiras, é uma área de pesquisa relativamente nova — diz Daniel Rockmore, Professor de Ciências da Computação na Universidade de Dartmouth e idealizador da competição. — Quanto ao nexo particular entre inteligência artificial e escrita criativa, creio que essa colisão de disciplinas rende questões interessantes em torno da filosofia e da neurociência cognitiva.

A junção entre algoritmo e literatura não é exatamente uma novidade. A diferença é que, nos últimos anos, os projetos estabeleceram trocas cada vez mais complexas com os humanos. Como bem observou a revista “Vice”, o maior interesse do Pentametron é que ele se baseia em nossos sentimentos; suas tortuosas combinações matemáticas acabam, bem ou mal, refletindo a “cadência da vida contemporânea” e dando um sentido ao fluxo frenético de informação das redes sociais.

Os automatismos na literatura existem há décadas. Basta lembrar as experiências dos dadaístas e os poemas combinatórios do OuLiPo — corrente literária formada por escritores e matemáticos, que desde os anos 1960 brincam com os geradores de texto informáticos. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e autor de “Poesia digital: Teoria, História, Antologias” (Ed. Navegar), o pesquisador Jorge Luiz Antônio lembra que a poesia eletrônica se iniciou em 1959, com a publicação dos estudos do alemão Theo Lutz, criador de um programa para produzir textos a partir de estoques de palavras.

— O surgimento dos programas hipertextuais, em 1967, ofereceu inúmeras possibilidades de desenvolvimento do uso das tecnologias computacionais para a criação da literatura: poesia, narrativa e gêneros híbridos — lembra Antônio. — Parece-me que hoje poderíamos pensar que o engenheiro de mundos é o grande artista do século XXI, como escreveu Pierre Lévy.

Artista de mídia e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Giselle Beiguelman lembra que a literatura sempre foi mediada por uma relação maquínica, do pergaminho ao computador. Mas a simbiose aumenta na medida em que ela encontra os dispositivos atuais, capazes de em um só tempo ler, escrever e publicar. A maquinização da produção literária, porém, não difere da humana em um aspecto essencial: depende da inteligência de seu autor, seja ele um ser em carne e osso ou um algoritmo.

— Nem todo humano que sabe ler pode escrever um texto com qualidade literária, assim como nem todo algoritmo é um narrador em potencial — diz Giselle.

Com algoritmos cada vez mais sofisticados, pode-se temer que a receita de Cousins seja invertida: depois de permitir uma relação qualificada com os humanos, máquinas sensíveis acabariam substituindo a literatura humana. Haveria alguma chance dos robôs se tornarem os escritores do futuro?

— Obras importantes influenciam mecanismos neurológicos de seus leitores, graças à sua densidade psicológica e ao seu entendimento humano. Não creio que máquinas gerem textos desse porte — opina o escritor Jacques Fux, autor de diversos estudos sobre matemática e literatura, e que lança seu novo romance, “Brochadas” (Rocco), na próxima quarta. — Mas talvez elas possam criar tramas de livros policiais ou alguns poemas mais triviais.

Corey Pressman, por sua vez, acredita que não há nada a temer desse acordo entre computadores e humanos. E vai além:

— Haverá uma era de grandes obras-primas das máquinas, que unirá a todos nós em uma submissão artística, enquanto admiramos as criações da nossa criação.

O inferno

(Soneto de Ana Guadalupe gerado pelo Poetweet)

Parece ser uma ótima consequência

Vezes e nada. falta de respeito.

Comida estragada ou coincidência?

O taxista bastante satisfeito

.

Divulgar a própria arte, ter filho

Tá morando em são paulo, amanda?

Cursinho de estilo para susan milho

Gentileza sua! (nunca ouvi a banda)

.

Que beber o quê, litros de pinga?

Recomendo!

I'm a little bit nerso da capitinga

.

Querendo "tirar uma graninha"

Momentinhos embalixo delícia

Sentido nenhum, grande pegadinha

QUATRO POEMAS INSPIRADOS NO PROJETO POETRY FOR ROBOTS:

André Vallias, autor de 'ORATORIO - encantação pelo Rio" (Azougue/Cultura e Barbárie)

André Vallias, autor de 'Ar7eria' (Azougue) Foto: Reprodução
André Vallias, autor de 'Ar7eria' (Azougue) Foto: Reprodução

como ficou chato

ser contemporâneo

serei instantâneo

.

agora

.

como ficou chato

ser instantâneo

serei um autômato

.

agora

.

ae10-i6-o16-u4

c7-f2-gh2-m5

n8-p1-r7-s6-t9

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Angélica Freitas, autora de "Rilke Shake" (Cosac Naify)

Poetry for Robots Foto: Divulgação
Poetry for Robots Foto: Divulgação

do inverno, o sol

também o açúcar

a tarde nos dedos

(namorada nova)

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Jacques Fux, autor de "Brochadas" (Rocco)

Jacques Fux, autor de 'Brochadas' (Rocco) Foto: Reprodução
Jacques Fux, autor de 'Brochadas' (Rocco) Foto: Reprodução

Nossos corpos e nossas almas

Deixaram de se entrelaçar no despertar da manhã

Foi a primeira vez

E também a última

Brochadas: há ainda mais mistérios entre o Céu e a Terra

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Leonardo Villa-Forte, autor de "O explicador" (Oito e Meio)

Poetry for Robtos Foto: Reprodução
Poetry for Robtos Foto: Reprodução

Perdi o mindinho, estimado G.

Era um rojão explosivo, ninguém fazia aniversário

Pendeu por um fio, o dedo sem costura

faz falta. Menos ao digitar,

para isso é desnecessário