Rio

Gari é especializado em recolher oferendas no Alto da Boa Vista

Além de funcionário da Comlurb, Alexandre é pai de santo, e encara trabalho com naturalidade

Alexandre Borges, que é espírita e tem sua casa de Santo, recolhe restos de despachos na subida do Alto
Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo
Alexandre Borges, que é espírita e tem sua casa de Santo, recolhe restos de despachos na subida do Alto Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo

RIO — O nome é de ator. O apelido, de cantor. Assim, seu santo não poderia ser outro que não o caçador de axé (energias) Oxóssi, orixá da fartura, ligado às artes. Conhecido como Emílio pelos colegas de profissão — por sua semelhança física com o músico Emílio Santiago, falecido este ano —, o gari Alexandre Borges, de 31 anos, é famoso na Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio (Comlurb) pelo trabalho especializado que desempenha no Alto da Boa Vista. Babalorixá federado (pertence à União umbandista dos cultos afro-brasileiros), pai Xande é o responsável pela limpeza dos muitos despachos arriados diariamente na região. Fonte de calafrios para alguns, o trabalho, que precisa ser desempenhado por ele e um verdadeiro mutirão da Comlurb no réveillon da Praia de Copacabana, é feito sem receios pelo gari-pai de santo no restante do ano. Ele considera a atividade apenas parte de suas obrigações profissionais — desde que feita com todo o respeito aos orixás.

— O medo é nenhum. Estou apenas fazendo o meu trabalho. Peço agô (licença) antes de limpar cada oferenda e deixo para retirar depois aquelas que ainda estão muito recentes. Desrespeito com os santos seria se eu chutasse as macumbas, fizesse piadas. Desde que feito com respeito, não há problema em limpar os despachos — afirma o pai de santo, há cinco anos funcionário da Comlurb e subordinado à gerência de limpeza da Muda, que, por coincidência ou destino, fica localizada na Rua Espírito Santo Cardoso.

Tradicional lugar de oferendas muito antes de o prefeito Eduardo Paes sancionar, no último dia 18, a Lei do Axé, que garante que materiais usados em cultos religiosos não serão enquadrados no programa Lixo Zero, o Alto da Boa Vista sempre atraiu devotos em busca de agradecimentos e pedidos diversos. Segundo o próprio Alexandre, a popularidade do local como foco de despachos está em sua proximidade com a natureza — céu, árvores, mato e cachoeiras.

— Santo gosta de ar livre. Além disso, os elementos da natureza simbolizam os orixás, então uma oferenda para Oxóssi, por exemplo, precisa estar perto do mato — explica ele, indicando ainda que o tipo de despacho também varia de acordo com a entidade e o objetivo. — Até nota de R$ 100 já achei deixada pra santo. Quem se dá bem são os mendigos da região.

Inusitada, a limpeza física feita pelo babalorixá também é puxada. Às 3h30m da manhã, quando boa parte dos cariocas ainda dorme, Alexandre já está de pé no município de Mesquita, na Baixada Fluminense, saindo de casa para pegar dois ônibus em direção à Muda, onde começa no batente às 6h, faça chuva ou faça sol. Café da manhã tomado e uniforme vestido na gerência de limpeza, um ônibus da companhia o leva mais de dez quilômetros Alto da Boa Vista acima, de onde ele desce a pé, munido de um galão, uma pá, um ancinho, sacos de lixo e um cordão de São Jorge no pescoço — presente da mãe ao filho devoto.

Entre uma curva e outra do Alto, Alexandre toma alguns momentos para atender o celular, trocar mensagens, e retomar o fôlego e as forças — se apenas físicas ou também espirituais, ele não deixa transparecer — para continuar a descida e a limpeza, numa rotina que se repete de segunda-feira a sábado e que ainda é mais puxada em determinadas épocas do ano.

— Segunda-feira é sempre um dia mais cheio, porque acumula os despachos do final de semana. Mas nos dias de santos, como São Jorge, o trabalho é ainda maior. Às vezes, preciso da ajuda de outros garis. Teve um dia de São Sebastião em que chegamos a tirar 30 sacos de oferendas — conta ele.

Basta observar o método de limpeza do gari pai de santo para perceber que a falta de receio para com o ofício peculiar não é mera bravata. Sem maiores cerimônias, apenas murmurando algumas palavras (o agô), ele utiliza o ancinho para derrubar as taças e garrafas com líquidos, desmanchar e juntar os arranjos, as frutas, velas e demais oferendas em montes — sempre com um semblante despreocupado — para o posterior recolhimento pelo caminhão de lixo. Quando necessário, também não demonstra receio em pegar as oferendas com as próprias mãos para a limpeza.

O desmanche dos despachos é feito sem qualquer ordem específica, a não ser aquela que torne a faxina mais prática. Em determinadas áreas com poucas oferendas isoladas, o trabalho é rápido, não demorando mais do que cinco minutos. Em outras regiões, como a Praça do Gato e a Curva do S — conhecida como “macumbódromo”, por contar com um espaço dedicado às manifestações religiosas —, até 30 minutos são gastos na limpeza, devido à quantidade, à distância e à elaboração das oferendas que precisam ser desmanchadas e reunidas.

Na cansativa volta, a pé, à gerência da Comlurb na Muda, penosa debaixo do sol, pelo calor, e em dias de chuva, pela ausência de lugares para se proteger da água, todas as oferendas são desfeitas com a mesma naturalidade por Alexandre, independentemente do tipo. O gari só parece relutar diante de despachos cujas velas foram recém colocadas (acesas e ainda inteiras) e daqueles que contam com restos de animais mortos: no primeiro caso, ele os ignora e opta por retirá-los no dia seguinte; já a segunda situação lhe exige um cuidado maior, com o uso de luvas — “apenas por higiene”, ele garante.

— Deixo para depois as oferendas mais recentes, por respeito. Além do agô, a única coisa que faço é mesmo um ebó (limpeza espiritual) a cada seis meses, com o meu pai de santo — explica o gari.

Às 14h, se não houver nenhum contratempo, ele já está de volta a Mesquita, depois de tomar um ônibus e um trem, a tempo do almoço na casa em que mora com a mãe, o pai, um sobrinho, a irmã gêmea e ao lado de um dos irmãos — ele tem ainda outros três. A residência humilde, localizada numa rua de terra batida, dá sinais de ainda estar em construção — o quarto de Alexandre passa por obras e o quintal apresenta uma escada com cimento fresco —, mas deixa claro aos visitantes que ali se trata de um espaço de devotos de orixás: à direita da entrada, no quintal, uma espécie de armário de cimento faz as vezes de altar para as diversas imagens religiosas de sua mãe.

Nos finais de semana e dias livre, o gari diz gostar de “tocar macumba” em homenagem aos orixás, em festas organizadas em terreiros de amigos — o dele, adquirido recentemente em Nova Iguaçu, ainda está sendo montado — e dar atenção aos 15 filhos de santo que possui. Um desses terreiros, inclusive, fica a poucas quadras da sua casa e pode facilmente ser reconhecido pelos recipientes de barro e porcelana acima da entrada — as chamadas quartinhas.

— Enquanto o meu terreiro não fica pronto, algumas das festas de que participo são feitas aqui, no espaço que é do meu amigo e irmão de santo. Algumas homenagens aos orixás começam cedo pela manhã e não têm hora para acabar. Mas são revigorantes — conta ele, vestindo o traje de babalorixá (com detalhes laranjas tal como o uniforme de gari, algo que diz “não ter reparado antes”), enquanto mostra o espaço construído no meio do quintal da casa do amigo, ornado com quadros, uma mesa para o jogo de búzios, um tapete, tambores e outros enfeites.

Apesar do trabalho no Alto da Boa Vista, Alexandre prefere deixar seus despachos perto de onde mora, por praticidade:

— Não tenho carro, então seria muito trabalhoso levar as coisas para o Alto. Tem oferenda que dá trabalho, é muita coisa pra carregar.

A escolha do babalorixá para o serviço no Alto não foi coincidência. Antes dele, o trabalho era feito por outros limpadores que, por medo ou desrespeito, acabavam não recolhendo corretamente as frutas, garrafas de bebida, velas, canjicas, tigelas, cabeças de cera e outras oferendas deixadas à beira da Floresta da Tijuca, na Estrada das Furnas. Algo que, conforme relata Carlos Roberto da Silva, gerente adjunto da Comlurb na região, já rendeu episódios peculiares:

— Tínhamos um rapaz que até fazia esse tipo de serviço, mas ele era um pouco desrespeitoso com as oferendas. Certo dia, ele estava na beira da estrada, um carro perdeu o controle, não se sabe como, e o acertou. Ele teve que retirar o baço, e o colocamos para trabalhar em outro lugar — conta Carlos Roberto, também iniciado na umbanda. — Tivemos muita dificuldade para substituí-lo, mas aí surgiu o Emílio, que topou assumir a função sem resistência. Ele tem os rituais dele, um jeito próprio de fazer o trabalho. Isso é importante, porque quando a pessoa é respeitosa não tem problema, nada de ruim acontece.

No comando de uma equipe composta por garis de diferentes religiões, entre evangélicos (há pastores), católicos e espíritas, e mesmo ateus, Carlinhos não admite desrespeito entre os profissionais — “somos como uma família” — e vê grande valor no serviço exclusivo prestado por Alexandre.

— Aqui no Alto é fundamental termos alguém como ele trabalhando só nisso. É gente colocando despacho 24 horas por dia. Em alguns fins de semana, chegam caravanas para fazer sessão espírita no macumbódromo, e temos que ter alguém como o Alexandre orientando para não colocarem velas acesas nas raízes das árvores, por exemplo — explica o gerente.

Apesar de nunca ter encontrado o gari pai de santo pessoalmente, Luiz Gustavo Trotta, subprefeito da Grande Tijuca, área que engloba a Muda e parte do Alto da Boa Vista, conhece bem a fama de Alexandre. Trotta ressalta que a atuação do gari é essencial para permitir a preservação da livre expressão das religiões na área, como estabelece a legislação brasileira.

— Uma ou mais religiões buscarem o mesmo espaço para fazerem suas manifestações é algo muito válido. Para isso, ter uma pessoa cuidando exclusivamente da questão, orientando e zelando pela manutenção da área é muito importante. E o Alexandre mostra muito profissionalismo em fazer a limpeza das oferendas sem receio algum — afirma Trotta.

Já reconhecido entre os colegas de profissão e os moradores da Muda, Alexandre pode ter sua fama expandida pelo Brasil e internacionalmente em breve: o gari foi tema de uma reportagem de uma revista francesa, além de ponto de partida e um dos protagonistas de um documentário em curta metragem sobre religião, tolerância, sectarismo e preconceito no espaço urbano do Rio.

Realização da produtora Aura filme, com recursos da RioFilme, o curta “Gramados e encruzilhadas” foi finalizado este mês e, em breve, deve começar a rodar o país e o mundo em festivais de cinema.

— As filmagens duraram um ano, o que nos permitiu acompanhar o Alexandre retirando as oferendas do Alto no Dia de São Jorge; no terreiro de candomblé, na cerimônia em que ele tomou obrigação de babalorixá; e até no primeiro dia do ano, limpando a praia depois da festa de réveillon em Copacabana — conta a diretora Valéria Valenzuela. — O desafio maior foi fazer um filme sobre pessoas e suas maneiras de entender e lidar com o mundo, e não sobre concepções religiosas divergentes. Não quisemos confrontar credos e, sim, mostrar formas diferentes de viver a religião.

Para além do reconhecimento, no entanto, Alexandre crê que uma de suas maiores bênçãos é mesmo trabalhar no Alto da Boa Vista.

— É longe, tem dia em que é cansativo, mas gosto daqui. É muito tranquilo. As energias são boas — afirma ele, com um leve sorriso no rosto.

Reportagem publicada no GLOBO A MAIS, a revista digital do GLOBO para tablets