Escola Municipal Haydea Vianna, em Paciência, fica entre duas facções e a milícia Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

O futuro na linha do tiro

Este ano, 310 colégios da rede municipal tiveram aulas suspensas devido a tiroteios

Escola Municipal Haydea Vianna, em Paciência, fica entre duas facções e a milícia - Custódio Coimbra / Agência O Globo

por Elenilce Bottari / Rafael Galdo / Selma Schmidt / Taís Mendes

Trancados atrás de grades, os alunos de uma escola municipal da Pavuna esperavam um tiroteio acabar para poder ir embora, na manhã da última quarta-feira. Ainda se ouviam os estampidos vindos do Complexo do Chapadão enquanto a diretora da unidade decidia se as aulas da tarde seriam canceladas. Do lado de fora, pais desesperados apareciam em busca de notícias dos estudantes. “Onde vou achar esse moleque? Vim debaixo de tiro buscá-lo”, disse um pai ao saber que o filho tinha saído mais cedo. Um dia depois, a tensão se repetia em Santa Cruz. Os confrontos, dessa vez, eram na Favela do Rola. Agarrado à mão da avó, um menino deixava às pressas uma das duas escolas da região que acabaram tendo que suspender parte das atividades. E manifestava o medo que virou rotina: “Vão metralhar o colégio todo!”

Aluna fala sobre medo de violência em escola no Rio

No cotidiano do terror carioca, esses estão longe de ser casos isolados, como mostra a série “O futuro na linha de tiro”, que revela os desafios de ensinar e aprender em territórios conflagrados da cidade. Na guerra entre facções e em meio a operações policiais, os alunos dessas áreas têm sido atingidos em cheio. Apenas no ano letivo que terminou na última sexta-feira, um levantamento da Secretaria municipal de Educação, feito a pedido do GLOBO, aponta que 128.915 alunos (19,7% dos 654.454 adolescentes e crianças atendidos pelas redes própria e conveniada da prefeitura) foram diretamente afetados pelos confrontos. Eles estudam nas 310 escolas (ou 19% do total de 1.625) que, até o fim de outubro, tiveram de fechar por pelo menos um turno devido à violência.

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Escolas sitiadas pela violência

Ciep com portão fechado em Acari, na Zona Norte do Rio - Custódio Coimbra / Agência O Globo

O problema é mais grave do que o contabilizado pela prefeitura em 2009. Na época, 13,6% dos matriculados na rede (100.267 dos 735.996 alunos) ficaram sem aulas por causa de confrontos em comunidades. Há seis anos, o Complexo do Alemão — antes da instalação das UPPs — era a área mais afetada. Já em 2010, Wesley Gilbert Rodrigues de Andrade, de 11 anos, foi morto por uma bala perdida durante uma aula de matemática em outro ponto da cidade: o Ciep Rubens Gomes, em Costa Barros. É nas proximidades desse Ciep que ficam a escola e a creche públicas municipais mais prejudicadas este ano pelas paralisações provocadas pelos tiroteios. Em cada uma delas, foram 49 turnos sem aula, o que corresponde a 24,5 dias do ano letivo perdidos.

ARTIGO: O PREJUÍZO É DE TODOS

As duas unidades ficam na 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), onde estão o Complexo do Chapadão, o Morro da Pedreira e a Favela de Acari, além de bairros como Pavuna, Anchieta, Barros Filho e Costa Barros. Das 11 CREs da cidade, a 6ª foi a que mais sofreu com as paralisações: 62 das 107 unidades da região tiveram aulas interrompidas. Mais do que na 4ª CRE, onde estão os complexos da Maré e de Manguinhos, na qual os efeitos dos tiroteios foram igualmente devastadores: 61 dos 148 colégios vinculados à coordenadoria pararam devido a confrontos.

No entorno do Chapadão, estudantes, professores e pais de alunos contam que a situação piorou nos últimos dois anos. Em setembro passado, Kaic Maycon, de 15 anos, aluno de uma das escolas da região, estava num ponto de ônibus quando foi baleado e morreu. O mês seguinte (outubro), chegou a ser descrito como o “inferno”. Um pesadelo que voltou a ser vivido semana passada, com mais uma manhã de tiroteios no complexo de favelas.

Professora conta rotina de medo em escola do Rio

— A dificuldade é não deixar que os alunos fiquem na janela. Os professores tentam dar aula. Só tentam, porque os alunos ficam muito agitados — disse a coordenadora de uma escola nas proximidades do confronto da última quarta-feira. — Ficamos esgotadas. Parece que toda a alma da gente vai embora, é arrancada.

No momento do tiroteio, uma mãe de aluno procurava a escola para se queixar de que o filho tinha sofrido ameaças, inclusive de morte, de outro estudante. A todo instante, como estopins, reflexos da violência como esse explodem dentro dos muros do colégio.

— Os alunos estão muito violentos, brigam à toa. Aqui, acabamos fazendo o trabalho de advogado, psicólogo, delegado, babá. Esses alunos não têm acompanhamento psicológico, nem de assistentes sociais. Nós, professores, também precisamos de apoio. Não temos — afirma a diretora de uma escola, cujo nome, assim como os de outras vítimas da violência próxima aos colégios, será omitido por questão de segurança.

TRAFICANTES FAZEM BLITZ

Também no Chapadão, professores de outra unidade contam que são submetidos, inclusive, a revistas feitas por traficantes para entrar na comunidade.

— A situação nunca foi tão crítica. Nosso carro tem um selo para identificar que somos professores. Eles fazem uma revista minuciosa, como se fossem policias. Hoje (no último dia 17), o carro de um colega foi alvejado. Uma professora teve que ficar deitada no ônibus para fugir de tiros — contou um professor.

Perto dali, em Anchieta, numa escola cercada por ruas com barricadas, um inspetor perguntava quarta-feira aos alunos como estava o clima do lado de fora. Esse é um dos colégios municipais de ensino fundamental que mais fecharam este ano devido à violência: 31 turnos até o fim de outubro.

Ali, embora aparentemente lidassem até com uma certa naturalidade com a tensão da violência, uma cena deixava claro que não era bem assim. Um menino de 10 anos abraçou uma colega, que pediu a ele que a soltasse. O garoto não obedeceu e ouviu da menina: “Você vai morrer, vou te matar”. Foi o que bastou para que sua fisionomia mudasse e ele caísse em pranto.

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Horário escolar diferente

Embora a escola seja uma das mais tranquilas na Maré, já fechou seis vezes este ano devido à violência: fé de dias melhores - Márcia Foletto / Agência O Globo

Apesar de o Complexo da Maré estar ocupado por forças de segurança para a instalação de UPPs, o dia a dia de violência já fez mudar até o horário escolar. Das 30 unidades da rede municipal de ensino localizadas dentro e na periferia do conjunto de favelas, 20 passaram a abrir as portas meia hora mais tarde (às 8h) e a fechar 30 minutos mais cedo (às 16h). O pedido foi feito por um grupo de diretores à secretária municipal de Educação, Helena Bomeny, para reduzir efeitos de possíveis confrontos na rotina de estudantes e professores — medida que vigora desde agosto.

— Os diretores contaram que as incursões policiais nas comunidades começam muito cedo ou no fim da tarde. Disseram que, se a escola abrisse às 8h, as operações já teriam acabado. Com os alunos saindo mais cedo, eles também chegariam em casa antes das ações do fim da tarde. Combinamos que, mensalmente, a iniciativa seria reavaliada — afirmou a secretária. — Para que a carga escolar dos alunos nessas unidades não fosse prejudicada, mudamos também o horário das refeições. O aluno que entra de manhã almoça na saída, e o pessoal da tarde chega mais cedo para almoçar antes de a aula começar.

AS IMAGENS DAS ESCOLAS NA LINHA DE TIRO

Escolas na linha de tiro

  • Aluna de uma escola no Complexo da Maré, menina de 11 anos não brinca na rua porque tem medo dos tiroteios Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Embora a escola seja uma das mais tranquilas na Maré, já fechou seis vezes este ano devido à violência: fé de dias melhores Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Alunos em fila: os estudantes de colégio na Maré participam de uma conversa com a diretoria da escola antes da entrada em sala de aula Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Mãe com três dos quatro filhos em frente a escola na Maré: além de estudarem, as crianças acompanham a mãe no trabalho e não ficam sozinhas em casa Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Alunos em sala de aula na Maré: quando ocorre algum episódio de violência na área externa, os estudantes ficam nos corredores Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

  • Em toda a área da 4ª Coordenadoria Regional de Educação, que inclui a Maré, 61 escolas fecharam ao menos uma vez este ano devido a confrontos na comunidade Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Para uma professora de uma escola que fica na chamada “Faixa de Gaza” da Maré — entre as comunidades da Nova Holanda e da Baixa do Sapateiro, dominadas por facções rivais —, a mudança de horário era necessária, mas não soluciona o problema:

— Agora, as crianças faltam menos às aulas. Mas a mudança é um paliativo. Não são raros os casos em que os alunos e nós mesmos somos surpreendidos por tiroteios estando dentro das salas de aula. As crianças já sabem o que fazer: elas se abaixam e vão para o corredor, onde é mais seguro.

AGOSTO FOI O MÊS MAIS VIOLENTO

Nos dez primeiros meses deste ano, na 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), que inclui a Maré, setembro foi o que mais teve escolas fechadas ao menos uma vez devido à violência: um total de 41 unidades. Mas, se considerado todo o Rio, foi o mês de agosto o recordista do ano em colégios e creches que tiveram de dispensar os alunos por causa dos confrontos em comunidades próximas. Foram 173, sendo que 50 apenas na 6ª CRE (região da Pavuna e Costa Barros), 30 na 4ª CRE e 24 na 7ª CRE (área de Jacarepaguá, Rio das Pedras, Cidade de Deus e Barra da Tijuca).

Na Maré, alunos, professores e outros funcionários de uma escola que fica entre as comunidades do Timbau e da Baixa do Sapateiro ainda têm nítido na memória o dia 12 de março deste ano. Policiais militares ocuparam a rua e passaram a manhã trocando tiros com traficantes. Quase todos já estavam nas salas de aulas e foram para os corredores. Menos uma turma, que estava no refeitório, no primeiro andar, e ficou encurralada com a professora durante toda a manhã.

— Fiz até uma foto deitada no chão, apavorada. Achei que seria a última. Foi a pior situação que já passei na vida — lembrou a professora, que leciona na unidade há oito anos. — Foram muitos tiros, durante muito tempo. Só conseguimos sair da escola por volta das 14h. Eu chorava muito. Achei que fosse morrer.

No colégio, estudam 510 crianças e adolescentes do 1º ao 6º ano do ensino fundamental, moradores de diferentes comunidades do complexo. Quando a guerra começa em qualquer canto da Maré, eles se comunicam por WhatsApp e sabem se haverá aula ou não. Mas, quando já estão na escola, o jeito é encontrar uma maneira de se proteger.

— Fico com muito medo, mas me agacho e espero passar. Geralmente é rápido — contou um menino de 12 anos, do 6º ano.

Um dos maiores problemas, segundo a diretora da escola, é que a violência na comunidade também acarreta baixa frequência de alunos:

— Eles não conseguem chegar porque passaram a noite sem dormir devido aos tiroteios ou porque o confronto começou na hora de vir para o colégio.

Professora diz que sempre terá orgulho de seus alunos na Maré

Ela conta que procura realizar projetos que reduzam o impacto dessa realidade. Além disso, a cada entrada de turno, as crianças rezam o pai-nosso no pátio.

— Mas vivemos sobressaltados. Teve um dia de agosto deste ano em que o simples ronco de uma moto assustou. Levamos as crianças para o corredor. Eu corri para a porta na tentativa de saber o tamanho do problema. Chegando lá, descobri que era só uma moto — diz.

CRIANÇAS CONVIVEM COM TRAUMAS

Mãe de três alunos da escola, uma dona de casa conhece bem a rotina de violência na comunidade onde mora, a Vila Esperança. O marido já foi vítima de uma bala perdida quando voltava do mercado. Sobreviveu, mas, desde então, os filhos não brincam mais nas ruas e, com frequência, são obrigados a faltar às aulas por causa de tiroteios.

— Basta eu ver o helicóptero da polícia para não levá-los para o colégio. Lá é até mais seguro, mas não sei o que podemos encontrar pelo caminho — conta a mãe.

Moradora da Nova Holanda, na Maré, outra mãe, de 29 anos, tem que lidar com a violência do local onde mora e com os traumas dos quatro filhos, que só aceitam sair de casa se for para ir à escola (fora da comunidade) ou algum outro lugar longe da favela. Ela mesma já se viu presa no meio do fogo cruzado, tentando retornar para casa com três dos filhos:

— Eles estudam fora da favela. Voltávamos do colégio quando começou o tiroteio, no meio da manhã. Ficamos passando de beco em beco. As pessoas, com medo, não abriam suas portas. A gente só ouvia os gritos de “não vai por aí” e “cuidado”. Eles não podiam fazer operações assim no meio da manhã. Quando consegui chegar em casa, já passava das 13h. Foram quase três horas de fogo cruzado — diz ela.

A mulher conta ainda que chegou a tentar matricular os filhos na escola do lado de casa. Mas, após um tiroteio que perfurou o muro da unidade, o filho mais velho, de 13 anos, não aceitou ir para lá.

— Por mim, eu nem morava na comunidade. Daqui, só gosto dos cursos de música que faço na (organização da sociedade civil) Redes da Maré — disse o adolescente, que prefere pegar uma condução para a escola a estudar a alguns metros de casa.

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‘Reposição é de conteúdo’

Helena Bomeny, secretária municipal de Educação - Márcio Alves / Agência O Globo

Secretária de Educação do Rio, Helena Bomeny, diz que ‘a reposição é de conteúdo’. Para ela, o importante é 'garantir que o aluno tenha o aprendizado’.

Como a secretaria lida com tantas escolas tendo que fechar devidos aos tiroteios?

Lamentamos, mas estamos imersos num contexto da cidade que repercute dentro das escolas. Dependendo de onde as unidades estejam localizadas, a situação fica menos ou mais complicada. Agora, temos um time de diretores e professores muito comprometido. Eles compram a causa da escola.

Existe um déficit de professores em escolas de áreas de risco?

Pelo contrário. A quantidade de pessoas que participam de nossos concursos é enorme. E eles são localizados. A pessoa sabe, quando faz um concurso, que está escolhendo uma escola numa determinada área. Então, o jogo está posto.

Existe atendimento psicológico para os profissionais que trabalham nessas escolas?

Em cada CRE temos uma equipe do Niape (Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Escolas), formada por educadores, psicólogos e assistentes sociais, que faz atendimento às escolas. Não ao professor, mas à escola que passa por algum problema emocional.

De que forma as polícias podem minimizar o impacto dos confrontos nas escolas?

A polícia sempre se compromete a não fazer incursões em horário escolar. Mas, quando a bandidagem age em horário escolar, como é que os policiais não vão agir?

Como é feita a reposição de aulas perdidas quando a escola tem que fechar?

A reposição é de conteúdo. A escola não deve esperar até o fim do ano para fazer o reforço. Cada uma escolhe a melhor maneira de repor, trabalhando em grupos nas salas, estendendo o horário, dando aulas aos sábados... O importante é garantir que o aluno tenha o aprendizado que ele deva ter.

Mas essas escolas não ficariam com pendências junto ao MEC?

Aí é um problema específico de violência, extrapola a nossa possibilidade de impedir que aconteça. Não tem como. Cada escola tem sua estratégia.

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Aprendendo sozinhos a lidar com o medo

Estratégia contra o terror. Um professor brinca com alunos da Escola Municipal Haydea Vianna Fiúza de Castro, em Paciência: jogos, conversa e afeto como forma de combater a tensão - Custódio Coimbra / Agência O Globo

Era uma terça-feira, 11 de agosto deste ano, quando Antônia Rosângela Pereira, de 36 anos, e a filha dela, Vitória Pereira de Souza, de 8, foram baleadas nas pernas ao saírem do Ciep Juscelino Kubitschek, em Manguinhos, ao serem surpreendidas no meio de um tiroteio entre PMs e traficantes. Quase um mês depois, em 8 de setembro, outra mãe foi ferida com um tiro na boca, no Complexo da Maré, quando tentava atravessar o fogo cruzado para chegar à escola da filha, na Nova Holanda. Dois casos do segundo dia da série “O futuro na linha de tiro” que revelam as consequências de um problema que é alvo de críticas de professores, associações comunitárias e especialistas: a falta de protocolos sobre como agir durante confrontos em horário escolar — assunto tabu para as autoridades de segurança e as secretarias de Educação.

Sem procedimentos definidos, os diretores de cada unidade têm que decidir o que fazer durante tiroteios e se o colégio deve ou não fechar. Em setembro, as aulas foram interrompidas por pelo menos um turno em 41 escolas da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), que inclui a Maré. Segundo lugar entre as áreas em que o ensino foi mais prejudicado pela violência este ano, a CRE fez, no mês passado, uma audiência pública para debater o assunto.

— Profissionais de educação não são especialistas em segurança. Os confrontos acontecem na entrada ou na saída dos turnos, e as escolas sequer são informadas sobre as operações. Isso impacta a vida dos profissionais e o aprendizado dos alunos — diz a professora Suzana Gutierrez, da coordenação geral do Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio (Sepe), que dá aulas na Maré.

COM TIROTEIO, TRABALHO NO CORREDOR

Sem suporte, é cada um por si. Num tiroteio quinta-feira passada, na Favela do Rola, em Santa Cruz, a diretora de uma escola municipal recomendava a um aluno que chegara mais cedo: “Vai para casa. Não fica na rua”. Desnorteada, decidiu, logo depois, suspender o turno da tarde. Na conflagrada Antares, também em Santa Cruz, criou-se um “pacto de conduta”, como explica o diretor de um Ciep:

— Quando começa o tiroteio, saio da minha sala com o computador e continuo trabalhando agachado no corredor.

A secretária municipal de Educação, Helena Bomeny, diz que faz reuniões de diretores com as forças policiais e que não pretende criar regras de conduta durante tiroteios.

— São eles (os diretores) que estão lá e têm total autonomia para avaliar se há perigo para os alunos e professores — diz. — Não pensamos em criar um manual. Seria ainda mais aterrorizante. Mas não estamos alheios a isso, nem fora do contexto.

Para Paulo Storani, sociólogo e ex-capitão do Bope, transferir a responsabilidade para os diretores é covardia:

— Eles não têm conhecimento técnico de como agir para diminuir o risco. O órgão (a Secretaria de Educação) deveria pedir à Secretaria de Segurança que elaborasse um manual e instruísse os diretores.

AS IMAGENS DO TRABALHO CONTRA A VIOLÊNCIA

Brincadeira contra a violência

  • A Escola Municipal Haydea Vianna Fiuza de Castro, em Paciência, a metodologia para aliviar as tensões devido à violência inclui brincadeiras e muito afeto Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

  • O professor Douglas Emanuel do Carmo começou a trabalhar no colégio este ano e já se adaptou à filosofia da escola Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

  • Carinho: para professores, direção e funcionários do Haydea Vianna, essa é a melhor forma de receber os alunos, a maioria de comunidades carentes de Paciência e Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

  • As brincadeiras, com joguinhos que estimulam a memória e a rapidez de raciocínio, entre outras habilidades, muitas vezes acontecem dentro de sala de aula Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

  • Juntos pela paz: colégio tem estratégias para recepcionar os estudantes mesmo em dias de confrontos na região Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

  • Na turma da professora Leila Cecília, a aula da última quinta-feira começou com exercícios de alongamento e relaxamento Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

A assistente social Lidiane Malanquini, do Eixo de Segurança da Redes da Maré, observa que a ONG decidiu não fechar em períodos violentos, para acolher moradores e orientá-los em casos de violação de direitos. A Redes presta assistência à mãe baleada na boca em setembro.

— Ela saiu de casa no meio do tiroteio porque a escola telefonou para que fosse pegar a filha. Hoje, está traumatizada, não quer falar com ninguém — disse Lidiane.

Em Paciência, encravada na Favela do Aço, onde há disputa entre tráfico e milícia, a Escola Municipal Haydea Vianna Fiúza de Castro se mantém aberta para receber alunos assustados em dias de conflito. As aulas só começam depois das 9h30m. Antes, jogos de totó e pingue-pongue tentam amenizar o clima de medo.

— Aqui dentro, mesmo que a situação do lado de fora esteja tensa, tentamos manter a calma. Nossa ideia é a de que a escola é um lugar seguro. Precisamos manter as crianças aqui dentro. É praticamente uma terapia. Abraçamos os alunos, deixamos que eles contem o que aconteceu. Sondamos as crianças para saber se vamos manter o plano de aula — diz a diretora Patrícia Gomes de Azevedo.

Um dos coordenadores do Sepe, Eduardo Moraes, professor em Manguinhos, conta como é difícil lidar com o terror enquanto se ensina:

— Ficamos na sala de aula ouvindo os tiros. É muito estressante. Uma vez, pouco antes da ocupação de Manguinhos (pela PM), uns quatro ou cinco policiais invadiram o pátio da escola com metralhadoras. A sorte foi que não houve confronto.

A Secretaria de Segurança não quis se pronunciar, alegando que o assunto é operacional. Já a PM informou que tem normas para avaliar o risco das operações e estabelecer medidas para proteger a população.

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Emoções perversas

Por Ilona Becskeházy *

Os alunos brasileiros frequentemente estão expostos a dois tipos de contingências com potencial para por em risco seu direito à educação: a privação do ambiente letivo/pedagógico e o estresse emocional.

A privação do ambiente letivo pode ser causado por desastres naturais, greves, absenteísmo docente, absenteísmo discente, violência no entorno e no interior das escolas e infraestrutura de baixa qualidade, por exemplo. As escolas públicas brasileiras, de maneira geral, estão sujeitas a esses tipos de evento com uma frequência muito maior do que seria aceitável.

O estresse emocional é mais frequentemente subsidiário da pobreza, mas não é exclusividade dela. Violência e negligência doméstica, violência urbana descontrolada, bullying, corpo docente frágil, fome e dificuldades de aprendizado podem fazer do processo de apendizado uma trajetória impossível.

As duas juntas certamente o fazem. Prover a todos os alunos brasileiros ambientes educacionais competentes, acolhedores e estáveis é uma obrigação moral do país.

* Mestre em educação e consultora

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Com desempenho à prova, chances desiguais

Mães buscam crianças depois de escolas municipais de Santa Cruz fecharam as portas antes do horário por causa de tiroteios - Custodio Coimbra / Agência O Globo (27/11/2015)

O garoto do Ciep na Maré sonha ser músico. O colega de turma, chef de cozinha. Duas outras amigas querem ser médica e professora. Enquanto o menino de Anchieta, numa escola perto das comunidades Final Feliz e Parque Esperança, pretende se tornar “confeiteiro, porque ganha melhor e faz bolos bonitos”. Para muitos dos alunos de colégios em áreas conflagradas do Rio, no entanto, esse futuro pode se mostrar mais distante e difícil de construir. Na média, nas 32 escolas municipais de ensino fundamental que mais tiveram aulas suspensas este ano devido à violência, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb, que avalia a qualidade do ensino no país) fica abaixo do obtido pela rede da prefeitura. Há exceções, mas poucas, como mostra o terceiro dia da série “O futuro na linha de tiro”.

Dos 32 colégios (cerca de 10% dos 310 que fecharam ao menos uma vez em 2015 por causa dos confrontos), 22 tiveram as turmas de 5º ano do ensino fundamental avaliadas em 2013. Em média, a nota deles foi 4,7 — contra 5,3 do conjunto de unidades municipais. Já para para o 9º ano do ensino fundamental, as 12 escolas avaliadas da lista alcançaram 3,9 — frente à nota 4,4 da rede pública da prefeitura.

— Este ano nem sei quantas vezes meus filhos não foram à escola por causa de tiroteios. Só Deus para guardar a gente. Claro que essa situação atrapalha no estudo. É difícil aprender assim. Quase nunca há reposição das aulas perdidas — diz uma moradora do Cesarão, em Santa Cruz, mãe de crianças nas duas escolas que fecharam no bairro semana passada devido a conflitos.

IMPACTO DO AMBIENTE EXTERNO

Na relação das escolas que mais fecharam este ano, é de um Ciep do Cesarão o pior Ideb para o 5º ano: 3,7. Já num Ciep próximo às comunidades do Chapadão e da Lagartixa, em Costa Barros, a nota em 2013 foi 4, contra 5,4 da própria escola dois anos antes.

Nesse contexto, para Priscila Cruz, diretora-executiva do movimento Todos pela Educação, estudos acadêmicos têm mostrado que o fator socioeconômico do aluno é o que mais impacta no seu desempenho escolar. O clima de colaboração da escola, segundo ela, também tem relação direta com o aprendizado.

— As escolas em áreas de risco acabam somando os dois fatores. Geralmente, estão em locais pobres. E o ambiente externo de violência, muitas vezes, afeta negativamente o clima da escola. São alunos brigando com alunos e com professores. Há muitos conflitos entre eles, o que atrapalha o aprendizado — diz ela, defendendo que essas unidades deveriam receber investimentos maiores do que as demais.

Do ranking das escolas que mais fecharam, só duas igualaram ou superaram a média da rede no Ideb para o 9º ano. O mesmo ocorreu com outras cinco no índice para o 5º ano. O mais alto, nessa relação, foi o do Ciep 1º de Maio, em Antares: nota 6. O diretor da escola, Ocimar Nascimento, atribui os bons resultados ao compromisso da equipe. São 678 alunos, 34 professores e 13 funcionários na linha de tiro. Este ano, um projétil foi parar até no corredor onde eles costumam se proteger.

PROJETO NÃO INCORPORA NOVAS ESCOLAS DESDE 2009

Para tentar melhorar os resultados de escolas em áreas de risco, a Secretaria municipal de Educação criou, em 2009, o projeto Escolas do Amanhã, voltado para 155 unidades localizadas, à época, em áreas conflagradas. Hoje, segundo a atual secretária da pasta, Helena Bomeny, apenas oito desses colégios não alcançaram as metas. Muitas, porém, ficam em regiões que contam atualmente com Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Desde então, novas escolas não foram incorporadas ao projeto.

— Acompanhamos as 155 escolas. Mas a maior intervenção é nas oito que não alcançaram a média da rede — diz Helena.

Já o secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, diz preferir ver “pessoas sem aula” do que na mira de traficantes.

— Se for necessário, as aulas têm que ser suspensas. Não podemos permitir que homens armados fiquem na frente das escolas, muitas vezes escondendo armas dentro dos colégios. Então, as operações têm que ser feitas e vão continuar ocorrendo.

Alberto Aleixo, um dos fundadores da ONG Redes da Maré, pensa diferente:

— Os confrontos só agravam a situação, pois paralisam as aulas e aumentam a evasão. E qual será o futuro desses jovens?

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Educar em áreas de conflito

Por Claudia Costin*

Há pouco mais de seis anos, lançamos, no Rio, um programa destinado a assegurar o direito de aprender das crianças e jovens em áreas de conflito, em sua maioria, favelas então sob controle do tráfico, com o nome de “Escolas do Amanhã”. O programa caracterizava-se como ação afirmativa para escolas em que os alunos precisavam mais de apoio, dada a violência do entorno e a fragilidade de famílias.

Dentro dos recursos disponíveis, priorizamos estas unidades na lotação de professores, no reforço escolar, nas atividades de pós-escola, em equipamentos e infraestrutura. Para tanto, passamos a pagar mais para seus professores, criamos oficinas de Artes e Esportes e acompanhamos de perto a aprendizagem em cada uma delas. Incluímos um projeto inovador de ensino de Ciências e um investimento em capacitação dos diretores em mediação de conflitos. A Educação não pode tudo sozinha, mas é capaz, dentro dos seus limites, de apoiar fortemente a aprendizagem dos alunos. Pobreza e vulnerabilidade não são destinos inapeláveis.

Em apenas dois anos, os resultados apareceram: apesar da persistência de déficits de aprendizagem, o aumento de desempenho no Ideb foi de 33,3% nas Escolas do Amanhã no 9º ano, comparado com 22% de aumento no restante da rede. Houve também uma diminuição de mais de 37% na evasão escolar. Mas os desafios persistem. É muito difícil ensinar em zonas de conflito. Para tanto, um apoio contínuo às escolas e suas equipes deve ocorrer.

É essa perspectiva que procurei trazer, com as devidas mediações, a algumas situações que vivemos hoje no Banco Mundial, como a situação da alunos no Afeganistão, no nordeste da Nigéria ou as inúmeras crianças refugiadas fugindo de áreas de conflito ou estudando em países em situação de fragilidade e guerra. Todos podem aprender!

*Ex-secretária de Educação e diretora global de educação do Bird