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José Paulo Kupfer
José Paulo Kupfer, colunista do GLOBO Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Tiro de canhão pela culatra

Mudança no cálculo das correções das dívidas pretendida pelos estados tem o poder de promover uma esbórnia nas contas públicas e incentivar calotes no lado privado

“Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. É este surrado provérbio que vem à mente quando se procura entender a onda de recursos dos estados ao Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de reduzir, por uma solução mágica, as dívidas que voltaram a acumular depois de todos os descontos, alongamentos e anistias de que foram beneficiários nos últimos 20 anos. Atingidos, como a União, por fortíssimas frustrações de receitas, os entes federados tentam obter o pão que a profunda recessão atual lhes tirou valendo-se de artimanhas jurídicas.

A falta de clareza das normas, que gera a insegurança jurídica típica de nossas legislações, abriu espaço à manobra que produziria, se aprovada no Supremo, mais uma jabuticaba de grosso calibre. Em nenhum país do mundo, mesmo os de inflação e taxa de juros muito baixas, dívidas são corrigidas por juros simples.

Não há dúvida de que a situação fiscal dos estados é calamitosa e por isso mesmo o governo federal, apesar de seus próprios e notórios sufocos fiscais, propôs aliviar o cronograma de pagamento das dívidas estaduais e aceitou descontos temporários nas parcelas a vencer. Para obter os benefícios, em contrapartida, os estados teriam de aceitar medidas de austeridade e prometer não recorrer à Justiça para alterar o que fosse acertado com a União.

Três estados — Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais —, porém, antes de negociar, já conseguiram liminares no Supremo para calcular a correção de suas dívidas com a União pela aplicação de juros simples, em lugar dos juros compostos de praxe. Alagoas é o próximo da fila. Reajustando apenas o principal de suas dívidas, os estados deixariam de pagar quase 80% dos débitos atuais. Segundo estimativas do ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, uma redução de mais de R$ 300 bilhões, equivalente a 25% das receitas federais previstas no orçamento proposto pelo governo para este ano.

O ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo, marcou o julgamento do mérito do pleito dos estados para daqui a uma semana e meia — depois, portanto, da votação do impeachment na Câmara dos Deputados. É mais do que improvável que a Corte mantenha a pretensão dos estados, pelas previsíveis e imensas repercussões da decisão na vida econômica de empresas e pessoas. Mas, nestes tempos de judicialização, no Brasil, da vida em sociedade e de temerário protagonismo dos ministros do Supremo, quem pode garantir, ali na batata, o que sairá, também desta vez, da cabeça dos juízes?

Não é exagero imaginar uma desorganização generalizada da atividade financeira no país. Basta lembrar que dívida é uma expressão que sintetiza a relação entre devedores e credores para entender o tamanho da encrenca. Todos que devem seriam beneficiados, mas, do outro lado, perderiam todos os que investem — dos mais humildes detentores de cadernetas de poupança e de cotas do Fundo de Garantia até grandes fundos de investimento e aplicadores individuais em papéis públicos e privados.

Mais do que isso. Numa economia em que a inflação está entre as mais altas do mundo e a taxa básica real de juros é campeã mundial, a correção de dívidas por juros simples acarretaria, de imediato, contração de linhas de crédito e aumento dos juros. É lógico que, diante da nova regra, credores hesitarão em emprestar e só o farão a taxas capazes de compensar as perdas introduzidas pela mudança do cálculo.

Sem falar nas consequências esperadas do “risco moral” que se instalaria nos sistemas de financiamento. A regra dos juros simples, que os estados querem fazer valer para suas dívidas, mas não para seus créditos — continuam cobrando dívidas, parcelando débitos e recolhendo tanto tributos como multas com base em juros compostos —, beneficiaria apenas os estados gastadores e irresponsáveis, castigando os que se esforçam para organizar suas finanças. Estímulo irresistível para a prática de esbórnias nas contas públicas e para calotes generalizados no lado privado. Em resumo, um tiro de canhão pela culatra.

José Paulo Kupfer é jornalista

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