• Depoimento a Letícia González
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A gerente de marketing Hellen Elias: há seis anos, o passado que ela desconhecia apareceu na tela do computador (Foto: Arquivo pessoal)

A gerente de marketing Hellen Elias: há seis anos, o passado que ela desconhecia apareceu na tela do computador (Foto: Arquivo pessoal)

“Sou filha adotiva do segundo relacionamento dos meus pais. Eles se conheceram numa cidadezinha do interior do Mato Grosso do Sul, onde cada um tinha uma loja, ele de roupas, ela de sapatos. Os estabelecimentos ficavam um ao lado do outro e, de tanto se encontrarem, acabaram se apaixonando. Já tinham mais de 40 anos.

O problema é que ambos eram casados e a decisão de se divorciar e viver a paixão que os arrebatou causou escândalo na comunidade. Por isso optaram por se mudar para Dourados, no mesmo estado, e recomeçar a vida lá. Foi onde nasci.

Minha mãe adotiva casou pela primeira vez aos 18 anos, num enlace arranjado pelas famílias dos noivos, que eram árabes. Ela teve três filhos com ele – o caçula tinha 17 anos quando o relacionamento acabou e foi o único a se mudar com ela para Dourados. Já meu pai tinha sete filhos do primeiro casamento e perdeu contato com boa parte deles por causa da separação.

"Não quis procurar minha mãe biológica, a única família que fazia sentido era a que já tinha"

 

Na nova cidade, seguiram a vida de comerciantes e, juntos, abriram uma loja de artigos gerais, que minha mãe tocava. Foi nesse estabelecimento que ela empregou uma moça chamada Márcia*.

Márcia tinha 21 anos e o corpo grande, robusto. Talvez por isso ninguém estranhou a mudança de silhueta naquele verão de 1979. Ela engordava a olhos vistos, mas minha mãe não desconfiou de nada. Em março, a vendedora precisou subir num banquinho para pegar uma caixa de sapatos do alto da estante e caiu. Foi parar no hospital com o que parecia ser um pé quebrado, e faltou ao trabalho no dia seguinte. Preocupada, minha mãe foi visitá-la.

Chegando lá, veio o choque: Márcia tinha dado à luz a mim, que estava embrulhada ali quietinha, no quarto. A jovem vinha escondendo a gravidez com faixas e roupas largas, e tinha dúvidas se eu vingaria, já que tentou interromper a gravidez muitas vezes com remédios abortivos. Ela era solteira e tinha medo da reação da família, de quem também escondera a barriga.

Naquele momento, comigo nos braços, uma bebê supersaudável, Márcia planejava começar uma vida em família com o namorado, que viria buscá-la no hospital a qualquer momento. Mas o plano deu errado: o namorado fugiu da cidade e, antes que ela conseguisse pensar em outra solução, seu pai (meu avô biológico), um homem bronco e conservador, invadiu o hospital com uma espingarda na mão. Vinha buscá-la para levá-la a um prostíbulo, já que havia se transformado em uma ‘mulher da vida’, nas palavras dele. Estava tão transtornado que, dizia, faria questão de ‘ser o primeiro cliente’. Ninguém da família interveio.

Helen com a mãe adotiva, Vitoria Elias, já falecida: ela nunca escondeu a história da filha (Foto: Arquivo pessoal)

Helen com a mãe adotiva, Vitoria Elias, já falecida: ela nunca escondeu a história da filha (Foto: Arquivo pessoal)



Revoltada, Márcia rebateu aos berros as agressões e conseguiu mandar o pai embora. Mas se viu, então, a sós comigo, sem casa nem apoio da família. Decidiu pedir ajuda à patroa, que a acolheu. A ideia era procurar um emprego que pudesse servir também de moradia, como o de doméstica numa casa de família. Enquanto isso, a mulher que viria se tornar minha mãe tomava conta de mim, me dava carinho e montou meu enxoval.

As semanas foram passando e a busca de Márcia por trabalho esgotaram as opções das redondezas. Foi então que ela sugeriu: ‘E se eu for mais longe e voltar para buscar a bebê quando conseguir algo?’. Meu pai adotivo prontamente respondeu: ‘Se você for, é definitivo’. E foi assim que, três meses depois do meu nascimento, meus “pais” se tornaram meus “pais”.

Márcia abriu mão do poder pátrio no cartório e saiu da cidade. Fui registrada como filha daquele casal apaixonado, que nunca escondeu essa história de mim. Sempre soube que era adotiva e me sentia bem com isso. Quando tinha apenas três anos, minha mãe já dizia: ‘Veja como você tem sorte. Todo mundo tem uma mãe e você tem duas’.

Nunca quis procurar minha mãe biológica, sentia que a única família que fazia sentido era a que já tinha. Em casa havia uma caixa com o livro de registro da loja onde as duas trabalharam juntas, com nome, sobrenome e foto. Ficava num cofre, para mim. Minha mãe achava importantíssimo que eu tivesse essas informações porque, no fundo, morria de medo que eu viesse a me apaixonar por um irmão biológico ou coisa parecido, como numa novela mexicana.

"Na primeira vez que ouvi a voz da minha irmã, chorei muito"

 

Eu poderia abrir a caixa quando quisesse. Mas me negava. Brigava com a minha própria curiosidade e a evitava. Cresci rodeada de amor e assim formei a noção de maternidade que tenho até hoje: mãe é quem cria.

Quando estava na quarta série, um homem bateu na porta de casa com um bebê nos braços e abordou meu pai. Queria saber se eu estava lá e se parecia fisicamente com a neném que ele carregava, filha dele e de Márcia. Meu pai me contou tudo e colocou a decisão nas minhas mãos. Se quisesse, conheceria a mulher que me pariu. Eu não quis.

Na época, tinha assistido pela televisão a algumas histórias de filhos que reencontram suas mães biológicas e não via sentido naquelas choradeiras. Era como chorar por um estranho na rua, pensava. Era muito feliz com a vida que levava.

Pouco tempo depois, meu pai adotivo morreu de um ataque cardíaco fulminante. Minha mãe, que era muito apaixonada por ele, entrou numa depressão profunda que só começou a passar só um ano depois. Ela parou de trabalhar e ficava em casa chorando muito. Nessa época, minha irmã mais velha cuidou de nós duas, da minha mãe e de mim.

Quando eu tinha 14 anos, ela já estava melhor e trabalhava como funcionária pública quando, um dia, recebeu o telefonema de Márcia. Tampou o tubo com a mão e sussurrou: ‘Sua mãe está ao telefone, você quer falar com ela?’. Senti um frio na barriga e fiz que não muitas vezes com os braços. ‘Quando ela estiver pronta, veremos’, foi o que ela disse à Márcia ao telefone. De novo, achava que já tinha mãe e não precisava de outra. Hoje acho que era uma forma de eu me proteger.

Nesse mesmo ano, foi a vez do coração de minha mãe falhar. Ela era fumante e tinha problema no coração, já tinha ponte safena. Precisou ir a São Paulo fazer um tratamento com a equipe do doutor Adib Jatene. Ela fez uma cirurgia e, durante o pós-operatório, teve falência nos rins e não resistiu. Foram os piores dias da minha vida.

De repente fiquei sem minha família inteira, os alicerces da minha vida. Mesmo assim, nem pensei em procurar a mãe biológica. Procurei minha irmã mais velha, que foi para mim como uma segunda mãe adotiva, uma “irmãe”. Até para me recuperar da perda, estudei muito até passar em uma faculdade federal e me formei em comunicação em Cuiabá.

Pouco depois, estava em São José, em São Paulo, empregada por uma empresa de aviação civil, onde trabalho até hoje, 14 anos depois. Lá conheci meu marido e comecei a estudar marketing e publicidade. Acessava redes sociais para me aprofundar na área de trabalho em grupos de discussão e acabei fazendo amizades online. Uma delas começou em 2009, com uma jovem de 21 anos que me pedia conselhos sobre carreira e com quem eu sentia ter muita afinidade.

"Eu a perdoei porque entendi seu sofrimento"

 

Depois de alguns meses, estava em casa no computador, conversando com amigos, quando essa moça me escreveu: ‘Gostaria de te contar uma coisa, mas tenho medo de você se afastar de mim!’. Estranhei. Estaria ela confundindo a nossa amizade? Comecei a me preparar para uma revelação como ‘Me apaixonei por você’ quando li a frase ‘Você é adotada?’.

Minha cabeça foi a mil, disparou pensamentos frenéticos. Como ela poderia saber algo tão pessoal? Nunca escondi o fato, mas a informação não estava no meu perfil de Facebook. Sabia que não tinha mencionado a ela. Será que estava falando com minha própria mãe?! Mas ela era mais nova! As coisas não faziam sentido.

Logo ela começou a explicar: ‘Minha mãe teve um bebê e não conseguiu cuidar dele, acho que essa criança pode ser você!’. Só conseguia rebater com perguntas que misturavam negação e medo: ‘Qual o nome dela? Você está enganada. Não brinca com isso! Como você sabe? Está me confundindo. Tem certeza?’. Ela tinha. Meu mundo parou de girar e comecei a chorar e rir ao mesmo tempo.

Pedi seu número de telefone e liguei na hora. Foi a primeira vez que ouvimos a voz uma da outra e choramos muito. Falei também com o pai dela, o mesmo homem que tinha ido à minha casa quando eu era pequena. Ele me pareceu muito sensato em entender que eu precisava de um tempo para processar aquelas informações. Foi tudo diferente de quando eu era adolescente. Para começar, não tive opção. Minha irmã me procurou sem eu saber que tínhamos um laço.

A gerente de marketing: após entrar para um grupo de apoio à adoção, ela e o marido entraram na fila de espera por um bebê (Foto: Arquivo pessoal)

A gerente de marketing: após entrar para um grupo de apoio à adoção, ela e o marido entraram na fila de espera por um bebê (Foto: Arquivo pessoal)

Relutei por alguns dias à ideia de conhecê-los. Ainda estava cética em relação ao reencontro, pois sentia que já tinha experimentado o amor de mãe. Sei que, se fosse viva, minha mãe teria incentivado esse encontro. Mas acho que eu mesma pensaria duas vezes, por medo de magoá-la. Mas a verdade é que não consegui dormir. Ia para o trabalho, falava com meu marido e não conseguia tirar aquele telefonema da cabeça.

Como poderia seguir adiante sem conhecer completamente o meu passado? Era o que me perguntava. Sou ariana e, de repente, esse lado de querer resolver as situações bateu forte. ‘Vamos lá!’, disse, de repente, ao meu marido.

Então o grande dia chegou. Pegamos o avião em São Paulo e, perto do meio-dia, desembarcamos em Cuiabá. Para minha surpresa, um grupo de pessoas nos esperava. A primeira pessoa que vi pelo vidro da sala de desembarque foi essa irmã, minha ex-amiga virtual.

Ela foi a primeira a me abraçar. Em seguida, o homem com quem eu falara ao telefone e o outro filho dele, acompanhado da mulher grávida. A alguns passos de distância, podia enxergar com o canto do olho uma senhora que chorava muito e aguardava sua vez. Quando cheguei perto dela, ela me apertou forte e sussurrou: ‘Obrigada por ter vindo’. Cheguei a pensar que era muito insensível, mas neste momento não consegui me emocionar. Na verdade, acho que a ficha demorou pra cair.

"Decidimos entrar na fila de adoção. Estou pronta para fazer o que minha mãe fez por mim"

 

Fomos todos almoçar em um restaurante à beira de um lago. Falamos de amenidades, dos lugares de São Paulo que eles conheciam e de hobbies. Minha mãe biológica tinha agora uma vida confortável, era dona de uma empresa. Na minha cabeça, buscava pontos de divergência o tempo todo. Alguém mencionou uma viagem de moto e retruquei internamente, para mim mesma: ‘Odeio motos’. Era como se quisesse me assegurar de que aquele não era o meu mundo.

No final do almoço, percebi que mal tinha falado com a minha mãe biológica, ainda que tivesse ensaiado frases para ela na minha cabeça. O que se diz nessas horas? ‘Ei, por que você me deixou?’ Não consegui. Me despedi e para o hotel em meio a um turbilhão de emoções, incomodada com os beijos e abraços que aquela família de sangue havia me dado.

No quarto, meu marido me deu um chacoalhão: ‘Se você está inquieta, imagine ela. Pense no desespero de não saber qual será sua reação’. Ele me aconselhou a ficar aberta e dar o primeiro passo. Foi o que fiz, à noite, quando fomos dar um passeio juntas antes do jantar.

Entrelacei meu braço no dela e elogiei seus anéis, ainda que pudesse ouvir a voz interna que me dizia que nossos gostos para joias eram diferentes. Já no restaurante (eles haviam escolhido um de estilo árabe para me agradar), me sentei ao lado dela, disposta a iniciar a conversa que esclareceria toda a minha história.

Olhando firmemente em seus olhos, pude perceber o quanto havíamos esperado por aquilo. E naquele momento, me senti pronta para seguir em frente. Comecei de forma direta, já não podia mais esperar: ‘Há quanto tempo vocês estão me procurando?’. ‘Na verdade, nunca deixamos de te procurar’, ela respondeu. Era verdade. Ela havia tentado contato e eu havia negado, por não estar preparada. Nessa hora comecei a chorar e me abracei nela. Finalmente a emoção me pegava em cheio.

Foi então que, com os olhos vermelhos, ela começou a me contar a história pela sua perspectiva, do abandono da família, da ajuda de minha mãe e da decisão mais difícil que tomou na vida. Disse que havia me entregado não apenas pela educação que poderia me dar, mas porque viu nela uma mãe amorosa. Ela queria um futuro cheio para sua filha, e me deixou como um ato de amor.

Também me falou sobre os momentos difíceis que passou depois, chegando a morar na rua, e como conseguiu, aos poucos, se reerguer. Trabalhou como secretária, estudou e começou um negócio de impressão gráfica com o marido. Senti uma enorme vontade de tranquilizá-la. ‘Hoje estou feliz, tenho saúde, sou casada, falo dois idiomas, trabalho em uma multinacional e tenho um futuro promissor’, disse. E emendei: ‘Eu te perdoo’. Foi algo que saiu na hora, de coração e sem nenhum planejamento. Antes de conhecê-la, não sentia raiva, mas uma indiferença.

Naquela hora, pela primeira vez me coloquei em seu lugar, entendi seu lado e aquele bloqueio que eu tinha se desfez. Entendi o quanto ela estava sofrendo e que dizer aquilo seria bom para ela e para mim. Abraçada nela, senti seu corpo se curvar em soluços mais fortes. ‘Era tudo o que eu queria ouvir’, ela respondeu.

O alívio parecia geral naquela mesa, onde todos dividiam o peso de minha mãe e a angústia dela antes de me conhecer. Conseguimos conversar mais sobre a história das nossas vidas, agora apenas com carinho e curiosidade uma pela outra.

Voltei para São Paulo com a sensação de que havia fechado um ciclo e, alguns anos depois, eu e meu marido começamos a tentar engravidar. Já estávamos juntos havia vários anos, eu tinha 33, e a hora havia chegado. Não foi fácil e, no final de 2014, decidimos procurar uma clínica de fertilização.

Logo no início, no entanto, tivemos uma entrevista incômoda com uma das assistentes do local que mudou os nossos planos. Ela explicava o processo como se estivesse tentando nos vender um carro, usando técnicas de negociação que eu, por trabalhar com isso, conhecia bem. Dizia que a tabela de preços viraria na semana seguinte e que era melhor nos apressarmos em decidir sobre o ‘pacote’. Pedi uma conversa a sós com o meu marido e cancelei tudo. Não queria ter um filho daquela maneira.

Foi quando procuramos e conhecemos um grupo de apoio à adoção em São José. Sei como funciona o amor entre pais e filhos que não são ligados por sangue e, ao frequentar as reuniões, vi mais uma vez como esse é um caminho de amor. Quando estou nos encontros, tento usar minha experiência para tranquilizar as famílias que sofrem com inseguranças. O amor em família adotivas é real, e não deveria ser questionado. Este ano, decidimos entrar na fila. Estou pronta para fazer o que minha mãe fez por mim”.

*O nome foi trocado a pedido da entrevistada.