Coluna
Cora Rónai
Cora Rónai Foto: Agência O Globo

Tragédia carioca

Não há conserto que possa minimizar ou resolver a ciclovia da Niemeyer, esse monumento ao descaso

“Em qualquer país civilizado do mundo...”

“Em qualquer lugar decente do universo...”

“Em qualquer civilização respeitável...”

“Em qualquer civilização...”

Há muitos começos para a mesma história. A verdade é que em qualquer país que se queira minimamente um país nada disso estaria acontecendo; nada disso sendo, é claro, tudo isso.

Mas, entre outras coisas, em nenhum país civilizado, e em nenhuma cidade linda como o Rio, alguém teria a audácia de construir uma ciclovia como esta que despencou sem antes promover um concurso de arquitetura, e sem buscar um projeto que convivesse em harmonia e segurança com o seu entorno: algo que acrescentasse beleza à paisagem, ou que, no mínimo, não a agredisse tanto.

Aqui não. Aqui se planta de qualquer jeito uma passarela que, de bonita, só tem a vista — agora, que o noticiário a tem exibido de todos os ângulos, e não só o da propaganda turística, é que afinal percebemos como é feia e precária. Ao mesmo tempo, notamos como é bela e resistente a quase centenária Gruta da Imprensa, prejudicada pelas pilastras medonhas que a prefeitura, com característica insensibilidade, fincou à sua frente.

A cidade já sofreu demais com obras feitas a toque de caixa, sem capricho ou preocupação estética. Em qualquer outro lugar, uma joia como o Rio teria sido cuidada e preservada; mas aqui, desde a ditadura, cada governo fez exatamente o que quis, sem prestar contas a ninguém. A sanha das empreiteiras aliada à canalhice das autoridades produziu um desastre urbanístico onde, até a primeira metade do século passado, ainda existia uma metrópole invejável.

Infelizmente nem tudo se pode resolver como o prefeito resolveu o monstrengo da Perimetral, mas era de se esperar que, a essa altura, o governo já houvesse aprendido com os erros do passado e com os acertos de outros países. Cidades inteligentes sabem que a boa arquitetura pode ser uma atração turística a mais, e se esforçam em realizar projetos sedutores nos lugares de alta visibilidade.

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No dia 23, dois dias depois da tragédia, um cidadão chamado Walmar Luiz caminhou por um trecho da Avenida Niemeyer mostrando, num vídeo gravado no celular, alguns detalhes da parte inferior da ciclovia. O que vemos é, como diria aquela senhora, estarrecedor — a começar pelo acabamento inacreditavelmente porco em todos os níveis.

Há sacos de areia contendo o terreno, caixas de madeira vazias cuja existência não se justificaria a menos que servissem de formas para um concreto que jamais foi feito, ferragens expostas à maresia, colunas envolvidas em estopa, elementos de tamanhos desencontrados vagamente encaixados uns nos outros. É difícil acreditar que essa estrutura mequetrefe tenha sido projetada e supervisionada por profissionais; é revoltante — e muito triste — ver o desamor com que tudo foi feito e, especialmente, constatar a falta de brio de quem contratou e de quem entregou trabalho tão grosseiro.

Até o momento em que escrevo, na madrugada de quarta-feira, o vídeo do Walmar já havia sido visto por quase 220 mil pessoas. Ainda é pouco. Todos os cariocas deveriam assisti-lo, para ver como é gasto o nosso dinheiro. Ele fica em bit.ly/1MYlNE4 .

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Como já escrevi aqui uma vez, Eduardo Paes me conquistou, como carioca, quando teve a coragem de botar abaixo o viaduto da Perimetral. Foi uma “desobra” caríssima, como tudo nesse país, agravada pelo sumiço inexplicável das vigas, mas corrigiu um dos maiores crimes arquitetônicos cometidos contra essa cidade, o que não é dizer pouco quando se pensa no Palácio Monroe, se observa a Avenida Atlântica ou se anda por Botafogo. Ele perdeu toda a minha admiração subsequentemente, mas essa é outra história.

Não gosto dessa ciclovia desde que foi construída.

Sou fã de bicicleta e acho que o seu uso deve, sempre, ter primazia sobre o dos carros. Pratico isso. Não tenho carro há 20 anos, desde que cheguei à conclusão que o mundo não aguenta que cada um tenha o seu próprio automóvel.

Mas também sempre achei (e continuo achando) que a ciclovia, tal como foi concebida, cria um espaço perfeito para assaltantes, sem oferecer ponto de fuga para os assaltados; e lamentei muito que, em nome da minoria nas bicicletas, a maioria nos carros estivesse perdendo a vista de uma das mais belas avenidas da cidade. Não precisaria ser assim; bastaria que fosse construída de outra maneira, quem sabe num outro nível.

Cheguei a escrever umas poucas linhas sobre isso na internet, há algum tempo, mas fui massacrada por ciclistas, que entenderam que eu era contra bicicletas tout court e estava defendendo os carros. Há uma ferocidade bastante compreensível entre eles, que lutam para conquistar espaço e respeito, e não quis brigar com quem apoio.

Agora, depois da tragédia e, sobretudo, depois de descobrir a forma criminosa como a ciclovia foi construída, espero que um próximo prefeito me conquiste tendo a mesma atitude do Paes: pondo abaixo esta porcaria de alta periculosidade.

Não há conserto que possa minimizar ou resolver esse monumento à incompetência e ao descaso.

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