Edição do dia 01/05/2016

01/05/2016 08h40 - Atualizado em 02/05/2016 07h13

Agricultores pagam ajuda que recebem com serviço

É a alternativa de quem não tem condições para contratar mão de obra.
Veja também receita de pinhão.

Nélson AraújoSerra da Mantiqueira

 A troca de dia é uma solução interessante quando a pessoa não dá conta do serviço e não tem dinheiro para contratar ajuda. Esse é um costume ancestral, extinto já na maior parte do Brasil, mas que ainda se mantém vivo na Serra da Mantiqueira, na divisa de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

 

Cada um tem um jeito de pensar e realizar o trabalho. Interessante como isso se dá nas montanhas ao lado da Pedra do Picu, imponente marco que dá nome a Itamonte.

Pela dificuldade de acesso e isolamento, mão de obra é uma questão no entorno da Pedra do Picu. É caro trazer gente de fora. Os proprietários mal dão conta de suas próprias tarefas. Daí, surgiu o costume de se pagar pelos serviços com essa moeda criativa e emocionante que é a troca de dia.

César Leite vive na Ilha Grande, uma das 15 comunidades de agricultura familiar espalhadas nos vales que recortam o município de Itamonte. Ele explica que, embora no fazer haja uma semelhança, troca de dia não é mutirão.

Para fazer a reportagem, o Globo Rural esteve na região em duas ocasiões. No fim do inverno passado, época luminosa da florada do Ipê, foi flagrado um caso de vaca atolada.

O casal de produtores Altair e Leila Ribeiro Leite viram que a vaquinha mais velha deles, a Baiana, de quase 500 quilos, tinha caído no brejo. Só o casal não ia dar conta de puxar o animal ladeira acima. O resgate, feito com a ajuda dos vizinhos, levou quase duas horas. Eles tiveram que abrir um túnel no bambual seco. Mal e mal a vaca ficou em pé. Mas, travou com as cãibras.

Então, Baiana teve que ser empurrada. Estavam 14 braços no empuxo. Com o mojo pingando leite, Baiana só recupera as forças quando lhe trazem a bezerrinha. Foi um alívio. A família não perdeu uma criação de apreço, que também é fonte de renda. A estima dos vizinhos assegurou o salvamento da Baiana. Porém, isso não é troca de dia.

O combinado de trocar dia foi para fazer faxinão em curral, começando pelo do Alonso Oliveira Leite, o Nem. Foram ajudar no trabalho o Lázaro Ribeiro, o Joaquim Peres, o Gilson Fonseca, o Amâncio, o César, o Altair, o Sidnei, o Eli e Celsinho, todos os últimos com Leite no sobrenome. São parentes e amigos que vivem, basicamente, de um gadinho mestiço. Por dia, eles produzem um ou dois tamborzinhos. No meio da manhã, são encangados nas mulinhas que fazem de cor o caminho das pequenas propriedades até o também pequeno lacticínio serrano.

A matéria-prima dos sitiantes permite uma produção industrial variada com mussarelas, provolones, pratos e requeijões. Alguns proprietários, no entanto, como o César, ainda fazem o parmezãozinho jovem da roça, um artesanal típico da Mantiqueira.

Por isso, a troca de dia raramente começa cedo. A turma só vai prestar o serviço depois de cumpridas as tarefas de rotina em seus próprios sítios. Mas, a soma dos braços agiliza tudo. No prazo de hora, o curral do Nem está rapado. O esterco sendo logo baldeado para o lombo do Desenho, um burrão pau para toda obra.

Um córrego canta no meio da capineira para onde o Desenho é conduzido com a carga de esterco. Graças a um rudimentar sistema de destrava automática, os tambores são esvaziados. Logo, dois vizinhos fazem o esparrame para o Nem.

A merenda também é compartilhada. Um colega sempre leva a mais para servir o companheiro que não pode levar o lanche. A troca de dia é simples: um ajuda em um dia e outro ajuda no dia seguinte. Esse é um meio de vida naturalmente solidário. A retribuição pode ser feita depois, com uma roçada de pasto ou o retoque numa cerca de arame farpado.

Conforme a época do ano nas montanhas, o volume de serviço triplica. No fim das águas, por exemplo, é hora de colher o que foi plantado para garantir o trato dos animais no inverno. A troca de dia nesta situação é para fazer silagem de milho.

São 10hs quando a turma pegou no eito. Nem parece que já vieram de uma jornada anterior de trabalho. O penado desliza com vontade nas hastes do milho. Nem meia hora depois já estão nos cargueiros. Ao descer a encosta, a tropa encaminha a vista para as matas do fundo do vale. Em vez do amarelinho do ipê, o que tinge a paisagem agora é o roxo vivo dos manacás e das quaresmeiras.

O beneficiado da vez é o Eli Oliveira Leite, que organizou uma praça de serviço como se fosse uma linha de montagem. São oito tarefas desempenhas ao mesmo tempo. O cargueiro chega, logo um descarrega. Outro desemboneca as plantas, quer dizer, quebra as espigas e vai amontoando.

Na silagem convencional corta-se o milharal no estágio anterior. Eli espera amadurecer um pouco mais. Assim, garante comida para as criações. As hastes sem as espigas são passadas num triturador. Tudo é montado para que o triturado já caia no silo-trincheira. Ramadas de uma capineira trituradas também melhoram o teor de proteína da silagem.

Não dá nem 15hs e a silagem está, praticamente, pronta. Eli vai pagar por tudo, inclusive a silagem dos burros, com seis dias de serviço porque o Gilson levou trouxe o trator.

A troca de dia não é só coisa de homem. As mulheres também praticam, principalmente, para as tarefas de casa. Fazer um faxinão ou festa, para costurar, para dar uma geral na horta ou no jardim. Nessa passagem da reportagem acontece uma cooperação bem interessante, para aproveitar uma preciosa riqueza nativa da Mantiqueira: o pinhão.

Maria das Dores Ribeiro, a Dorinha, esquadrinha os bosques de araucária escoltada por Anderson Teodoro, o Nino, e Edmar Ribeiro. Lembrando uma expressão do Lázaro, que é irmão da Dorinha, este é um ano farturento de pinhão.

Uma pinha demora quase dois anos para se formar. Madura, estoura no ar ou se arrebenta no chão espalhando longe mais de cem sementes. O problema é que no chão da floresta ou armazenada in natura, o pinhão caruncha rapidamente.

O catado da manhã Dorinha leva no começo da tarde para a cozinha de uma pousada de Rio Acima. No lugar, vai acontecer não uma troca de dia propriamente, mas a preparação para uma série de trocas futuras. Diva Leite, Ivone Leite, Therezinha Leite, Wanda Alves, Guiomar Teodoro, Tida Ribeiro, mais a Dorinha, moradoras de três vilas rurais vizinhas, foram aprender uma big novidade: como guardar por longo tempo pinhão.

A Cilene Pinto fez curso de conserva e, carinhosamente, já sendo chamada pelas amigas de “Ana Maria Braga” do pinhão. Ela recomenda que, depois de cozido, o pinhão seja mantido em água quente. Cilene dá todas as dicas. (Veja no vídeo)

Os pinhões limpos devem ser levados e os vidros, fervidos. Para o líquido da conserva, junta um terço de água, um terço de vinagre de arroz e um terço de saquê. Pode ser pinga. Mais um pouquinho de sal e açúcar. Abriu fervura, está pronto. Pode ser despejado sobre as sementes acomodadas de forma criativa. Tem que ficar bonito, apetitoso.

Em bairros como Ilha Grande, Colina, Fazenda Velha, Rio Acima e tantos outros no município de Itamonte compartilha-se a solidariedade tambem fora do âmbito do trabalho. Por exemplo, quando um pai de família fica doente e não tem condições de fazer a renda da despesa do mês. Nesse caso, pratica-se a corrida do saco.

Periodicamente, uma pessoa da turma toma a iniciativa de sair batendo de porta em porta. Esta é uma prática de doação que no dia da reportagem coube ao Alonso Leite, o Nem, exercitar. Em uma família, ele consegue arroz e macarrão. Em outra, açúcar e farinha. Ele também recebeu produtos de higiene. Assim vai recolhendo e correndo o saco.

Quando ninguém da comunidade carece de ajuda, o benefício da coleta desce
a serra e vai para uma instituição de caridade. Alonso e a esposa Terezinha estão na Apae de Itamonte. A Mantiqueira, numa hipótese atribuída à frequente consanguinidade que acontece nas remotas vilas rurais, tem muitos casos que requerem atendimento. Só em uma das casas são 196 pacientes, de neonatais a idosos. Os recursos oficiais minguaram, ultimamente.

Mais informações:
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