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04/07/2015 19h02 - Atualizado em 04/07/2015 19h07

O país europeu onde nasceu o jihadismo moderno

'Batalhão mujahideen' que lutou na guerra da Bósnia nos anos 1990 treinou futuros membros da Al-Qaeda e pode estar relacionado a combatentes bósnios no EI.

Mark UrbanEditor de assuntos diplomáticos e de defesa do programa Newsnight, da BBC

Combatentes islâmicos da Bósnia-Herzegovina (Foto: BBC)Combatentes da Bósnia-Herzegovina (Foto: BBC)

Nos anos 90, aconteceu, na região central da Bósnia-Herzegovina, algo que pode ajudar a explicar por que este país tem, agora, mais homens lutando na Síria e no Iraque (mais de 300), proporcionalmente a sua população, do que a maior parte dos países europeus – um conflito armado envolvendo a ex-Iugoslávia (hoje, Sérvia) e a Croácia, que durou de 1992 a 1995.

 

Em 1992, formou-se um "Batalhão mujahideen (combatentes islâmicos)", composto principalmente de voluntários muçulmanos estrangeiros, para lutar ao lado dos bósnios. A criação do batalhão foi um marco na região. Hoje, a dinâmica da jihad se reverteu no país – são os bósnios que estão viajando para as terras árabes, para combater ao lado de grupos como o autodenominado "Estado Islâmico".

"A Bósnia deu ao movimento jihadista moderno a narrativa de que há uma guerra entre o Ocidente e o Islã. É o berço", diz Aimen Dean, um membro fundador da Al-Qaeda que mudou de lado em 1998 e tornou-se espião para os serviços de inteligência britânicos.

Quando era um jovem voluntário saudita, em 1994, Dean viajou para lutar na região.

Confronto com a ONU
Acredita-se que foi a luta contra a ocupação da União Soviética no Afeganistão, nos anos 80, que criou a noção moderna de jihad ou "guerra santa". Dean afirma que o Ocidente e os salafistas (que seguem uma forma rigorosa do islamismo que remonta da Idade Média) estavam do mesmo lado no Afeganistão, mas se tornaram inimigos na Bósnia.

No início do conflito, em 1992, apenas algumas dezenas de militantes foram defender seus companheiros de religião na Bósnia, enquanto paramilitares nacionalistas sérvios os expulsavam de suas casas de leste a oeste do país. Mas no começo de 1993, quando o confronto ganhou três frentes, contra croatas católicos além dos sérvios, o Batalhão mujahideen começou também a recrutar não religiosos.

Depois que as milícias da Croácia assassinaram cerca de 120 bósnios em Ahmici, em abril de 1993, os mujahideen participaram de uma série de represálias. Dois meses depois do massacre em Ahmici, eles expulsaram cerca de 200 croatas do monastério de Guca Gora, que foram retirados da região por soldados britânicos das Nações Unidas.

Os britânicos lutaram contra o Batalhão mujahideen em Guca Gora e em outros lugares durante o verão de 1993. Vaughan Kent-Payne, um major que comandava uma companhia de soldados britânicos nestas batalhas, diz que os combatentes estrangeiros eram "muito mais agressivos" do que os soldados bósnios locais, frequentemente abrindo fogo contra os veículos brancos da ONU.

Na cidade de Travnik, que antes da guerra era quase que igualitariamente muçulmana, croata e sérvia antes da guerra, os mujahideen ajudaram a expulsar milhares de não muçulmanos e tentaram impor a lei da sharia aos que permaneceram.

Eles também se envolveram no sequestro de cristãos locais e decapitaram um deles, Dragan Popovic, forçando outros reféns a beijar sua cabeça cortada.

'Desserviço à Bósnia'
O caso de Popovic chegou a ser julgado e, por isso, tem os fatos bem estabelecidos. Mas o Batalhão mujahideen também foi suspeito de muitos outros crimes, incluindo o sequestro e assassinato de voluntários em trabalho humanitário, além da execução de 20 prisioneiros croatas.

Os estrangeiros nunca foram mais do que 1% dos combatentes à disposição do governo bósnio, apesar de as mídias sérvia e croata afirmarem frequentemente ter visto radicais islâmicos estrangeiros em diversos lugares.

Desde o começo do conflito, os mujahideen também começaram a recrutar bósnios e, em 1995, nos meses finais da guerra, a incorporação de centenas de homens locais permitiu expandir o batalhão e transformá-lo na Brigada mujahideen, com cerca de 1,5 mil homens.

No verão de 1993, o governo da Bósnia estava começando a acordar para o potencial efeito tóxico destes jihadistas em sua imagem de república secular e multiétnica. Em uma tentativa de controlá-los, a brigada foi colocada sob o comando da 3ª Corporação, a formação do Exército bósnio sediada na cidade central de Zenica.

O comandante da 3ª Corporação na época, o general de brigada Enver Hadzihasanovic, acabou sendo julgado por crimes de guerra em Haia, acusado de responsabilidade por parte do comportamento dos mujahideen, incluindo os sequestros em Travnik.

No fim, a promotoria retirou as acusações, mas o general cumpriu dois anos de prisão, após ser considerado culpado de ter comandado soldados bósnios que abusaram de prisioneiros.

No entanto, Hadzihasanovic questionou, desde o início, se os mujahideen não seriam um ativo militar ambíguo. Em 1993, ele escreveu uma mensagem secreta a outros altos oficiais do Exército, dizendo: "Minha opinião é que por trás (dos mujahideen) há políticos de alto escalão e líderes religiosos".

Ao refletir sobre a participação dos jihadistas na guerra, ele diz: "eles não ajudaram a Bósnia. Pelo contrário, acho que fizeram um desserviço à Bósnia".

No entanto, como sugere a mensagem do general, alguns políticos de alto escalão, como o presidente da Bósnia naquele momento, Alija Izetbegovic, receberam os combatentes estrangeiros de braços abertos, em parte como forma de agradar aos ricos doadores árabes.

Proibição de recrutamento
Quando a guerra da Bósnia terminou, com o acordo de paz de Dayton, todos os combatentes estrangeiros tiveram que deixar o país, e eles receberam ordens para tal em 1996. Ao lembrar deste dia, Aimen Dean disse que houve muito choro e lamento na base mujahideen.

"Todo mundo estava lá esperando morrer como mártir. Naquele momento, essa chance foi tirada deles."

Centenas de combatentes foram da Bósnia para a Chechênia, o Paquistão e o Afeganistão. Entre seus aprendizes nestes países estavam dois dos sequestradores dos aviões americanos no atentado de 11 de setembro de 2001, o assassino do refém americano Daniel Pearl (jornalista morto em 2002, no Paquistão) e diversos outros membros da Al-Qaeda.

Mais de 300 combatentes estrangeiros foram enterrados na Bósnia, um testemunho das perdas sofridas pela unidade. Algumas dezenas de árabes que conheceram mulheres locais ou não queriam voltar para seus países também conseguiram ficar - e obtiveram a cidadania bósnia.

Recentemente, o governo bósnio proibiu o recrutamento de cidadãos para guerras estrangeiras em nome de qualquer religião ou causa e realizou uma série de operações para desmantelar redes extremistas e prender os que retornam de batalhas no Oriente Médio.

No entanto, críticos da administração observam que, durante anos, Sarajevo preferiu não enxergar os mujahideen árabes que ficaram na Bósnia como militantes e permitiu que diversas comunidades de salafistas bósnios surgissem recentemente.

Fikret Hadzic, que foi acusado de lutar pelo grupo autodenominado "Estado Islâmico" (EI), também faz a conexão entre o que está acontecendo agora e o que aconteceu nos anos 1990. Ele se juntou ao Batalhão mujahideen em 1994. Por anos após a guerra ele trabalhou como motorista e mecânico antes de decidir juntar-se à luta contra "o regime xiita de Assad" na Síria, em suas palavras.

Hadzic afirmou à BBC que não é um membro do "EI" e que desaprova os métodos do grupo, mas disse que, antes de voltar da Síria no ano passado, encontrou membros bósnios da organização.

Outros bósnios que lutaram com os mujahideen nos anos 1990 incluem o líder de uma importante mesquita salafista em Sarajevo e Bilal Bosnic, que está preso e aguarda julgamento, acusado de recrutar combatentes para o EI.

No momento em que o grupo tenta criar uma "nova frente do Califado" nos Bálcãs, muitos temem que a Bósnia esteja vulnerável, já que permanece frágil e fragmentada mesmo duas décadas após o fim da guerra.

 

 

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