Rio

Moradores do Alemão ouviram tiroteios em 81% dos dias deste ano

A contabilidade vem sendo feita por um casal de moradores, para retratar a realidade da comunidade, que tem UPPs desde 2012

Rotina de tiroteio deixa moradores do complexo do Alemão em eterma insegurança .marcas de tiros em vários lugares
Foto: Domingos Peixoto / Fotos de Domingos Peixoto
Rotina de tiroteio deixa moradores do complexo do Alemão em eterma insegurança .marcas de tiros em vários lugares Foto: Domingos Peixoto / Fotos de Domingos Peixoto

RIO - A rotina de guerra no Alemão deixou os moradores do complexo entrincheirados em suas casas em 81% dos dias deste ano. De janeiro até ontem, ocorreram tiroteios em 190 de um total de 232 dias. Houve apenas 42 consecutivos de trégua, desencadeada pela morte de um menino, atingido por um tiro de fuzil na porta de casa. A contabilidade vem sendo feita por um casal de moradores, para retratar a realidade da comunidade, que tem UPPs desde 2012. Nas batalhas diárias, a trilha sonora do medo é composta não só por disparos de armas de fogo, como explosões de granadas e gritos de vítimas.

— Os confrontos aconteciam mais na Rua Dois, na Nova Brasília e na Fazendinha. Agora estão em outros pontos. Parece que eles (policiais e bandidos) ficam circulando pelo complexo. E os tiroteios estão mais intensos — conta a artista plástica Mariluce Mariá, que faz a estatística com seu marido.

Até 2 de abril, quando Eduardo de Jesus, de 10 anos, foi atingido na porta de casa, na Grota — no dia anterior, Elizabeth Alves, de 41 anos, morrera vítima de uma bala perdida dentro de casa, na mesma comunidade —, haviam ocorrido confrontos todos os dias do ano. A morte do menino fez com que os tiroteios parassem por mais de um mês. Mas eles voltaram a fazer parte da rotina dos moradores nos últimos 98 dias. Ontem, Mariluce anotou em seu caderno que houve mais disparos e explosões de granadas.

TIROTEIOS EM TRÊS HORÁRIOS

As localidades de Areal, Beco do Flipp, Canitá, Inferno Verde e Sabino são consideradas as mais perigosas pelos moradores, mas não existe um território de paz. Também não há um local onde se esteja totalmente seguro, pois uma bala perdida pode fazer uma vítima tanto nas vielas como dentro de casa. Os horários dos confrontos também se ampliaram. Se antes aconteciam mais de madrugada, agora são mais frequentes em três períodos: de manhã (horário de entrada nas escolas), no início da tarde (quando os alunos deixam os colégios) e por volta das 21h, quando muita gente está chegando do trabalho.

A violência também afeta a saúde dos moradores. Mariluce conta que, devido à tensão, ficou cinco dias sem conseguir andar. Teve que recorrer à fisioterapia.

— Só nós sabemos o que passamos aqui — conta, lembrando casos de vizinhos que sofreram fratura exposta ao correr na hora do fogo cruzado.

No Inferno Verde, uma dona de casa adotou uma estratégia. Quando acontecem tiroteios, toda a família — ela, o marido e dois filhos — dorme na sala. Ali, um muro garante que ninguém seja atingido por balas perdidas. Travesseiros e lençóis extras já ficam guardados no cômodo, para ser usados em caso de necessidade.

— Meu quarto, pela posição dele, pode ser atingido a qualquer momento. A sala é o único local da casa onde minha família tem uma sensação de segurança — conta ela, preferindo não se identificar. — Eu quero levar meus filhos numa pracinha para brincar. Quero que meu filho solte pipa sem ter medo.

LAZER INTERROMPIDO

A dona de casa lembra ainda que, nas férias escolares, foi ao cinema na própria comunidade, mas não conseguiu assistir ao filme:

— Eu olhava para a tela e já imaginava que, a qualquer momento, um tiro poderia furar a parede e nos atingir.

A insegurança prejudica ainda os projetos sociais na região. Nessa quinta-feira, uma atividade em que crianças aprenderiam o badminton foi suspensa. O motivo foi um tiroteio ocorrido no dia anterior no Campo do Seu Zé, na Favela Nova Brasília, onde aconteceriam as aulas. Camilo Coelho, responsável pelo projeto social, feito em parceria com o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), lamentou as dificuldades provocadas pelos confrontos.

— No início da pacificação, as marcas tinham boa vontade de participar dos projetos. Agora, a gente começa a perceber que elas começam a se retrair e a não querer mais participar — diz.

Para a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, a iniciativa do casal de contabilizar os confrontos na região mostra quão grave e preocupante é a realidade no Alemão.

— É uma atitude espetacular. Eles estão fazendo com que as pessoas de lá e de fora dali se deem conta do que está acontecendo. É o momento de rever a estratégia para aquele território — defende.

O antropólogo Paulo Storani, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), também acha que o projeto de pacificação precisa ser revisto.

— O policiamento da UPP não foi feito para combater criminosos de alta periculosidade. O projeto é de polícia de proximidade, um novo conceito, que precisa ser revisto. Talvez, pela dimensão do território, seja muito mais difícil de combater a presença de criminosos — ressalta.

Em nota, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) informou que os desafios do processo de pacificação do Complexo do Alemão envolvem maior aproximação com a comunidade e o trabalho diário de enfrentamento do crime. “As polícias têm feito o seu papel, mas, mesmo reconhecendo que ainda se está distante do ideal, não podemos desprezar os avanços conquistados até agora”, afirma um trecho da nota. O texto ressalta ainda que a pacificação resultou na diminuição de 85% dos homicídios decorrentes de intervenção policial nas comunidades contempladas pelo projeto. Também, assinala a nota, houve queda de 65% dos homicídios dolosos nessas regiões, na comparação entre 2008 e 2014.

Os moradores prometem tomar outras iniciativas. Amanhã, eles farão uma caminhada no entorno do complexo, para chamar a atenção para o clima de guerra na área. A concentração será às 9h30m, ao lado da Vila Olímpica da Grota.