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Livio Oricchio: Meus 400 GPs na F-1. A convivência com Michael Schumacher

No segundo capítulo da série do jornalista sobre suas extensa carreira cobrindo
a categoria, bastidores de entrevistas com o alemão sete vezes campeão da

Por Austin, Estados Unidos

header livio oricchio (Foto: Editoria de Arte)
A consagração definitiva de Michael Schumacher veio em 2004, com o sétimo título e o recorde absoluto na F-1 (Foto: Getty Images)Livio Oricchio acompanhou as 19 temporadas de Schumacher na Fórmula 1 (Foto: Getty Images)

Como escrevi do nosso primeiro encontro para rever algumas passagens de meus 400º GPs de Fórmula 1, marca celebrada aqui em Austin, a minha estreia como jornalista na competição foi no GP do Brasil de 1987. Mas, a partir de 1991, passei a seguir praticamente todas as etapas do campeonato.

E o que aconteceu de mais importante na temporada de 1991? A estreia de um piloto que faria história na F-1, pela eficiência e controvérsias a seu respeito, Michael Schumacher. Tive o prazer, sorte, apesar de não gostar do termo, de começar a cobrir regularmente o Mundial ao mesmo tempo em que esse notável piloto alemão iniciava sua carreira.

É por isso que hoje completo 400 GPs e Schumacher esteve em 308 GPs. Eu o acompanhei desde a corrida da Bélgica, em Spa-Francorchamps, no dia 25 de agosto de 1991, ao primeiro abandono das pistas, depois do GP do Brasil de 2006. E na volta à F-1, em 2010, pela Mercedes, até ouvir da direção da equipe que seu contrato não seria renovado, no fim de 2012.

Michael Schumacher bate em Damon Hill na decisão de 1994 (Foto: Reprodução)Polêmica fechada de Schumacher em Damon Hill na decisão de 1994 (Foto: Reprodução)

Sinto-me privilegiado. Sei que muitos brasileiros não gostam de Schumacher. Na realidade, ele tem um índice de rejeição não pequeno, até no seu país. E alimentado por comportamentos, de fato, escusos, como jogar sua Benetton para colidir com a Williams de Damon Hill, em Adelaide, em 1994, para conquistar o primeiro título, e tentar fazer o mesmo, em 1997, já na Ferrari, com Jacques Villeneuve, da Williams, em Jerez de la Frontera.

Esse é um lado execrável de Schumacher, que diminuiu, sim, o valor de suas imensas conquistas. Quase sempre que se fala dele, ao mesmo tempo em que suas virtudes impressionantes como pilotos são enaltecidas há sempre um... mas, como homem, deixava a desejar. Vamos conversar sobre os dois Schumacher, que tão bem conheci: o piloto e o ser humano capaz de reações imprevisíveis, tanto para o bem quanto para o mal.

Michael Schumacher em 1991 (Foto: Divulgação)Michael Schumacher estreou na Fórmula pela Jordan em 1991 (Foto: Divulgação)

Vale a pena dar um pulo no tempo para uma das mais incríveis experiências que tive com Schumacher, bem pessoal. Ele já havia anunciado que pararia de correr no fim daquele ano, 2006. Eu o entrevistei em São Paulo, na quinta-feira antes da corrida, no seu hotel. Era o seu 250º GP.

Havia decidido tentar algo bem diferente, fugir do padrão das perguntas, como gosto, de modo geral. Nessas ocasiões, ou a entrevista rende muito ou, o que é mais comum na F1, a conversa é logo interrompida pelo entrevistado, não mais interessado no papo.

Leia também:
Livio Oricchio: Meus 400 GPs na F-1. O primeiro capítulo dessa história

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fama de mau caráter

Schumacher chegou com a assessora de imprensa da Ferrari. Nos cumprimentamos, ele me conhecia de me ver nas coletivas, das entrevistas que havia feito com ele em outras ocasiões, eu o senti bem à vontade, provavelmente por me conhecer há 15 anos. Fui de sola. Olha o que perguntei, assim na bucha, era vai ou racha: “Michael, por que você tem fama de mau caráter?”

Fechou a cara, como faz quando está tenso, olhou fixo para um ponto, refletiu sobre o que dizer e começou falando. Amigos, não houve outra pergunta, foi só essa. Era a deixa para Schumacher pôr para fora muito do que o incomodava há tempos. E como aquela era a sua despedida da F1, a oportunidade não poderia ser melhor.

Disse-me, resumidamente: “Logo depois que acabou a corrida de Kyalami, em 1993, eu fui de imediato falar com Roland (Roland Bruynseraede, diretor de prova). Reclamei de Ayrton Senna. Falei a Roland que Ayrton me colocou para fora da pista. Sabe o que ele me respondeu: 'Michael, o que aconteceu entre vocês é natural das corridas'. Não me conformei com sua reposta. Mas entendi quais eram as regras da F-1”.

Michael Schumacher bate em Jacques Villeneuve na decisão da temporada de 1997 (Foto: Reprodução)Schumacher bate em Jacques Villeneuve na decisão da temporada de 1997 (Foto: Reprodução)

Schumacher falou uma porção de coisas. De memória ficou o mais importante, creio. “Quando me tiraram o título de vice-campeão do mundo, em 1997, por causa do meu acidente com Jacques Villeneuve, em Jerez, achei que aquilo serviria para zerar todas as rixas, essas disputas entre nós pilotos". Na sua cabeça, Max Mosley, presidente da FIA, havia deixado claro o que aconteceria se houvesse novas ações deliberadas para provocar um acidente.

“Mas no ano seguinte, no Canadá, vi que não era nada disso. Damom Hill jogou sua Jordan contra a minha Ferrari, em plena reta, a 300 km/h. De novo fui reclamar e não aconteceu nada. Compreendi que as regras, na verdade, eram as mesmas". Aquilo era, na realidade, um salvo conduto para Schumacher se comportar da mesma forma, ao menos na sua interpretação.

A assessora da Ferrari ouvia Schumacher falar, sem parar, com raiva, e começou a apontar o relógio para mim, para dizer que a entrevista havia acabado. Mas eu não fazia perguntas desde o início da conversa, era ele que não parava de se justificar. Nesse momento a assessora solicitou um tempo para Schumacher a fim de lhe informar que deveria ir ao circuito. Ele finalmente parou.

O melhor está por vir. Lembro de redigir um texto de página inteira para o Estadão, contracapa do caderno de esportes. Eu escrevi na sala de imprensa de Interlagos. E enquanto fazia a transcrição da entrevista, a mesma assessora da Ferrari me procurou na sala de imprensa. Pediu que eu fosse comedido nas palavras de Schumacher, por ele ter sido duro, em especial com Senna.

E Senna não estava mais entre nós e aquele era uma corrida no Brasil. Muita gente iria ler e criar desconfortos para Schumacher e até a equipe. Eu respondi que o gravador estava lá e se desejasse ouvir de novo era só pedir. Mas que eu reproduziria o que Schumacher me disse sem tirar uma vírgula.

Michael Schumacher no GP do Brasil de 2006, em sua primeira das duas aposentadorias (Foto: Getty Images)Michael Schumacher no GP do Brasil de 2006, em sua primeira das duas aposentadorias (Foto: Getty Images)

Pouco tempo depois veio falar comigo outra assessora da Ferrari, Jane Parisi, para da mesma forma solicitar, sempre com muita educação, que eu tomasse alguns cuidados com o que Schumacher me havia dito. Da mesma forma respondi que eu apenas faria a transcrição das palavras para o texto e deixaria a interpretação para quem fosse ler. Ainda lembro de ter dito: "Palavras são palavras, uma vez ditas, não se pode colocar na boca de novo".

No dia da publicação, sexta-feira, algumas pessoas vieram falar comigo no autódromo, sobre a entrevista. Mas não houve nenhum problema, nenhuma reação da torcida com Schumacher.

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também era gentil

Agora um lado mais humano do alemão. Durante a madrugada do dia 6 de outubro de 2004, tocou o meu telefone no quarto do hotel em que me hospedava, em Suzuka, no Japão. Era o pessoal da redação do Estadão para me pedir uma pauta. Normalmente, os chefes de reportagem não levam em conta as diferenças de fuso horário das cidades onde estão os repórteres. Não é algo que me atinge, mas vale registrar.

A direção do Estadão pediu na quarta-feira anterior ao fim de semana de GP do Japão uma entrevista exclusiva com Schumacher para a primeira edição do novo projeto gráfico do jornal, que estrearia sábado, creio, dia 9. Eu respondi, com sono: "Mas é só isso que eles querem, tem certeza, mais nada?"

Entrevistas tête-à-tête, individuais, são raras nos últimos anos na F-1 e quem as consegue, em geral, é o pessoal de TV. Além disso, não são realizadas, na maioria das vezes, nos fins de semana de competição. E para obtê-las as emissoras de TV ou os jornalistas de imprensa escrita devem solicitar muito tempo antes. Aqui em Austin, hoje, cobrei Bradley Lord, assessor da Mercedes, as entrevistas que pedi com Lewis Hamilton, Nico Rosberg, Toto Wolff e Andy Cowell, o mago das unidades motrizes da Mercedes, ainda nos testes de inverno, em Jerez de la Frontera.

Michael Schumacher e Felipe Massa no pódio do GP da Europa de 2006 (Foto: Getty Images)Alemão também tinha seus momentos de gentileza (Foto: Getty Images)

Avisei o pessoal do Estadão como funcionam as coisas na F-1 e não via como sermos atendidos. Mas faria o meu papel, pediria a Sabine Khen, assessora de Schumacher. Sabine era, posso dizer, uma amiga, tinha o hábito de conversar com ela sobre os mais distintos temas. Assim que falei o que me foi solicitado, Sabine reagiu quase brava: “Livio, você sabe que não posso. E o Michael não fala nesses dias, ao menos como você precisa. Vou perguntar a ele, mas não espere nada, ok?”

Respondi que o que me havia dito era o que imaginava. Em seguida, Sabine me disse: “Michael me deu os detalhes de um dia de testes em Fiorano, quando chega, onde se instala, o que faz, onde come, dorme, na casa do circuito etc. Eu te dou a transcrição, é exclusivo”. Aceitei, lógico, li e depois lhe disse: “Sabine, é pouco, preciso ouvir o Schumacher sobre o mesmo tema, ampliar o que você me deu, mas também a respeito de algo quente. Ele foi campeão este ano pela sétima vez, tenho de fazer algumas perguntas sobre ele encerrar a carreira também”.

A assessora ficou de falar com Schumacher. Algumas horas mais tarde, ainda na quinta-feira, no paddock, Sabine acenou com a mão para eu me aproximar. Ouvi dela: “Não sei o que deu na cabeça dele. Michael pediu para te avisar que é para você estar amanhã, às 17 horas, na porta do escritório da Ferrari, aqui no segundo andar”.

Michael Schumacher e Luca di Montezemolo em foto de 2006, último ano do alemão na escuderia (Foto: Getty Images)Michael Schumacher e Luca di Montezemolo no último ano do alemão na Ferrari (Getty Images)

Não acreditei. Liguei num horário decente para a redação e avisei que, talvez, fosse possível algo com o Schumacher, como eles queriam, mas não tinha ainda o material na mão. Por via das dúvidas, estava enviando nova reportagem, com outro personagem da F-1, na hipótese de não falar com Schumacher.

Na sexta-feira pouco antes das 17 horas lá estava eu, na porta do escritório da Ferrari, no velho paddock de Suzuka, ainda dos anos 60. Hoje é tudo novo. Entrei e fui recebido profissionalmente por Schumacher, como sempre. A conversa fluiu muito bem, como de hábito. Consegui o que desejava e mais um pouco. Veja:

“Michael (é como ele gosta de ser chamado), essa nossa conversa é para estrear um novo projeto gráfico do jornal e teria um impacto maior se eu pudesse transformá-la em um depoimento. Escreveria tudo o que você me disse em primeira pessoa. Eu posso redigir agora e te mostrar”, disse a ele.

Schumacher quase me interrompeu: “Você vai fazer tudo sozinho, não?” Respondi que sim, eu me responsabilizaria. Sabe qual foi a sequência? “Tudo bem, pode fazer, não precisa me mostrar antes”.

O que ele me conhecia além do ambiente profissional para confiar em mim dessa forma?

A mesma sensação tive quanto pedi a Kimi Raikkonen, através de um amigo em comum, o jornalista finlandês Heikke Kulta, se poderia visitar sua família em Espoo e Helsinki para uma reportagem. O que Kimi conhece de mim? Ele me vê sempre nas suas entrevistas coletivas e nas individuais que fizemos desde sua estreia na F-1, em 2001. Pois Kimi, surpreendentemente, concordou com o meu pedido. Acho que vale abordar essa experiência no terceiro capítulo, domingo, o que acham? A família do Kimi me recebeu na sua casa.

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novo patamar de performance

Um pouco mais do que vivi com Schumacher na F-1: uma ocasião, em 2004, estava num pequeno grupo de jornalistas, em Suzuka, conversando com Ross Brawn, o engenheiro por trás dos sete títulos mundiais de Schumacher. Já havia sido campeão naquele ano, pela Ferrari, na Bélgica.

Era um papo informal. Brawn nos disse: “Eu entro no rádio e digo a ele. Michael, para nossa estratégia dar certo, você terá de abrir, por exemplo, 14 segundos nas 18 voltas que fizer com esse jogo de pneus. Se não conseguir, vamos lutar pelo segundo lugar, apenas”.

Brawn falou, ainda: “Eu, pessoalmente, não acreditava ser possível. Mas quando faltavam três voltas e vi que Michael já havia aberto 12 segundos, sempre no ritmo de classificação, entendi que tinha de rever meus conceitos a respeito do que é ser piloto de F-1. Michael criou um novo patamar de performance”.

Vi Schumacher se formar numa F-1 em que com o reabastecimento de combustível e pneus com características distintas das atuais, pois era permitido exigir tudo o tempo todo, o piloto disputava as corridas como se todas as voltas fossem de classificação. A época de Schumacher permitia 70 voltas voadoras nas corridas.

Michael Schumacher no GP da Itália de 2003 (Foto: Divulgação)Piloto espetacular, Michael Schumacher tem diversos recordes da Fórmula 1 (Foto: Divulgação)

Hoje essencialmente o piloto tem de administrar o desgaste dos pneus, consumo de gasolina, preservar o motor, câmbio, pois devem resistir a vários GPs, enfim, a F-1 é mais uma competição de regularidade que de velocidade, como sempre conheceu Schumacher.

Como amo a F-1, acompanhar essas corridas em ritmo de classificação de perto, de 1991 a 2006, você pode ter uma ideia do quanto me diverti, especialmente por naquele tempo eu ainda vestir o colete distribuído pela FIA para ir no meio dos circuitos. Ficava próximo das placas dos 50 metros, para ver de perto como cada piloto trabalhava. Assistia às disputas nas freadas. Por vezes ia nas saídas de curva.

Tudo isso te dá um painel bem mais aprofundado e preciso de cada piloto. Você passa a vê-lo de outra forma se apenas permanecer na sala de imprensa. Hoje faço bem menos esses exercícios, mas quando estou em Mônaco, Spa ou Suzuka é lei, vou para o meio da pista. É a minha melhor biblioteca.

Pilotos excepcionais com Ayrton Senna e Schumacher representam um deleite para quem se educou a enxergar sua técnica a partir da observação quase microscópica de suas manobras. Com o tempo, você passa a identificar uma série de comportamentos, naturais de cada piloto. Esmiuçamos seu estilo. Não só, coragem, caráter, destreza também.

No formato da F-1 onde o que mais era selecionado era a capacidade de o piloto ser rápido o tempo todo, Schumacher não tinha adversários, quando com carros competitivos. Ao saber que iria regressar a F-1, em 2010, disse a mim mesmo: 'Fará o que tanto gosta, tudo bem, mas minha aposta é que não vai funcionar. A F1 de 2010 é bem distinta da de 2006, apesar da proximidade. Nunca correu tendo de administrar desgaste dos pneus, consumo de gasolina, exigir moderadamente do carro.

Para mim, seria surpreendente se Schumacher, também nesse formato, fosse tão bom. Sua formação era outra. Cresceu sob a filosofia do tirar tudo do equipamento, sem dó. E dava seu show, como nos contou Brawn no Japão.

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triste ocaso

Essa F-1 que nada tinha a ver a de sua melhor época somada a idade, 41 anos em 2010, se manifestou na plenitude em Schumacher. Eu me senti atingido, em Valência, em 2012, quando o vi comemorar o único pódio nos três anos em que correu, desde a volta a F-1. Aquilo doeu em mim. Ele não precisava disso, havia virado motivo de chacota no paddock.

Michael Schumacher no pódio do GP da Europa, em Valência, 2012 (Foto: Divulgação)Michael Schumacher comemorando seu último pódio na F-1, em Valência, 2012 (Foto: Divulgação)

Estava sempre se explicando. Errava demais e perdeu a concorrência dentro da Mercedes para o companheiro, Nico Rosberg, de maneira humilhante. Sua obra era única, primeiro em quase todos os rankings de performance em todos os tempos. Schumacher não tinha necessidade de se expor daquela forma.

Michael Schumacher em sua despedida da Fórmula 1 no GP do Brasil de 2012 (Foto: Getty Images)Alemão se despediu da Fórmula de forma melancólica em 2012, pouco para o maior campeão da história (Getty Images)


Vou contar, agora, outras experiências pessoais vividas com Schumacher no mundo profissional da F-1.

O que primeiro me vem à mente foi sua corrida em Monza, em 1991, depois de ter assinado contrato com a Benetton, liderada por um quase desconhecido, Flávio Briatore. Esse italiano foi o cidadão com quem mais conversei na F1 por duas décadas, quem mais me contou coisas, quem mais me fez refletir sobre vários aspectos. Provavelmente quem mais confiou em mim.

Flávio foi chamado pelo proprietário da marca Benetton, Luciano Benetton, empresário e senador italiano, para cuidar da sua escuderia. Flávio tinha feito um belo trabalho nos Estados Unidos, ao tornar a marca Benetton um bem de consumo. As vendas explodiram. “A primeira vez que assisti a uma corrida de F-1 foi em 1989”, disse-me. Antes disso, esse italiano nascido num cidade localizada perto de Nice, onde resido, Versuolo, não tinha o menor interesse por F-1.

“Acho que se me cabe algum mérito nesses títulos que conquistei como chefe de equipe na Benetton (1994 e 1995), com Michael, e na Renault (2005 e 2006), com Fernando (Alonso) eu diria foi por assumir que não entendo de F-1. Aprendi ter uma visão geral do negócio, porque é um negócio, entendi ser fundamental ter em funções chaves profissionais capazes e fechados com você, com o mesmo objetivo. Meu trabalho é delegar responsabilidade e cobrá-las implacavelmente.”

Reparou no discurso de Flávio para mim? Tem consciência de que não entende como outros profissionais há muito no meio. Então chamou homens-chave para tocar as áreas identificadas como as mais importantes. “Por exemplo a direção técnica. Quando eu assumi a Benetton (1990), tínhamos um engenheiro que, quando não comparecia na fábrica o time não trabalhava. Ele centralizou tanto as coisas nele que todos eram dependentes para tudo. Esse cidadão se chama John Barnard.”

Ainda Flávio: “Assim que vi como ele funcionava, o chamei e disse: 'Obrigado, o senhor está dispensado'. E Barnard era famoso. Não precisava entender de F1 para ver que aquilo não iria trazer resultado. E mais: os prazos de produção não eram cumpridos nunca. Assim que Barnard saiu a equipe passou a fluir. Não estou dizendo que não era um grande engenheiro, mas a maneira de como conduzia as coisas não batia com a minha filosofia”.

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moreno, compulsoriamente fora

Bicampeonato de Michael Schumacher com a Benetton foi conquistado em cenário mais tranquilo que no ano anterior (Foto: Getty Images)Michael Schumacher conquistou dois campeonatos com a Benetton (Foto: Getty Images)

Logo depois do GP da Bélgica de 1991, que o mundo conheceu Schumacher, Flávio chamou Roberto Pupo Moreno para uma conversa, lá em Nice, no aeroporto. A Benetton corria com Nelson Piquet e o Moreno. Não posso contar os detalhes dessa história. Há cláusula de confidencialidade no contrato que Moreno assinou quando deixou a Benetton, depois dessa conversa com Flávio, em Nice.

Espero que no livro que Moreno está escrevendo ele conte tudo. Como foi a quinta-feira anterior ao GP da Itália, em Monza, o seguinte ao da Bélgica, quando tudo, finalmente, foi resolvido. Moreno, dispensado, e Schumacher, contratado.

Piquet mudou depois de Moreno ser substituído por Schumacher. “Voltei a ver o Nelson que nos ajudou muito a crescer como time, desde a sua chegada, em 1990, junto com a minha a Benetton. Antes disso, sem querer, estava acomodado. A presença de Michael o obrigou a nova postura, exigir mais de si.”

Flávio me contou uma coisa que nem todos sabem: “O contrato do Nelson terminava naquele ano, 1991, o da chegada de Michael, em Monza. Eu queria mantê-lo no grupo, com Michael na Benetton sabia que teríamos o melhor do Nelson, ele não iria querer perder a disputa interna. E quando Nelson de verdade desejava algo, sua capacidade era impressionante, não apenas como piloto, mas como profissional capaz de nos dar a direção a seguir, e isso vale muito na F-1, mais ainda no meu caso por eu não ter nascido na F-1.”

Foi o sócio de Luciano Benetton na equipe que bateu o pé e não mais queria Nelson. Era o escocês Tom Walkinshaw, também diretor de engenharia. Ele não concordou em pagar um salário de campeão do mundo para Piquet sabendo ter nas mãos, agora, um piloto que poderia ser tão útil quanto Piquet no desenvolvimento da Benetton, Schumacher, disse Flávio.

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na frente de piquet

Naquele GP da Itália, a dedicação de Piquet, se antes já era grande, tornou-se ainda maior. Entendeu logo que Schumacher era rápido, para dizer o mínimo. O restante estava ainda para ser descoberto. Na classificação, mesmo na pista adorada por Piquet, Monza, o alemão foi sétimo e Piquet, oitavo, dois décimos mais lento.

Michael Schumacher foi companheiro de Nelson Piquet na Benetton em 1991 (Foto: Getty Images)Michael Schumacher foi companheiro de Nelson Piquet na Benetton em 1991 (Foto: Getty Images)

E depois, na corrida, Schumacher mostrou que apesar de ser sua primeira corrida na F-1, já que em Spa quebrou a embreagem da Jordan logo depois da largada e abandonou, sabia conduzir pelos 300 quilômetros também. Apesar de Piquet já ter vencido três vezes em Monza, 1983, com Brabham, 1986 e 1987, Williams, Schumacher recebeu a bandeirada na sua frente, em quinto, enquanto Piquet foi sexto. Flávio e Walkinshaw colocaram no lugar de Piquet, em 1992, o inglês Martin Brundle.

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quase brigou com senna

Ayrton Senna Michael Schumacher 1992 (Foto: Reprodução)Ayrton Senna discute com Michael Schumacher durante a temporada de 1992 (Foto: Reprodução)

Vamos pular para o GP da França de 1992, em Magny-Cours. Nessa prova Schumacher começou a mostrar melhor seu carácter. Para ele, os fins justificam os meios. Envolveu-se num incidente com Ayrton Senna ainda na primeira volta. O alemão tentou passar Senna no fim da reta, na freada do hairpin Adelaide, e colidiu na McLaren, jogando Senna para fora e obrigando-o a regressar aos boxes.

Eu trabalhava para a rádio Joven Pan e fazia free lance para o Estadão, dentre outras atividades como jornalista.

Estava na cabine junto de um profissional que me ajudou bastante a descobrir o rádio, Nilson Cesar, a quem agradeço muito, quando lá pela volta 15 começou a chover forte e o antecessor de Charlie Whiting, o belga Roland Bruynseraede, interrompeu a corrida. Eu vi Senna, já de roupa normal, quero dizer sem macacão, ir para o grid, onde os carros estavam parando.

Disse ao Nilson, vou lá porque vai dar briga. Apanhei meu gravador, de fita, na época, deixei a cabine e corri para o grid. Senna esperou Schumacher sair do cockpit da Benetton e foi com dedo em riste na sua cara. Sou capaz de reproduzir o que disse, em voz enérgica: “Eu estou vindo aqui por te respeitar. Mas também para te avisar que da próxima vez quem vai dar primeiro sou eu, não você”.

Schumacher tinha um semblante sério e manteve o olhar fixo para um ponto distante, como fazia nessas ocasiões. Não falou nada. Senna deixou o local realmente nervoso.

É verdade, esqueci do GP do Brasil daquele ano, 1992. A McLaren viu na etapa de abertura do Mundial, África do Sul, que seu carro era cerca de dois segundos mais lento que a nova Williams, e apressou a estreia do novo modelo, o MP4/7-Honda, em Interlagos, terceira prova do calendário. O carro tinha bem pouca quilometragem e incorporava soluções inovadoras para a McLaren, como o câmbio acionado por manetes, atrás do volante.

Uma pausa para duas palavras sobre esse GP, da África do Sul de 1992. Assisti à maior parte do primeiro treino livre, sexta-feira, atrás do guardrail das velozes curvas 2, 3 e 4, ao lado de ninguém menos de Sir Jackie Stewart. Ainda antes do fim da sessão, Stewart me disse: "Esse campeonato provavelmente acabou antes de começar, Nigel (Mansell) será campeão. O carro dele é dois segundos mais rápidos que a McLaren de Ayrton".

Eu voltava para o paddock, no término desse treino, e vi Ayrton. Junto de outros jornalistas brasileiros fomos perguntar o que se passava, a Williams, projetada por Adrian Newey, com a suspensão ativa, era, como disse Stewart, dois segundos mais veloz que a McLaren, que iniciara a temporada como o modelo ainda do título de Senna em 1991. “Verdade, se o nosso novo carro não for dois segundos mais rápido que esse, e acho difícil, o Mansell já é o campeão.”

A McLaren transportou para o Brasil três modelos novos, MP4/7-Honda, e três usados nas duas primeiras etapas. Nos treinos e na corrida o MP4/7 de Senna e Gerhard Berger apresentou problemas. A dupla da Williams, Nigel Mansell e Riccardo Patrese, passeou na pista, primeiro e segundo. Schumacher recebeu a bandeirada em terceiro, uma volta atrás de Mansell.

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acusou senna de quase matá-lo

Mas assim que saiu do carro, atacou duramente Senna. “Ele é inconsequente, fez break test comigo na reta dos boxes, mais de uma vez, podia nos ter matado.” O alemão afirmou que Senna tirou o pé do acelerador, na reta, por saber que Schumacher estava colado nele.

Senna começou a desenvolver certa antipatia por Schumacher naquela hora. Ouvimos de Senna: “Ele não sabe o que fala, é muito novo, ainda. Se viesse falar comigo antes, evitaria dizer besteira. Eu tinha problemas elétricos e o motor cortava. Era isso o que acontecia.”

Ayrton Senna discute com Michael Schumacher no GP da Bélgica de 1992 (Foto: Getty Images)Ayrton Senna discute com Michael Schumacher no GP da Bélgica de 1992 (Foto: Getty Images)

Para encerrar, recordo de uma cena insólita de Schumacher. Assim que deixou o pódio no GP da Áustria de 2002, sob vaias o tempo todo, por ter ultrapassado Rubens Barrichello pouco antes da linha de chegada, por ordem da Ferrari, entrou na sala de imprensa. Achou que ali teria um pouco de paz. Ledo engano. Eu sempre sento na primeira fila nas entrevistas.

Pois foi só Schumacher, Rubinho e Juan Pablo Montoya, Williams, terceiro colocado, entrarem para a jornalista Anne Giuntini, do L'Equipe, se aproximar do seu rosto e vaiá-lo sem parar. O alemão ficou de pé, irredutível, profundamente atingido. Nunca uma vitória representou uma derrota tão grande.

E a suposta vitória em Indianápolis, naquele mesmo ano, que Schumacher teria retribuído a Rubinho na verdade a história é outra. Sei de fonte segura, 100% segura. Schumacher passou uma linha marcada no asfalto e tirou o pé do acelerador. Achou que tinha vencido o GP dos EUA. Mas a linha de chegada estava mais à frente. Rubinho vinha em segundo e cruzou essa segunda linha, a verdadeira linha de chegada, 11 milésimos de segundo na frente de Schumacher, ou alguns poucos centímetros.

A fonte me disse que Schumacher aproveitou para passar a ideia de que agora estava 1 a 1 nessa troca de favores. Rubinho a ele no circuito A1-Ring, na época, em maio, e Schumacher para Rubinho, em Indianápolis, em setembro do mesmo ano. Mas na realidade estava corroído pelo equívoco banal. Schumacher era viciado em vencer. E para isso valia tudo, como disse. Até espremer o irmão, Ralf, no muro na reta de Nurburgring e Rubinho no da pista Hungaroring.

Hoje, Sabine Khen conduz o processo de informar o mundo sobre o estado de saúde de Schumacher da maneira mais inábil possível, o que mais poderia definirmos como irresponsabilidade e descaso com milhões de fãs. Ao que se sabe, Schumacher está numa cadeira de rodas, sem movimentos, sem falar, mas com momentos de consciência. Triste situação de um dos maiores pilotos de todos os tempos.

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