Cuidado com o estresse diante das notícias, caro leitor. Faça por sua saúde, a partir de já, tudo o que vinha adiando. Endireite a postura ao ler a revista, cuide da alimentação, zele por seu sono e exercite-se regularmente. Ter saúde de ferro sempre foi bom negócio. Na última década, porém, quando a saúde faltou, o brasileiro contou com o apoio de dois fatores. A taxa de emprego aumentava, ano a ano. A massa crescente de assalariados contava com o atendimento dos planos de saúde, oferecidos pelos empregadores como um benefício trabalhista. Além disso, no período de bom crescimento médio da economia, entre 2000 e 2011, o investimento do governo no sistema público de saúde aumentava (embora nunca tenha chegado ao nível ideal). Esse cenário acabou.
>> "Se não posso ter um plano de saúde, vou usar o sistema público", diz diretor da ANS
>> Lenir Santos: “Vai haver pressão pela melhoria do SUS”
Desde o início de 2015, há um sumiço rápido dos postos de trabalho. Ao perder o emprego, mesmo que tenha outras fontes de renda, o cidadão deixa de ser cliente preferencial das operadoras de planos de saúde. Elas tratam como cliente de segunda categoria todo cidadão que não seja empregado, mesmo que ele, potencialmente, possa pagar por um serviço de saúde adequado a suas necessidades – entre os mal atendidos estão os profissionais autônomos e os idosos, mesmo que saudáveis e com reserva financeira.
O problema assustaria menos se o Sistema Único de Saúde (SUS) tivesse sido tão ampliado e melhorado quanto necessário ao longo da década do crescimento. Até 2014, o governo federal mantinha gasto público crescente e sustentava a promessa de ampliação do SUS. No discurso de posse do segundo mandato, a presidente Dilma Rousseff confirmou essa política. “Na saúde, reafirmo nosso compromisso de fortalecer o SUS”, disse. Dilma não poderá cumprir o que afirmou. O país passa por um severo e necessário ajuste nas contas públicas. Não há, no futuro próximo, esperança de que o SUS receba mais investimento.
>> O lado oculto das contas de hospital
>> O buraco dos planos de saúde
Cabe à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) agir para o setor privado oferecer planos mais diversificados e não abusivos. E cabe ao Ministério da Saúde tornar o SUS mais eficiente. “Sem dinheiro, temos de melhorar o modelo e a gestão do sistema de saúde”, diz Gonzalo Vecina Neto, superintendente do Hospital Sírio-Libanês e ex-secretário Municipal de Saúde de São Paulo. Mas todas essas mudanças, por enquanto, estão no terreno da esperança. Sua saúde está por sua conta.
O cidadão com carteira assinada, usualmente, tem plano de saúde no modelo em que empregado e empregador dividem o custo do plano. Ao perder o emprego, o usuário pode manter o benefício por um período de seis meses a dois anos. Mas tem de passar a pagar o valor integral da mensalidade. Esse valor é muito superior ao que o usuário pagava enquanto estava empregado e muitas vezes é calculado sem transparência. A partir daí, restam poucas opções.
Como pessoa física, o cidadão pode contratar planos individuais ou familiares. Mas eles praticamente sumiram do mercado – ao tentar contratar um deles, o consumidor tem grandes chances de ser ignorado ou de ser incentivado pelo vendedor a adaptar-se para contratar outro tipo de plano, o coletivo. A ANS permitiu o surgimento de um mercado em que o cliente individual nunca tem razão. Questionada sobre a necessidade de aprimorar regras para tornar o setor mais funcional, como cabe ao Estado fazer em todos os serviços fundamentais, e mais adaptado ao novo cenário, a ANS não apresenta nenhuma meta ou projeto concretos. “O trabalho é acompanhar a saúde econômica das empresas, a assistência – o consumidor tem de receber o que contrata – e a qualidade do serviço”, diz José Carlos Abrahão, diretor presidente da ANS.
Planos coletivos só podem ser contratados por pessoa jurídica (um CNPJ) e por meio de associações ou sindicatos. O cliente se beneficia se pertencer a uma certa categoria profissional representada por uma associação de classe ou sindicato. Mas há armadilhas nessa etapa. Algumas corretoras oferecem ao consumidor o serviço ilegal de incluí-lo em qualquer associação, mesmo que ela não tenha conexão com a atividade profissional ou formação do contratante. Pode piorar: há casos em que a ilegalidade é cometida sem que o contratante saiba. “O usuário, às vezes, nem sabe que está pagando a adesão à associação ou sindicato, pois a conta do plano de saúde já vem fechada”, diz Joana Cruz, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Outra opção para contratar um plano coletivo é ter uma empresa com ao menos um funcionário. Quem tem uma microempresa com propósito real de fazer negócios consegue um benefício adicional por sua empreitada. Mas também nesse caso há armadilhas. Há cidadãos que abrem microempresas com o intuito único de contratar um plano de saúde. O contratante arca com os custos de manutenção de uma empresa e se coloca em situação irregular. As normas ruins do setor também induzem o microempresário a contratar parentes, para dar a eles cobertura de saúde, como seus funcionários. Esse quebra-galho gera custos e ineficiências. Além disso, o microempresário não tem como saber se conseguirá sustentar a cobertura de saúde. Grupos muito pequenos, a partir de duas pessoas, não têm força ao negociar com as operadoras, diante de reajustes abusivos ou quebra de contrato.
Nesse terreno desolado, o discurso da reguladora (a ANS) e das reguladas (as operadoras de planos de saúde) é afinadíssimo. A ANS dá atenção só aos planos individuais, enquanto as operadoras se concentram em trabalhar só nos coletivos. É como se a polícia avisasse que patrulhará só a parte vazia da cidade. A ANS alega não interferir nos contratos coletivos porque somente os individuais estão especificados na Lei dos Planos de Saúde (se a agência quisesse cumprir sua missão legal, poderia simplesmente seguir o Código de Defesa do Consumidor). “É missão legal e institucional da ANS regular os planos de saúde coletivos. Não faz sentido uma agência reguladora que não regula”, diz Joana, do Idec.
As operadoras afirmam que os planos individuais dão pouco lucro. Não há cabimento em exigir que elas, empresas privadas, trabalhem com prejuízo. Esse tipo de questão se resolve com um regulador independente, e também com regulamentação de boa qualidade, que dilua custos e riscos pela população e incentive maior diversidade de serviços – como se faz na cobertura de saúde em outros países. No curto prazo, o governo não aplicará mais dinheiro. Poderia aplicar mais inteligência.