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Refugiados relatam momentos de terror a caminho da Europa

Para escapar de guerras e ditadura, migrantes enfrentam Mediterrâneo
Sobreviventes. Migrantes fazem fila para desembarcar em Catânia de navio da guarda costeira italiana que os resgatou no Mar Mediterrâneo Foto: Alessandra Tarantino / AP/24-4-2015
Sobreviventes. Migrantes fazem fila para desembarcar em Catânia de navio da guarda costeira italiana que os resgatou no Mar Mediterrâneo Foto: Alessandra Tarantino / AP/24-4-2015

PARIS E BERLIM — A travessia clandestina do Mar Mediterrâneo para a Europa é um convite à morte. Milhares de pessoas já morreram nos últimos anos tentando chegar ao Velho Continente, e no fim do mês passado o maior naufrágio de um navio de refugiados deixou ao menos 700 mortos e levou a União Europeia a reagir aumentando os recursos para operações de resgate na região. Para imigrantes que fogem da guerra civil na Síria e da cruel ditadura na Eritreia, porém, o risco é pequeno diante do sonho de uma vida livre na Europa.

Fistum Nayzgi, de 28 anos, está há apenas 20 dias na França. Nascido na Eritreia, hoje vive junto com centenas de outros imigrantes em tendas amontoadas sob o viaduto do metrô de superfície na estação de La Chapelle, no norte de Paris. Sua história se assemelha a de muitos outros no acampamento improvisado. Saiu da Eritreia para o Sudão; de lá foi para a Líbia; então atravessou o Mediterrâneo até a Itália, até chegar na França. No seu caso, a peregrinação levou oito longos anos.

Dizendo-se perseguido político em seu país, ele conta que por várias vezes, desde 2001, tentou cruzar a fronteira para o Sudão, mas sempre acabou detido, enviado para a prisão e depois para o serviço militar. Na última tentativa, em 2006, ficou seis meses encarcerado. Um ano depois, decidiu pagar US$ 600 a um atravessador para finalmente conseguir passar clandestinamente a fronteira. No Sudão, permaneceu seis anos em um campo para refugiados. No final de 2013, resolveu partir para a Líbia. Desta vez, desembolsou US$ 2.000 para viajar 12 horas pelo deserto, em um veículo com mais 30 pessoas.

Na Líbia, trabalhou um ano como pintor de obras, até juntar dinheiro para partir para o continente europeu. Nayzgi obteve o contato de um “homem de negócios” que providenciava a travessia ilegal de migrantes até a Itália. Pagou US$ 1.600 e esperou um mês até poder partir em um grupo de 250 pessoas.

— Disseram que seria um barco grande, com toda a segurança e acomodações aceitáveis. Mas, quando vimos, era uma embarcação sem as mínimas condições.

Os passageiros viajavam no porão, agachados ao redor do motor, instalado no centro. Nayzgi garante que o propulsor era um motor de caminhão, e não de barco, que quebrou após uma hora de viagem.

— Após um tempo, trouxeram um barco maior e nos rebocaram. Pensei que, amarrados assim, voltaríamos para a Líbia, mas seguimos o caminho para a costa da Itália. Foi terrível. Pessoas morreram durante o trajeto, e jogavam os corpos ao mar.

Após dez horas de viagem, os dois barcos permaneceram cerca de uma hora estacionados em águas italianas, até que os passageiros foram resgatados e o capitão, capturado. Enviado a um centro de refugiados, Nayzgi escolheu partir para a França. Sem falar francês e sem documentos para permanecer no país, seu futuro está repleto de incertezas. Apesar da ajuda humanitária proporcionada por diferentes associações, a situação é precária.

— Tudo o que tenho hoje é o número de registro que me deram quando desembarquei na Itália. Aqui, vivo na rua. Não trabalho, não tenho dinheiro, não falo a língua. O governo não nos ajuda. Isto é a Europa?

DEZ HORAS DE NADO

Quando acompanhou na TV as notícias da tragédia no Mediterrâneo, Safwan al-Moubark, um ex-professor de Educação Física de Damasco, sentiu de novo a adrenalina de cinco meses atrás, quando teve o momento de pior estresse na sua vida: a viagem de dois meses de Damasco a Berlim — da qual a pior parte foi cruzar o mar.

— Durante a viagem, eu passei dez dias sem alimentos, mas o pior foi mesmo depois que o barco afundou, e precisei nadar por quase dez horas até conseguir ser salvo — lembra o sírio, que reside atualmente em um abrigo de refugiados em Berlim.

Jovem e em forma, conseguiu sobreviver e ajudar outros que estavam perto. Mas muitos morreram. O caso não foi divulgado por uma única nota de jornal.

— Fugitivos morrendo afogados no Mediterrâneo virou rotina e abordados pela mídia são apenas os casos espetaculares com centenas de vítimas — diz Safwan, com ar de resignação.

Como parecia impossível sobreviver à viagem com os dois filhos pequenos, Safwan deixou a família na Síria com o plano de organizar uma viagem mais segura para as crianças. Oficialmente, porém, ele tem o status de “tolerado” na Alemanha, sem direito a trabalhar ou mandar buscar a família, por mais grave que seja o risco que esta enfrenta.

— Entre a ditadura de Assad e a barbaridade do Estado Islâmico, os sírios vivem uma situação de desespero. Mas deixar o país não é fácil, porque nenhum lugar do mundo nos oferece visto para viajar legalmente — diz.

A síria Maya Alkhechen também enfrentou a viagem de alto risco acompanhada do marido e do filho de 3 anos, há cerca de oito meses.

— O navio era pequeno e transportava cerca de 300 pessoas, muito mais do que a sua capacidade. Por isso, o motor funcionava durante duas horas e parava por um período igual, durante o qual o barco era sacudido pela turbulência do mar. Nesses momentos, só podíamos rezar para que nada acontecesse — lembra.

Tudo no navio era terrível. A alimentação era pouca. De manhã, uma fatia de pão. Meio-dia, duas colheres de arroz. Nos sete dias de viagem, as pessoas dormiam sentadas, amontoadas umas sobre as outras.

— Quase todo mundo ficava com náuseas e vomitava. Como não havia possibilidade de ir ao banheiro, porque havia só um para 300 pessoas, o vômito era despejado nos outros — disse.

Maya diz que ainda hoje vê como um milagre o filho pequeno não ter adquirido uma doença grave. Quando o navio chegou perto da costa italiana e foi “resgatado” pela policia costeira, a família inteira tinha emagrecido. Mas estava feliz de ter superado o pior. O resto da viagem para a Alemanha foi de trem. Quando atingiram a fronteira da Áustria com a Alemanha, foram presos, mas logo depois receberam apoio quando pediram oficialmente asilo político.