Rio Bairros

Moradores fazem documentário sobre os 50 anos da Cidade de Deus

Intenção é mostrar que comunidade é muito mais que violência

Os produtores do documentário “CDD 50 anos” em frente ao grafite em homenagem ao longa “Cidade de Deus”, que levou a comunidade para além de seus limites físicos
Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Os produtores do documentário “CDD 50 anos” em frente ao grafite em homenagem ao longa “Cidade de Deus”, que levou a comunidade para além de seus limites físicos Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

RIO — Em dezembro de 1964, foi aprovado o projeto que contemplava a criação de um novo bairro entre o Largo da Freguesia e a Barra da Tijuca. As primeiras obras de terraplanagem foram iniciadas em fevereiro, dando, aos poucos, forma ao que mais tarde seria a Cidade de Deus. O paraibano de Leonardo Silva chegou à cidade nesta época, vindo de João Pessoa, para trabalhar como pedreiro. Aos 25 anos, não podia imaginar que ergueria a casa em que moraria pelos próximos 50 anos. Silva é um dos personagens centrais do filme “CDD 50 anos”, que vem sendo produzido desde 2011 e tem lançamento previsto para este ano.

A Cidade de Deus foi financiada pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e construída pela Companhia de Habitação Popular (Cohab). Era parte da política de remodelação do então Estado da Guanabara, capitaneada por Sandra Cavalcante, secretária de Estado de Serviços Sociais do governador Carlos Lacerda. O traçado urbanístico inovador integrava residências a áreas de esporte e lazer, como quadras e praças, comércio e escolas, equipamentos necessários para o funcionamento de um bairro. As redes de água e esgoto e a pavimentação das ruas foram concluídas antes da entrega. Após a enchente de 9 de janeiro de 1966, que provocou a morte de 200 pessoas e deixou mais de 30 mil desalojados em diferentes pontos da cidade, porém, as residências, antes destinadas apenas aos trabalhadores que atenderiam à Barra, foram rapidamente ocupadas pela população proveniente de 63 comunidades, a partir de um plano emergencial. Os alagamentos seguintes continuaram a contribuir para a ocupação desordenada da Cidade de Deus, descaracterizando o plano original do arquiteto Giuseppe Badolato.

— Todo o planejamento foi o de um bairro moderno. Quando ele foi criado, era para ser um suporte para a Barra, fornecendo mão de obra — conta o arquiteto. — A Cidade de Deus foi criada para ser dividida em quadras, como uma comunidade dentro de um condomínio. Depois se tornou um lugar de invasão, crescendo abruptamente, e as áreas livres foram sendo ocupadas irregularmente. Tinha que ser feito um trabalho para adaptar as famílias ao novo espaço. O governo veio com uma filosofia social diferente; a questão era só colocar as pessoas nas casas. Teria sido necessário fazer um trabalho continuado.

O planejamento pode não ter sido seguido à risca, mas os moradores garantem que a Cidade de Deus é um bom lugar para se viver. Embora localizada em uma área de constante expansão, a comunidade que abriga mais de 47 mil habitantes — de acordo com o Censo de 2010 — mantém vivos costumes desaparecidos em outras partes da cidade, como as conversas entre vizinhos sentados à porta de casa, as compras em carros que passam vendendo legumes, frutas e verduras anunciados por um alto-falante e os cumprimentos, a cada esquina, a velhos conhecidos, sempre pelos apelidos cunhados na infância. Foi na Cidade de Deus que Leandro Silva decidiu fincar raízes ao lado da mulher, Maria Silva, e criar os cinco filhos, todos moradores do local. Prestes a completar 50 anos de união, os dois contam o motivo que os faz viver, até hoje, na casa para onde se mudaram em 1966, logo depois do casamento.


Leandro Silva foi um dos primeiros moradores e trabalhou na construção das casas
Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Leandro Silva foi um dos primeiros moradores e trabalhou na construção das casas Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

— Uma tia da Maria já morava aqui e, quando teve a enchente, disse que pessoas de outras comunidades estavam invadindo as casas. Nós viemos para essa, que já estávamos querendo comprar. Chegamos e no dia seguinte fui ao Centro da cidade fazer a escritura. Tinha pouca gente morando aqui. A água do rio era limpa, boa. Não havia esgoto, nem as estradas que ligam à Barra, e ele corria solto. Conheço muitas pessoas aqui. Nunca tive nenhum problema — conta Silva, hoje com 76 anos.

Sua mulher, de 73, conhecida como Maria Costureira pela profissão que exercia, completa:

— Gosto daqui. Moro perto dos meus filhos e netos. As pessoas me respeitam, sou uma das mais velhas. E amo minha casa. A Cidade de Deus é minha família; onde vou, todos me conhecem.

É a partir do olhar de quem viu e viveu as mudanças do bairro ao longo do tempo que está sendo construída a narrativa de “CDD 50 anos”, hoje tocado apenas por um dos seus idealizadores, Paulo Silva, já que o outro, Julio Pecly, morreu no ano passado. Alinhavando depoimentos de moradores, o documentário busca recontar a história local e ressaltar a rotina para além do cenário de violência que ganhou destaque com o filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, lançado em 2002.

Longe de querer camuflar o passado conturbado da comunidade, hoje ocupada por uma UPP e mais tranquila, o novo longa busca recontar outros episódios vividos em cinco décadas, como o surgimento de uma prolífica produção cultural. Os estudantes de Cinema da PUC-Rio Sergio Leal, Mateus Paz e Bruno Rafael e o fundador do coletivo de cinema CDD na Tela, Igor Melo, participam do projeto. O ator Leandro Firmino, que viveu Zé Pequeno no filme de Meirelles e Katia, faz o trabalho de guiar o espectador por uma outra Cidade de Deus.

— Dá para perceber que ela passou por muitas mudanças, embora alguns problemas persistam. Hoje é bem diferente do que era na minha infância. Não desmerecendo as outras comunidades, a Cidade de Deus, em termos de infraestrutura, de movimentos sociais e de cultura, está muito à frente. Sempre quando posso, procuro saber o que está acontecendo. São 50 anos de sobrevivência e luta de uma comunidade — diz Leandro, morador desde que se casou, há dois anos, de outra comunidade, em São Gonçalo.

PRODUÇÃO CULTURAL

“CDD 50 anos” se propõe a contar a história local por meio de personalidades que estão na memória e no imaginário da Cidade de Deus. Vindo de Realengo, Luiz Barros Afonso, o Luizinho, é um deles. Ele chegou à comunidade aos 3 anos, com os pais e o irmão, em 1966, devido à enchente. Nos anos 1980, começou a se envolver com música e fazia dublagens de Michael Jackson. Na década seguinte, mexeu com a Cidade de Deus ao começar a produzir bailes.


Luizinho organizava bailes na década de 90; hoje, vende sacolé em casa
Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Luizinho organizava bailes na década de 90; hoje, vende sacolé em casa Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

— Eu ia para bailes em Caxias, Rocha Miranda e Piedade. Nos anos 1980, nós não tínhamos bailes aqui por causa da rivalidade entre os grupos (de bandidos). Quando comecei a fazer eventos, trouxe artistas. Eles estouraram com sucessos daqui, como MV Bill e Cidinho e Doca — conta Luizinho.

A casa de Anahyde dos Santos Muniz, a Tuca, tem as paredes coloridas com quadros que encobrem a falta de revestimento. Sempre com uma canção na ponta da língua, a poeta, cantora, compositora e atriz é outra figura conhecida que está no documentário. Ela chegou em 1975, depois que um temporal derrubou sua casa no Rio Comprido. Tuca faz parte da companhia de teatro do Centro de Referência da Juventude (CRJ) e do Poesia de Esquina, projeto da comunidade. Aos 82 anos, nutre o sonho de gravar um álbum.

— As músicas vêm de forma natural; faço-as enquanto durmo. Assim que acordo, anoto-as. Já fui cantora de bloco de carnaval e escola de samba e cheguei a ganhar o prêmio de melhor intérprete e de melhor composição no Festival de Favela — conta.


Tuca, em casa, rodeada de quadros que pintou: talento também para o teatro e a música
Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Tuca, em casa, rodeada de quadros que pintou: talento também para o teatro e a música Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

A educação, o esporte e as artes são incentivados no CRJ por meio de cursos e oficinas para diferentes faixas etárias. Mais do que revelar novos talentos da comunidade, o núcleo busca afastar a população da violência com ações de integração social. Justo o cinema, que levou a Cidade de Deus para o mundo, é uma das vertentes mais procuradas por jovens, por meio do projeto CDD na Tela, que oferece cursos de teatro, interpretação e audiovisual. Paulo Silva, morador do bairro e atuante na área desde a década de 1990, destaca a produção local.

— A Cidade de Deus sempre teve movimento cultural, mesmo nos piores momentos. Na década de 1970, por exemplo, um movimento do qual o Paulo Lins (autor do livro “Cidade de Deus”) fez parte tinha um cineclube. E, quando o funk estourou, aqui já era um celeiro do gênero — diz.

Foi o trabalho no cinema que ajudou o ator e roteirista José Antônio Silva, o Zezé, a sair da criminalidade. Após cumprir pena por roubo, ele buscou o projeto Boca de Filme, criado em 2002, onde aprendeu a fazer argumento. O tempo na cadeia foi transformado em inspiração para o curta “Arroz com feijão”, parte do filme de ficção “5x favela, agora por nós mesmos”, lançado em 2010.

— Assisti a “Cidade de Deus” e parecia que estava me vendo ali. Quando surgiu o Boca de Filme, conversei com o coordenador e disse que era envolvido no crime, mas buscava uma oportunidade. Aí fiz meu primeiro roteiro, entrei no Nós do Morro e comecei a atuar — diz Zezé.

Com histórias como a de Zezé, os produtores desejam mostrar, para além das fronteiras da Cidade de Deus, uma história de superação pela cultura. É como diz Sergio Leal, conhecido como DJ TR, que também participa da produção do documentário:

— Queremos dar uma amplitude maior à Cidade de Deus. Mostrar que aqui não é uma fábrica de coisas ruins; que a comunidade tem seus problemas, mas não se dobra diante deles.