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Islã cresce nas periferias, mas ainda é alvo de preconceito

Em quatro anos, dez mussalas foram abertas no Brasil, muitas para atender convertidos
Usando os tradicionais véus, mulheres muçulmanas observam a comunidade do terraço de uma casa na periferia de São Paulo: islamismo vem crescendo no país no rastro da mensagem de igualdade racial e justiça social Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Usando os tradicionais véus, mulheres muçulmanas observam a comunidade do terraço de uma casa na periferia de São Paulo: islamismo vem crescendo no país no rastro da mensagem de igualdade racial e justiça social Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO - O islamismo está crescendo nas periferias de grandes cidades do Brasil. Nos últimos quatro anos, dez salas de oração foram abertas no país, algumas delas dentro de comunidades carentes, como na Favela Cultura Física, em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. Enquanto celebram sua nova fé, os muçulmanos recém-convertidos têm que conviver com o preconceito de vizinhos e familiares, além da perseguição nas redes sociais.

A proximidade de eventos atribuídos a radicais — como os atentados de 13 de novembro em Paris, reivindicados pelo grupo Estado Islâmico — gera ainda mais problemas para os fiéis. Na semana passada, a auxiliar de enfermagem Beatriz Lina Rodrigues, de 52 anos, foi chamada de “mulher-bomba” enquanto esperava na fila de um mercado na Zona Sul de São Paulo vestida com o hijab (véu utilizado pelas muçulmanas que cobre a cabeça, mas não o rosto).

— A gente vive passando por essas situações. Já me chamaram de ‘terrorista’, já me falaram ‘volta para o seu país’. Sou brasileira, nasci aqui. As pessoas têm que entender que terrorismo não tem nada a ver com o Islã. A religião prega paz, amor, caridade, respeito aos outros — diz Beatriz, que se converteu há cinco anos.

Após enfrentar a resistência de católicos e evangélicos da família, ela passou a frequentar o espaço de oração da Favela Cultura Física, que existe desde 2013 e chega a receber até 30 pessoas em algumas reuniões. Enquanto grandes mesquitas em áreas centrais são visitadas principalmente por imigrantes árabes e seus descendentes, esses pequenos espaços, chamados de mussalas, reúnem basicamente brasileiros que optaram por seguir o Islã voluntariamente.

Vínculos com hip hop e movimento negro

Especialistas em religião argumentam que a mensagem de igualdade racial e de justiça social propagada pelo islamismo é uma das explicações para seu crescimento nas periferias. Em alguns locais, os fiéis estão ligados à cultura hip hop e ao movimento negro. A comunidade islâmica de Salvador, na Bahia, por exemplo, começou a se organizar nos últimos anos na tentativa de resgatar o passado muçulmano da cidade.

Em 1835, um grupo de africanos muçulmanos (que eram chamados de malês) tentou se libertar da escravidão na capital baiana. O movimento, reprimido pelas autoridades, ficou conhecido como a Revolta dos Malês. Depois de montarem uma mussala na cidade, os fiéis de Salvador tentam agora construir uma mesquita, segundo o xeque Ahmad Abdul.

— Em 1991, o Centro Islâmico da Bahia era formado por quatro pessoas. Hoje, a gente estima que sejam 500, a maioria brasileiros. Muitos deles são estudantes que buscam informações sobre a Revolta dos Malês. O Islã tem marcas por aqui.

Desde 2004, número de locais de culto subiu de 70 para 101 no Brasil, e o de xeques que falam português, de cinco para 20 Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Desde 2004, número de locais de culto subiu de 70 para 101 no Brasil, e o de xeques que falam português, de cinco para 20 Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Entidades islâmicas calculam que o Brasil tenha cerca de 1,2 milhão de muçulmanos e que cerca de 80 mil deles sejam brasileiros que trocaram de religião. O estado de São Paulo concentra cerca de 85% dos fiéis, segundo a União das Entidades Islâmicas (UNI). O Censo de 2010, porém, registrou números significativamente menores: 35.167 de pessoas se declararam seguidoras do islamismo — 29% mais do que na década anterior. A diferença no cálculo é atribuída por autoridades islâmicas aos critérios usados pelo IBGE. Ainda de acordo com a UNI, desde 2004 aumentou de 70 para 101 o número de mesquitas e mussalas em todo o Brasil, e os xeques que falam português passaram de cinco a 20 agora.

— A internet e a democratização da informação fizeram com que muita gente tivesse acesso ao que é o Islã. Essas pessoas acabam se identificando com a religião. O Islã responde aos anseios, inclusive a questões ligadas a preconceito. A ideia de cor, por exemplo, não encontra fundamento no islamismo — relata Ali Husseim El Zoghbi, vice-presidente da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil, que defende a divulgação de informações sobre a religião para combater o preconceito.

Foi por meio da internet que o educador Kaab Abdul Qadir (César), de 41 anos, conheceu melhor a religião do profeta Maomé. Após trocar mensagens com um egípcio, que lhe enviou livros sobre o Alcorão em português, em 2006 ele “renasceu para o Islã", em suas próprias palavras. Criado na Favela da Cultura Física, teve a ideia de construir um lugar onde pudesse orar, que viria a se transformar na mussala de Embu.

Recentemente, uma foto sua num ato a favor da Palestina foi compartilhada em páginas do Facebook. Os comentários diziam que ele era terrorista e que fazia “gesto típico dos militantes do EI”. O dedo indicador apontado para cima que aparece na imagem significa, segundo Kaab, “não há outra divindade além de Deus”:

— Esse tipo de comentário de intolerância é muito grave. Essas ofensas podem sair da internet e se transformar em agressões. Quem faz esse tipo de coisa não sabe o que está falando. Islã é uma religião de paz.