• Gabriela Loureiro e Helena Vieira
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 (Foto: Julia Rodrigues)

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Valentim* nasceu em Colorado, no interior do Paraná, há 16 anos. Desde pequeno, seu comportamento fugia do padrão esperado para um menino: gostava de brincar de bonecas, preferia andar com garotas e às vezes vestia as roupas de suas tias. Não pegou muito bem na família. Era comum Valentim ouvir coisas como “vira homem” e “viadinho” durante a infância. O assédio machucava, mas, ao mesmo tempo, deixava-o confuso. Como ele poderia ser gay se também se sentia atraído por meninas? Como só tinha referências de homo e heterossexualidade, Valentim acabou se definindo como gay. Até que a modelo transgênera Andreja Pejic veio ao Brasil para um desfile e foi entrevistada por uma rede de TV aberta. Na época, ela se apresentava como um menino andrógino. A identificação foi imediata, e Andreja tornou-se sua grande referência.

Valentim começou a pesquisar sobre a modelo na internet e conheceu a página Travesti Reflexiva, no Facebook. Foi quando entendeu o que é gênero e a diferença entre este e a orientação sexual. Entrou em contato com outras pessoas trans nas redes sociais e descobriu sua identidade: não binário e bissexual. Assim como a cantora Miley Cyrus e a atriz Kristen Stewart (que têm falado bastante sobre o tema na imprensa), Valentim não quer saber de classificações homem x mulher ou gay x hétero. E ele não está sozinho: segundo pesquisa do instituto norte-americano YouGov, 46% dos jovens entre 18 e 24 anos se definem heterossexuais, e outros 6% se dizem homossexuais. Isso significa que 48% das pessoas estão fora desse espectro. É que a identidade de gênero é um pouco mais complexa do que nos ensinaram: diz respeito sobre quem somos, mas é regulada por instituições sociais e por nossa necessidade de categorizar indivíduos e suas atividades.

O conceito de transgênero ainda é muito complexo para a maioria das pessoas, que não entendem o que isso tem a ver com identidade. Muitos acreditam que transexuais são apenas pessoas que nasceram no corpo errado, um homem preso no corpo de uma mulher ou vice-versa. Outros acham que para ser considerado transgênero é preciso ter feito cirurgia de mudança de sexo. Quando se fala em transexualidade há uma imensa confusão entre identidade de gênero e orientação sexual. É comum pensar que mulheres trans e travestis são “tão gays que viraram mulher” — o que, obviamente, não é verdade.

"Sexo biológico é diferente de gênero e orientação sexual. O gênero é a identidade do que é considerado feminino ou masculino. Já a orientação sexual diz respeito ao tipo de atração que a pessoa sente""

Sexo biológico é diferente de gênero e orientação sexual. O primeiro é referente ao órgão sexual do corpo humano. O gênero é a identidade do que é considerado feminino ou masculino, que não é universal e pode variar ao longo do tempo. Já a orientação sexual diz respeito ao tipo de atração, que pode ser por pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto, os dois ou nenhum. Ou seja, uma pessoa transexual não é necessariamente homossexual. Na verdade, transgênero é um termo que abriga todos que não se identificam com o gênero atribuído a eles no nascimento e também quem não se identifica com gênero de forma alguma, que é neutro, fluido. Como Valentim. “Não nasci no corpo errado, a sociedade é que tem uma leitura errada dele”, diz.

Bruce Jenner era um jogador de futebol universitário quando seu treinador o convenceu a tentar o atletismo. Depois de muito treinamento, competiu pelos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de 1976, quando ganhou a medalha de ouro na prova de decatlo. O último atleta a levar o título, quatro anos antes, era um soviético. Em meio à Guerra Fria, Jenner foi aclamado como o grande herói norte-americano. Foi convidado a dar palestras motivacionais para inspirar seus compatriotas durante o conflito. Mas o maior símbolo vivo do sonho norte-americano era só uma encenação.

Jenner, na verdade, sempre foi uma mulher presa no corpo de um homem — no caso, o de um atleta famoso no mundo inteiro. Apenas recentemente ele anunciou que é transexual e, na capa da edição de julho da revista Vanity Fair, declarou: “Me chame de Caitlyn”. Em várias partes do mundo, transexuais ganham espaço na mídia, como a modelo brasileira Lea T e a ex-BBB Ariadna. Se por um lado isso ajuda a aumentar a visibilidade para o tema, por outro cresce a polêmica: a palavra “gênero” virou sinônimo de maldição para grupos religiosos conservadores. No Brasil, nunca se falou tanto no assunto como nos últimos meses, depois que o Plano Nacional de Educação entrou em votação e o termo “gênero” foi banido do texto após discussões acaloradas no Congresso.

 (Foto: Julia Rodrigues)

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CORPOS BINÁRIOS

Durante milhares de anos, as hijras — o terceiro gênero, composto por transgêneros, eunucos e intersexos — foram líderes espirituais e políticos que celebravam casamentos, abençoavam crianças e ocupavam posições de prestígio na justiça indiana. Elas estão presentes em textos sagrados do hinduísmo, como o Mahabharata e o Kama Sutra. Foi assim até que a Grã-Bretanha colonizou a Índia e adotou uma lei, em 1897, que estabelecia que ser hijra era um crime. Desde então elas foram marginalizadas e obrigadas a mendigar ou se prostituir para sobreviver — só voltaram a conquistar seus direitos no ano passado, quando o governo indiano instituiu a categoria terceiro gênero nos documentos oficiais e as cotas de emprego e de educação para o grupo.

As hijras são uma prova de que gênero tem muito mais a ver com a sociedade na qual vivemos do que com nossa identidade em si. E trazem à tona o debate: só há uma forma de ser homem ou mulher? Ou há uma multiplicidade de masculinidades e feminilidades possíveis?

“É menino ou menina?” costuma ser a primeira pergunta depois do anúncio de uma gravidez. Se a criança não se adaptar ao que é esperado do comportamento de uma menina ou menino, é provável que passe o resto da sua vida ouvindo a mesma pergunta — só que em forma de xingamentos e ataques. Não é por acaso que essa é a primeira pergunta feita a respeito de um ser humano, e também uma das mais importantes. Mesmo quando não se fala abertamente sobre isso, é como se só existissem dois grupos de pessoas: o dos homens e o das mulheres.

Ao nascer, você é automaticamente colocado num dos dois, baseado nos seus órgãos genitais. Se tiver um pênis é menino, se tiver uma vagina, menina. Dali em diante, sentirá a pressão para se conformar com as características designadas a você. Meninos gostam de azul, jogam videogame e são agressivos, enquanto meninas gostam de rosa, brincam de boneca e são naturalmente passivas e emotivas. Duas categorias para toda a raça humana. Será o bastante? De acordo com os estudos de gênero, um campo de pesquisa acadêmica que surgiu dos estudos feministas e pós-estruturalistas dos anos 1960, a resposta é não.

 (Foto: Julia Rodrigues)

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Ainda ligamos gênero ao sexo biológico e nos acostumamos a pensar que isso é natural. No âmbito da patologia , os indivíduos que fugiam dessa naturalidade foram chamados de “transexuais” — ou seja, desviantes. Recentemente, com os estudos de gênero, começaram a pensar que essa designação inicial e tida como “natural” é também arbitrária. Não há uma naturalidade exclusiva na relação gênero-genital. O que existe é uma identidade, uma forma de se reconhecer.

Ela pode ser um sentimento de pertencimento, no caso da pessoa cisgênero (aquela que se reconhece com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer), ou uma identificação diferente, no caso da trans, que pode se reconhecer com o gênero oposto, com nenhum gênero ou com uma experiência de si que escapa ao sistema binário homem/mulher. Mas nem toda pessoa que não se reconhece como cisgênero é trans, já que existem nuances e variações de pertencimento. É o caso da “queer”, classe de pessoas que não se reconhecem em nenhum extremo (veja o dicionário no fim do texto).

GÊNERO E DISCIPLINA

Alex era um menino de 8 anos da periferia do Rio de Janeiro que gostava de dança do ventre e de lavar louça. Seu pai, Alex André Moraes Soeiro, de 34 anos, não aprovava o jeito afeminado da criança e tentava corrigi-lo. As surras eram recorrentes e tinham como objetivo ensinar o filho a andar como homem. Como o pequeno não chorava enquanto apanhava, o pai batia ainda mais. Um dia, a criança se recusou a cortar o cabelo para ir à escola e o pai resolveu acabar com aquela desobediência. De tanto apanhar, o fígado de Alex foi perfurado e ele sofreu uma hemorragia interna. Chegou ao hospital morto, com hematomas pelo corpo todo e sinais de desnutrição.

Alex pagou com a vida o preço de não se adequar às normas de gênero impostas pela sociedade e aplicadas de forma implacável pelo próprio pai. Ele não foi o único. Em 2014, 326 pessoas foram assassinadas no Brasil por não se encaixarem nessas regras, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB). É um número 4% maior do que o registrado no ano anterior. Entre as vítimas, 134 gays, 134 travestis, 14 lésbicas, 3 bissexuais, 7 amantes de travestis e 7 heterossexuais confundidos com homossexuais. A mensagem que essas estatísticas sobre violência contra a população LGBT passa é clara: se você desobedecer às regras de gênero vai sofrer uma punição física e pode até morrer. É o poder coercitivo de gênero como forma de policiar as pessoas, de acordo com Judith Butler, uma das mais respeitadas filósofas de gênero da atualidade.

Judith parte das premissas do filósofo francês Michel Foucault para explicar como as regras de gênero são performáticas e não passam de fenômenos repetidos para simular uma ideia de naturalidade. Foucault disse que a disciplina é um instrumento de dominação e controle para domesticar comportamentos divergentes. Com o Iluminismo, várias instituições de assistência e proteção aos cidadãos — família, hospitais, prisões e escolas — foram consolidadas como mecanismos de controle. Mas o filósofo não acreditava que o poder de coerção tinha uma só origem, como o Estado, e sim que surgia de diversas fontes: são os micropoderes que transformam as condutas das pessoas.

Uma das formas de exercer poder é por meio de discursos. Assim, as piadas, o modo como nos referimos a alguém e até os xingamentos contribuem para normalizar alguns comportamentos e estigmatizar outros — exemplo: usar a expressão “que gay!” quando alguém demonstra seus sentimentos ou a palavra “viado” ou “travesti” como xingamento. Judith utiliza essa premissa do discurso para tentar dissolver a dicotomia sexo versus gênero. Para ela, vivemos numa ordem compulsória que exige coerência total entre sexo, gênero e desejo sexual, que são obrigatoriamente heterossexuais. A autora sugere, então, a contestação das expressões de gênero, já que a identidade é formada com base na repetição de atos performativos, ou seja, atitudes e gestos que constroem o que é feminino e masculino.

 (Foto: Julia Rodrigues)

(Foto: Julia Rodrigues)

FORA DOS LIVROS

Por mais que a diferenciação de gêneros pareça natural, ela não é. Boa parte dessa explicação está no papel da medicina na Europa no final do século 18. Com a Revolução Industrial, a população europeia começou a se concentrar em áreas urbanas, migrando do campo para as cidades. A concentração de pessoas de diferentes regiões num mesmo lugar provocou surtos e doenças, que alavancaram a importância e o desenvolvimento da medicina. Áreas como psiquiatria, sexologia e psicanálise viram nisso a oportunidade de categorizar doenças para atrair mais pacientes aos consultórios. Assim, os especialistas substituíram os padres no papel de guardiões das práticas sexuais e determinaram os comportamentos aceitáveis e os patológicos. Tudo que não tinha fins reprodutivos foi considerado degeneração: homossexualidade, transexualidade, masturbação, prostituição.

"Ainda hoje, a transexualidade é considerada um transtorno mental pela medicina, como era a homossexualidade até os anos 1970.""

Ainda hoje, a transexualidade é considerada um transtorno mental pela medicina, como era a homossexualidade até os anos 1970. “Os critérios ditos biológicos (anatomia, hormônios, cromossomos, glândulas) são contraditórios, às vezes incoerentes. É só ver como os endocrinologistas forçam um antagonismo hormonal entre testosterona e estrogênio que não existe. Essas explicações de transexualidade estão impregnadas de hormônios como os fetos estão grudados ao ventre de suas mães. E não estamos preocupados com a origem biológica da heterossexualidade”, disse a GALILEU Marie-Hélène Bourcier, professora da Universidade de Lille II e uma das principais teóricas queer da França.

Mais ou menos no mesmo período, cientistas começaram a definir as principais diferenças entre homens e mulheres com base no conhecimento da época, que era fortemente marcado pelas políticas de gênero — ou seja, a dominação do feminino pelo masculino. Não é por acaso que a primeira figura de um esqueleto feminino só apareceu em um livro em 1759, com o objetivo de deixar evidente a diferença entre homens (fortes e com o crânio maior que o feminino) e mulheres (muito mais frágeis).

Pouco mais de um século mais tarde, o biólogo escocês Patrick Geddes usou a fisiologia celular para explicar que mulheres são mais passivas e conservadoras do que os homens, que seriam mais ativos e passionais. Segundo Thomas Laqueur, conhecido sexólogo norte-americano, não há dúvidas de que a criação de teorias sem embasamento sobre diferenças entre os sexos influenciou o progresso científico, bem como as interpretações dos experimentos.

Ainda hoje transbordam estudos supostamente científicos que garantem explicar por que homens e mulheres se comportam de determinada maneira. Nem todos são descartáveis, claro, mas é interessante questionar qual é o interesse por trás dessas pesquisas e suas influências históricas. A produção de categorias binárias e estáveis consolida relações de poder entre elas: homem sobre mulher, heterossexual sobre homossexual etc.

O binário é uma projeção arbitrária do “dimorfismo” corporal, ou seja, a ideia de que existem dois organismos distintos na espécie humana, um com pênis, outro com vagina. Mas essa taxonomia biológica é falha, pois ela é incapaz de dar conta dos corpos intersexos, aqueles que nascem com pênis e vagina, ou com genitália ambígua/indefinida. Enquadrar as pessoas em gêneros, desejos e categorias estáveis é também uma forma de castração. Quando nos limitamos a isso, reduzimos e aniquilamos as possibilidades múltiplas de vivência do prazer e do desejo. E, claro, marginalizamos os desviantes.

 (Foto: Revista Galileu)

(Foto: Revista Galileu)

VIDA DE DESVIANTE

Liége Martins é uma jovem transexual de 19 anos que mora em uma favela no Rio de Janeiro e iniciou em segredo um tratamento hormonal. Cresceu com a mãe e a irmã, com quem dividia as brincadeiras sem estereótipos de gênero. Tem dificuldades para sobreviver em um ambiente tão hostil e escasso de possibilidades como a periferia carioca. Por isso, criou um grupo no Facebook chamado Cismitério, que reúne milhares de pessoas trans, principalmente jovens, que ainda estão em período de descoberta e querem trocar experiências sobre corpo e identidade.

“Ninguém contrata travesti, e às vezes nem sequer estudo elas têm, mas precisam de um emprego cada vez mais cedo para ajudar ou sustentar a família, custear o mínimo que puder para fugir do iminente futuro de prostituição”, disse Liége a GALILEU. Segundo a Associação Nacional das Travestis (Antra), 90% das travestis e transexuais brasileiras se prostituem. Há quem pense que essa é uma escolha quando, na verdade, a comunidade TT (Travestis e Transexuais) sofre imensa discriminação no mercado de trabalho — o que resta é a prostituição e empregos como atendentes de telemarketing ou cabeleireiras.

Rodrigo Zanini, 22 anos, não é modelo. Trabalha com moda, é homossexual e se veste de forma andrógina: seu visual é feminino, mas ele procura mesclar com roupas masculinas (Foto: Julia Rodrigues)

Rodrigo Zanini, 22 anos, não é modelo. Trabalha com moda, é homossexual e se veste de forma andrógina: seu visual é feminino, mas ele procura mesclar com roupas masculinas (Foto: Julia Rodrigues)

Bernardo Mota foi designado menina quando nasceu, mas desde pequeno fugia dos papéis ditos femininos ao jogar bola e empinar pipa. Quando se descobriu trans, contou à família e foi massacrado: tentaram reprimi-lo, foi alvo de piadas e insultos verbais. Sentiu-se expulso de casa mesmo sem ninguém tê-lo mandado embora. Sofreu crises depressivas por ser ridicularizado e, desamparado, tentou suicídio. Rompeu relações com a família e mudou-se de Brasília, onde seus pais moram até hoje, para Uberlândia, uma das poucas cidades do Brasil que disponibilizavam acompanhamento para transição hormonal.

Assim que chegou à cidade, esse ambulatório foi suspenso, o que o fez se hormonizar por conta própria, com base em informações encontradas na internet e com medicamentos clandestinos. Ativista trans bissexual e membro do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrata), Mota tem sofrido para conseguir uma vaga no mercado de trabalho. “Desde que saí de casa fiz entrevistas para todo tipo de emprego, levava meu currículo com meu nome social e passava em todas as fases, até mostrar meus documentos, onde consta o nome de registro. A vaga desaparecia. Passei por no mínimo dez entrevistas em que fui dispensado quando souberam que sou transgênero”, conta.

O que aconteceu com Bernardo no mercado de trabalho e na família é chamado de transfobia — aversão à transexualidade e preconceito. Infelizmente, no Brasil não há legislação que a criminalize, o que significa que Bernardo não pode tomar nenhuma medida judicial contra o preconceito. Em geral, a situação de direitos de indivíduos trans é precária no país. Não existe legislação específica que reconheça a identidade de gênero, apesar de haver um projeto de lei para isso: a Lei João Nery, de autoria do deputado federal Jean Willys (PSOL/RJ) em parceria com a deputada Érika Kokay (PT/DF). O projeto reconhece a identidade de gênero como um direito e o tratamento de acordo com sua identidade pessoal. [Atualização: em abril de 2016, a presidente Dilma Roussef assinou um decreto que permite travestis, mulheres transexuais e homens trans a usarem o nome social em todos os órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais. E serem respeitadas de tal maneira pelos funcionários.]

Outro projeto de lei, o PL 8.032/2014, da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), prevê a aplicação da Lei Maria da Penha às pessoas transexuais que se identifiquem como mulheres. É possível citar também outros avanços, como a alteração de nome conforme o gênero sem a obrigação de cirurgia de transgenitalização, burocracia imposta anteriormente, e a publicação da Resolução 12/2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos LGBT, que determinou o reconhecimento do uso de nome social em documentos, formulários e sistemas de informação de escolas e universidades, além da utilização de banheiros, vestiários e uniformes, segundo a identidade de gênero. Ainda assim, sem um debate amplo sobre discriminação de gênero, o tabu continua impedindo que esses avanços saiam do papel no Brasil.

“O grande problema nesse processo é que as instituições educacionais pouco investem na educação e orientação sobre o real objetivo do nome social. Tal afirmação é corroborada com os diversos casos em que professores e servidores de instituições educacionais não estavam preparados para atender e orientar outros alunos conforme a mudança, causando grande constrangimento”, diz Wilker Cerqueira, cientista jurídico especializado em direitos humanos.

Davi nasceu menina, mas aos 7 anos molhou todas as suas roupas cor-de-rosa para não ter de usá-las. Hoje é bem andrógino e gosta de pessoas, não importa se homens ou mulheres (Foto: Julia Rodrigues)

Davi nasceu menina, mas aos 7 anos molhou todas as suas roupas cor-de-rosa para não ter de usá-las. Hoje é bem andrógino e gosta de pessoas, não importa se homens ou mulheres (Foto: Julia Rodrigues)

No final do século 19, o biólogo Patrick Geddes disse que “o que foi decidido entre protozoários pré-históricos não pode ser anulado por leis do Parlamento”. Será mesmo que o ser humano, única espécie conhecida capaz de criar o fogo e desenvolver tecnologias de exploração espacial, é escravo de protozoários? Ou de definições biológicas e religiosas de anos atrás, focadas na diferença e não na semelhança? Se a espécie humana tem um cérebro altamente desenvolvido, com capacidades como raciocínio abstrato, linguagem e introspecção, não faz muito sentido continuar tentando decifrar o código dos comportamentos sexuais com base em pesquisas de laboratório que tentam explicar como as pessoas funcionam na média. Ou insistir que só existe preto e branco, e não nuances de tudo. Se é apenas um gene a cada 100 mil que diferencia homens de mulheres, por que ainda focamos as diferenças? A natureza humana pode ser muito mais fluida e flexível do que nos acostumamos a pensar.

ABC DO GÊNERO As palavras usadas nas discussões sobre gênero podem ser incompreensíveis. Em caso de dúvida, recorra a este glossário:

ASSEXUAL: Pessoa que não sente atração sexual por ninguém nem vontade de fazer sexo

CISGÊNERO: Pessoa que se identifica com o gênero designado a ela no nascimento. Exemplo: nasceu com vagina, foi designada mulher e assim se identifica

CISSEXISMO: Ideias e discursos segundo os quais o gênero é definido pelo corpo, não pela identidade

CROSSDRESSER: Pessoa que usa roupas associadas ao gênero diferente daquele designado a ela na hora do nascimento

DRAG QUEEN E DRAG KING: Artista performático(a) que se veste com roupas femininas (queen) ou masculinas (king) para apresentações, independentemente do gênero

HOMOFOBIA: Repulsa e preconceito contra pessoas homossexuais

INTERSEXUAL: Pessoa que nasceu com genitália ambígua, antigamente chamada de hermafrodita (essa palavra não se aplica à espécie humana)

NB: Não binária, ou seja, neutra — não se identifica com o gênero masculino nem com o feminino

PANSEXUAL: Aquele que sente atração sexual por pessoas, independentemente do gênero

QUEER: Originalmente era uma ofensa, já que em inglês significa “estranho”, mas passou a ser um termo de afirmação política de todos os “dissidentes” — isto é, aqueles que não se encaixam na categoria “heterossexual e cisgênero”

TRANSGÊNERO / TRANSEXUAL: Pessoa que não se identifica com o gênero determinado no nascimento. Exemplo: foi designada como homem, mas se identifica como mulher

TRANSFOBIA: Preconceito e discriminação contra pessoas trans, aversão

TRAVESTI: Definição em disputa. É sinônimo de transexual, mas marginalizado. Ou um terceiro gênero. O termo é usado como afirmação política em razão do estigma enfrentado pelas travestis no país

DESCONSTRUÇÃO BINÁRIA Sexo, gênero, sexualidade e identidade são coisas diferentes e podem variar num espectro bastante amplo. Entenda:

Fonte: It's Pronounced Metrosexual.com; Ícone: LVIS/ The Noun Project (Foto: Revista Galileu)

Fonte: It's Pronounced Metrosexual.com; Ícone: LVIS/ The Noun Project (Foto: Revista Galileu)

COMO LIDAMOS Não existe uma forma correta de ajudar pessoas trans* na família, no grupo de   amigos ou na relação amorosa, mas algumas dicas podem ajudá-lo a ser mais empático:

1. Não abandone. Pode ser difícil de entender o que é transgênero no início, mas acredite: a transição para a pessoa trans* é muito mais. Respeite-a incondicionalmente

2. Se você não entende as necessidades dela, busque informações a respeito e, se possível, procure profissionais aliados à causa

3. Pergunte como a pessoa prefere ser chamada — ou seja, seu nome social — e quais pronomes usar (por exemplo “seu” ou “sua”, “ele” ou “ela”). E passe a se referir a ela assim

4. Não faça suposições sobre a orientação sexual da pessoa trans*. Gênero diz respeito a identidade; orientação sexual trata-se de por quem a pessoa se sente atraída

5. Jamais pergunte se ela fez cirurgia de mudança de sexo. É indelicado. Se a pessoa se sentir confortável, falará a respeito. Entenda que terapia de hormônios e cirurgia não são algo necessário para a transição de todos

6. Apoie iniciativas de inclusão, como banheiro neutro, escolha de nome em documentos oficiais, escolha de tipo de uniforme etc. E passe as informações que aprendeu adiante, quando o assunto for transexualidade