Cultura

Um século de comédia no cinema brasileiro

Grande Otelo e Zé Trindade, cujos centenários são comemorados em 2015, são ícones de uma tradição de humor que se mantém viva no país

Grande Otelo
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Jorge Rodrigues/18-10-1983
Grande Otelo Foto: / Jorge Rodrigues/18-10-1983

RIO — Eram dois malandros diferentes, o ingênuo e o sacana. Grande Otelo era negro e baixo, tinha uma voz histriônica e fazia um tipo de expressões cativantes. Zé Trindade era careteiro, usava um bigode caipira e expunha seu desejo através de bordões célebres como “Mulheres, cheguei!”.

Em comum, o mineiro Otelo (1915-1993) e o baiano Trindade (1915-1990), ambos com centenários comemorados em 2015, marcaram o humor brasileiro, deixaram um legado para gerações de atores e mostraram um caminho para encantar o público que se mantém vivo no cinema nacional.

— O Zé Trindade tinha força na voz. Ele falava umas coisas que se ditas por outra pessoa não teriam graça. Já o Grande Otelo era ágil, elétrico na palavra e no corpo, e fez uma dupla incrível com meu ídolo Oscarito — diz Renato Aragão, o Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumbbo, estrela ao lado de Dedé, Mussum (1941-1994) e Zacarias (1934-1990) de dezenas de filmes do grupo Os Trapalhões. — Aprendemos muito com aquela turma, mas o cinema dos Trapalhões era diferente, era uma coisa mais de aventura. As épocas foram mudando, e cada um encontrou seu estilo.


Zé Trindade no filme “Marido de mulher boa”
Foto: Arquivo
Zé Trindade no filme “Marido de mulher boa” Foto: Arquivo

Na época áurea de Grande Otelo e Zé Trindade, o que prevalecia eram as chanchadas, um gênero tipicamente carioca que misturava cenas cômicas com musicais. As chanchadas foram popularizadas pela produtora Atlântida e prosseguiram até a década de 1960, com a atuação de outras empresas, como a Cinédia e a Herbert Richers — a última hoje mais lembrada como um popular estúdio de dublagem e legendagem, aquele da “Versão brasileira: Herbert Richers”.

— Quando eu era pequena, o Grande Otelo aparecia lá em casa para falar com meu pai e eu dizia que só iria chamá-lo se ele fizesse caretas — diz Alice Gonzaga, diretora da Cinédia, companhia fundada por seu pai, Adhemar Gonzaga, em 1930. — Uma vez o Otelo me convidou para uma festa no apartamento dele. Aí, quando cheguei lá, não tinha ninguém. Não havia festa alguma.

Outros comediantes célebres do período foram Oscarito (1906-1970), Ankito (1924-2009), Dercy Gonçalves (1907-2008), Costinha (1923-1995), Zezé Macedo (1916-1999) e Ronald Golias (1929-2005). Jô Soares estreou no cinema com uma participação em “Pé na tábua” (1957), feito pela Herbert Richers a partir de uma história de Chico Anysio (1931-2012), e depois fez sucesso como um agente secreto em “O homem do Sputnik” (1959), de Carlos Manga. Hugo Carvana (1937-2014), que viria a dirigir e protagonizar “Vai trabalhar, vagabundo” (1973), um dos maiores clássicos da comédia nacional, também começou nas chanchadas. Já em São Paulo, o paulistano Mazzaropi (1912-1981) se destacava em filmes como “Jeca Tatu” (1959).

Nascido em 18 de outubro, em Uberlândia, Otelo começou a carreira no teatro de revista, mas logo migrou para o cinema, onde fez sua fama, tanto nas chanchadas como fora delas. Ele esteve em “Rio Zona Norte” (1957), de Nelson Pereira dos Santos, “Assalto ao trem pagador” (1962), de Roberto Farias, “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” (1976), de Hector Babenco, e até “Fitzcarraldo” (1982), de Werner Herzog. Foi o protagonista de “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), talvez seu papel mais lembrado.

Pela Atlântida, Otelo atuou em filmes como “Carnaval no fogo” (1949), em que interpretou uma das sequências mais hilárias do cinema brasileiro, aquela em que Oscarito aparece fantasiado de Romeu, olha para cima e se declara para um Otelo travestido de Julieta na sacada cenográfica de um teatro. Depois, fez novelas e programas na TV, como o “Chico Anysio Show”.

— Não sei se o humor do Grande Otelo teria hoje a repercussão que teve, por causa da inocência. Mas o grande ator que ele era certamente faria sucesso — diz Sérgio Cabral, autor de “Grande Otelo: uma biografia” (editora 34), de 2007. — Para mim, ele significou a vitória do povo. Era negro, feio, baixinho. E se mostrou um gênio.

Zé Trindade, por sua vez, teve sua origem no rádio e se popularizou pelo jeito mulherengo. Nascido em 18 de abril de 1915, em Salvador, Trindade tinha nos bordões sua marca registrada. Quando ele dizia “É lamentável”, “Meu negócio é mulher” ou “É chato ser gostoso”, qualquer um gargalhava.

Sua carreira inclui os longas-metragens “Rico ri à toa” (1957), de Roberto Farias, e “Marido de mulher boa” (1960), de J.B. Tanko (1906-1993), além de participações em programas de TV, como o humorístico “Balança, mas não cai”, da TV Globo, e uma série de 25 discos. Curiosamente, o último filme de Trindade foi um drama: “Um trem para as estrelas” (1987), de Cacá Diegues, exibido no Festival de Cannes.

— O Zé Trindade era aquele baiano malandro, obcecado por mulheres. Ele fazia uma coisa com a boca, ria de um jeito irresistível. Era fantástico, um humor popular sem ser popularesco — lembra Marcelo Madureira, um dos integrantes do grupo Casseta & Planeta.


Os Trapalhões
Foto: Arquivo
Os Trapalhões Foto: Arquivo

Tanto Zé Trindade quanto Grande Otelo eram amados pelo público, mas nem sempre admirados pela crítica. Em seu ensaio “Revisão crítica do cinema brasileiro”, de 1963, Glauber Rocha (1939-1981) chamou as chanchadas de “pornografia de baixo preço”. O pensamento era compartilhado pela elite intelectual da época, abrindo espaço para se desenvolver o Cinema Novo.

— Nós carregamos no nosso DNA a história que caras como Grande Otelo e Zé Trindade construíram. E, como aconteceu com eles, nós também sofremos uma crítica por fazer humor — diz Leandro Hassum, de filmes como “Até que a sorte nos separe” (2012) e O candidato honesto” (2014), hoje o ator nacional que mais leva público aos cinemas. — Esse preconceito com o humor vai existir sempre. Por exemplo, é uma ignorância atroz rotular o que fazemos hoje como “nova chanchada”. A chanchada era genial, mas o que eu faço não é chanchada. Faço uma comédia de costumes.

Na esteira dos astros da chanchada, muitos humoristas se firmaram na filmografia brasileira. As aventuras dos Trapalhões levavam milhões aos cinemas entre as décadas de 1970 e 1980. No mesmo período, as comédias eróticas, não à toa conhecidas como pornochanchadas, também atingiam um público imenso em todo o país, mas foram ainda mais desprezadas pela crítica.

— Existe a cultura literária, a cultura cinematográfica, mas existe a cultura do bem-estar. É quando o cara entra no cinema desarmado mentalmente e assiste a um filme superficial, mas agradável, e sai feliz da vida. Quanto vale isso em termos antropológicos? — questiona Carlo Mossy, astro da pornochanchada, de filmes como “Quando as mulheres paqueram” (1971), “Com as calças na mão” (1975) e “Giselle” (1983).


Carlo Mossy e Vera Fischer em “Essa gostosa brincadeira a dois”
Foto: Arquivo
Carlo Mossy e Vera Fischer em “Essa gostosa brincadeira a dois” Foto: Arquivo

Assim como ocorreu com todo o cinema brasileiro, a produção de comédias foi praticamente interrompida no fim da década de 1980 e início dos anos 1990. Aos atores que queriam fazer comédia restavam a TV e o teatro. A “TV Pirata”, por exemplo, criada por Guel Arraes e Cláudio Paiva nos moldes dos programas do grupo inglês Monty Python, teve um elenco estreladíssimo, com Ney Latorraca, Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Denise Fraga, Guilherme Karan, Claudia Raia, Diogo Vilela, entre outros.

O gênero voltaria a fazer sucesso regular no cinema brasileiro apenas a partir da virada do milênio, com obras como “O auto da compadecida” (2000) e “Lisbela e o prisioneiro” (2003), ambas de Guel Arraes, “Os Normais — O filme” (2003), de José Alvarenga Jr., e “Se eu fosse você” (2006), de Daniel Filho.

Recentemente, porém, são as comédias que vêm garantindo o sustento do cinema brasileiro como indústria. No ano passado, apenas seis filmes brasileiros ultrapassaram a marca de 1 milhão de espectadores, todos esses comédias. Além de Leandro Hassum, essa nova safra vem sendo puxada por atores como Fábio Porchat e Paulo Gustavo. Estrela da série “De pernas pro ar” (2010), de Roberto Santucci, a goianiense Ingrid Guimarães é uma das poucas mulheres que fazem parte desse grupo de comediantes de sucesso no cinema.

— A mulher se sente representada, se identifica comigo, porque eu não faço uma mulher idealizada, faço a mulher comum — diz Ingrid, que também lamenta a forma como as comédias são vistas pela crítica cinematográfica. — É como se todos nós fizéssemos o mesmo tipo de humor. Há uma falta de respeito da crítica. Todos temos falhas, mas tem uma coisa que deveria ser respeitada: estamos trazendo a garotada de volta ao cinema brasileiro. Como faziam os grandes comediantes do passado.


O ator Leandro Hassum no filme "O candidato honesto"
Foto: Divulgação / Divulgação
O ator Leandro Hassum no filme "O candidato honesto" Foto: Divulgação / Divulgação

Para continuar seguindo o exemplo do passado, estão sendo preparadas homenagens a Zé Trindade e Grande Otelo. Na próxima sexta-feira, o Canal Brasil estreia a Mostra Centenário Zé Trindade, em que serão exibidos nove filmes do ator. Por outro lado, o produtor teatral Eduardo Barata está atrás de patrocínio para reencenar a peça “Zé Trindade: A última chanchada”, de Artur Xexéo. E a artista plástica Anayara Ricart, neta do ator, tem uma biografia pronta, que ela espera lançar até o fim do ano.

— Em casa, ele era muito sério. Ele não era de ficar fazendo piadinha — diz Anayara. — Mas todo mundo o adorava. Tem uma história engraçada de uma briga que ele teve com a Dercy num set. Ele chegou a pegar uma arma de espoleta e sair atrás dela. Eles ficaram anos sem se falar, mas depois fizeram as pazes.

Já para homenagear Grande Otelo estão em negociações, segundo seu filho José Antonio Prata, mostras na Caixa Cultural e no Centro Cultural Banco do Brasil.

— Também estamos tentando captar para fazer um filme e uma peça sobre ele — diz Prata, ator como o pai. — Eu aprendi muito com ele. Meu pai dizia que ator não pode ter pátria, cor ou sexo, porque você pode precisar ser muitas coisas a qualquer momento. Ele era assim.