Rio

Mario Moscatelli, o padrinho de pássaros e caranguejos e protetor dos manguezais

Biólogo luta contra crimes ambientais e em defesa dos mangues da Lagoa Rodrigo de Freitas, replantados por ele há 25 anos

Abraçado à causa. O biólogo Mario Moscatelli em frente ao manguezal: há 25 anos ele plantou as primeiras mudas de espécies nativas
Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Abraçado à causa. O biólogo Mario Moscatelli em frente ao manguezal: há 25 anos ele plantou as primeiras mudas de espécies nativas Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO - Em um sábado de 1989, quase fim do ano, Mario Moscatelli sentiu medo de morrer. Era um biólogo recém-formado e cheio de sonhos. Foi acordado logo cedo por um telefonema no apartamento dos pais, em Copacabana. A voz do outro lado lhe causou assombro: “Se voltar para Angra, vamos te matar”, disse um homem, antes de encerrar a chamada. Moscatelli chefiava, aos 25 anos, o Departamento de Controle Ambiental de Angra dos Reis, em cuja sede morava durante a semana. Uma imensa área de manguezais na cidade sofria com a especulação imobiliária — com aval de órgãos ambientais, diz Moscatelli. Ele comprou briga com pessoas influentes para impedir a construção de grandes empreendimentos em áreas protegidas.

— Quando me dei conta, estava brigando com toda a estrutura de poder na cidade. Eu não imaginava o perigo que corria até receber essa ligação. Venci algumas batalhas, perdi outras, mas não me dobrei. Meu partido político sempre foi o meio ambiente — afirma o biólogo, hoje com 50 anos.

Mas a voz e a ameaça ainda ecoavam em seus pensamentos. Poucos dias após o telefonema, ele caminhava ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas enquanto pensava sobre a vida. Ao olhar para o chão, percebeu na terra uma grama típica de manguezais, um dos ecossistemas mais ricos e o mais ameaçado do mundo, segundo o Programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente (Pnuma). Fez uma pesquisa histórica e descobriu um antigo documento da Fundação Oswaldo Cruz, de 1939, que não deixava dúvidas: a Lagoa já foi cercada por manguezais.

Silenciosamente, começou a trazer de Angra mudas de três espécies: dos mangues vermelho, branco e preto. O Chevrolet Marajó de seu pai voltava para o Rio repleto de plantas — tanto que ele se refere ao veículo como “manguemóvel”. Hoje, 25 anos depois, as mudas se converteram em árvores, algumas com até oito metros de altura. Pelos cálculos de Moscatelli, foram 4,5 mil mudas plantadas em quase dois quilômetros de extensão.

Os manguezais da Lagoa foram desaparecendo com os aterros que a região sofreu no século passado. Moscatelli estima que cerca de 50% da área original do espelho d’água (atualmente são 2,4 quilômetros quadrados) tenha sido aterrada. Visitada por 120 mil cariocas todo fim de semana, a Lagoa ganhou biodiversidade com os cuidados do biólogo. Quem se embrenhar naquela mata poderá ver vários tipos de caranguejo, como o aratu, o vermelho, o guaiamum, da cor azul e o chama-maré, que tem uma das pinças bem maior que a outra. Há também as aves, como biguás, frangos d’água e savacus.

Um pássaro vermelho pousa na copa de uma árvore do manguezal e canta. Moscatelli olha para ele e diz.

— Esse eu não conheço. Tenho muitos inquilinos — brinca. — A quantidade de aves aumentou muito. Em relação aos crustáceos e outras espécies da vida marinha, manguezais são verdadeiros berçários. De certa forma me sinto padrinho desses pássaros e caranguejos. É o ambiente perfeito para eles.

“VAI DAR MANGA?”

Sempre que pode, Moscatelli visita o seu manguezal. Ao ver sacos plásticos jogados no solo, ali perto dos pedalinhos, irrita-se:

— Não fazemos o básico, que é jogar o lixo no lugar certo —, diz, apontando para uma lixeira a poucos metros de distância. — O absurdo se reproduz a cada minuto. Não faltam lixeiras, falta educação.

O biólogo ri ao lembrar a reação das pessoas, duas décadas e meia atrás, quando o viam de enxada na mão. Perguntavam-lhe o que estava plantando. “Mangue”, dizia. “Então vai dar manga?”, ele ouviu muitas vezes. “Se der certo, vai dar caranguejo”, respondia.

Há tanto tempo frequentando a Lagoa, Moscatelli é uma testemunha ocular da melhora nas condições da água. Quando começou o replantio, convivia com galerias pluviais que estavam mais para “galerias fecais”, como ele próprio chama. Além disso, via o óleo dos postos de gasolina ser despejado diretamente no espelho. Entre 2000 e 2002, foram três grandes mortandades. No total, 400 toneladas de peixes mortos foram retiradas da Lagoa.

— A cidade abraçou a Lagoa e impôs ao poder público a sua vontade. Um acordo com o Ministério Público em 2003 obrigou a Cedae a recuperar o sistema de elevatórias e trocar vários quilômetros de estreitos tubos de ferro por outros, bem maiores, de polietileno. As mortandades acabaram — afirma.

Há muitos anos, a Cedae é um dos alvos preferidos da mira de Moscatelli.

— O que me indigna é o fato de a Cedae estar acima do bem e do mal. A Lagoa Rodrigo de Freitas é nosso único ecossistema pronto para as Olimpíadas. Nas outras lagoas, e também nos rios da cidade, tenho o infeliz privilégio de assistir à degradação de ecossistemas. O Rio cresceu desordenadamente, mas a rede de saneamento não acompanhou — pondera. — O homem já foi à Lua, quer ir a Marte, mas continua jogando fezes nos rios.

REENCONTRO COM A MULHER

Sua relação com aquele perímetro de 7,5 quilômetros é quase metafísica. Em momentos delicados, Moscatelli sempre volta para lá em busca de força para seguir em frente. Foi assim no fim dos anos 90, quando ele perdeu, num breve intervalo, a mãe e o pai — ela do Sul da Itália, ele do Norte. E também em 2008, quando teve um linfoma diagnosticado. O difícil tratamento acabou com um bem-sucedido transplante no ano seguinte.

Quando chega ao mangue, em meio a uma crise, ele vai para o meio das árvores e — como o poeta Olavo Bilac e suas estrelas — conversa com elas. Em uma dessas visitas, em 1994, reencontrou por acaso uma amiga de colégio. Em pouco tempo, a engenheira agrônoma Maria Lucia se tornou a senhora Moscatelli. O amor floresceu e deu frutos: Carolina, de 17 anos, e Giovanna, de 13.

Quando não está denunciando crimes ambientais, nem cuidando dos mangues da Lagoa, o biólogo pode ser visto conversando sobre outra paixão: a saga “Guerra nas estrelas”. Em seu apartamento, na Barra da Tijuca, guarda uma estátua de Darth Vader de quase dois metros de altura. Em abril do ano que vem, ele viaja para a Califórnia, onde participará de um encontro de aficionados.

Para replantar sozinho um manguezal inteiro, é preciso mesmo ter força de jedi.