Cultura

A luz de Julio Le Parc, um dos ícones da arte cinética

Artista revê 50 anos de carreira em 30 obras luminosas reunidas a partir deste sábado na Casa Daros

RIO - São 16h, e a Casa Daros está quase no escuro. Aos 85 anos, o artista Julio Le Parc pede à repórter que lhe dê o braço na entrada de sua própria exposição. Boina preta, lenço de seda roxo amarrado ao pescoço, ele caminha lentamente no breu até chegar à primeira obra: um delicado móbile de espelhinhos que, iluminados, criam uma coreografia de reflexos na parede.

— Foi a primeira obra luminosa que fiz — diz baixinho, em espanhol, quase sussurrando diante de sua “Continuel-lumière — Mobile”, de 1960. — Não tinha dinheiro para comprar motorzinho, menina. Fui testando com uma luz, com duas, fiz pequenininho... Muito bonito! — completa, fazendo o autoelogio num português com um sotaque misturado, de quem trocou a Buenos Aires natal por Paris em 1958.

No passeio que faz por sua exposição, “Le Parc lumière”, que a Daros abre neste sábado ao público, ele parece surpreso a cada encontro com uma obra antiga e tira do bolso do casaco uma máquina fotográfica compacta para registrar as peças, pontuando os cliques com um “muito bonito!”.

Um dos fundadores da arte cinética nos anos 1960, com o Groupe de Recherche d’Art Visuel (Grav), Le Parc pensou com seus pares e escreveu dezenas de manifestos históricos sobre a importância de tirar a arte “das mãos de uma elite” e aproximá-la do público em geral. Se em 1968 o Grav foi extinto com textos que falavam em fracasso ante uma “falta de vontade” do meio artístico, Le Parc diz viver agora o melhor momento de sua carreira.

Antes de acumular mais de 50 anos de pesquisas com luz, cores e movimentos, os elementos marcantes dos cinéticos, ele conta que adquiriu uma coleção de negativas de museus, à época “pressionados politicamente pelos Estados Unidos a mostrar apenas a arte pop, já que o país não tinha artistas fazendo arte cinética”. Le Parc acrescenta que, em 1966, quando venceu o prêmio da Bienal de Veneza, “o júri sofreu muita pressão para dar o prêmio a Roy Lichtenstein (pintor pop americano)”.

Soam conspiratórias as teorias do argentino, mas é fato que muitas de suas obras luminosas permaneceram encaixotadas no ateliê em Paris até o final dos anos 1990. Foi em 1999, na Bienal do Mercosul, que, tendo visto as peças de Le Parc, o curador da coleção Daros, Hans-Michael Herzog, passou a “desenterrá-las”. Os (rudimentares) motores que o artista inventara nos anos 1960 para acionar o movimento de lâmpadas já não funcionavam mais. Tudo foi restaurado para que, em 2005, a Daros fizesse a primeira exposição do artista em Zurique (e comprasse, então, mais de 40 obras do cinético).

É quase o mesmo recorte (com 30 peças) que chega agora ao Rio, pouco depois de outras mostras que reviram a importância histórica de Le Parc, ambas em Paris: até julho, ele integrou a coletiva “Dynamo”, que exaltou a arte cinética no Grand Palais, e, antes, até maio, ganhou retrospectiva no Palais de Tokyo (“Só na abertura foram dez mil pessoas”, diz, vaidoso, o filho do artista, Yamile Le Parc, que administra a obra do pai há dez anos).

Para Herzog, vive-se um momento de retorno à arte cinética, reflexo do fato “de curadores estarem pesquisando as origens da arte de agora”.

— Estamos voltando aos anos 1960, que foram muito produtivos para a arte, e é orgânico, normal, que se volte aos cinéticos — diz ele.

No Brasil, além de na Daros, Le Parc tem outras duas mostras, ambas em São Paulo: uma na galeria Carbono, dedicada a múltiplos, e outra na Nara Roesler (uma das quatro que representam o artista no mundo), onde os trabalhos custam de € 120 mil a € 700 mil (de R$ 360 mil a R$ 2 milhões).

— Não é muito se você pensar que são 50 anos de trabalho. Veja uma Beatriz Milhazes: ela não tem um quarto da importância de Le Parc e vende quadros a preços milionários — diz o filho do artista, lembrando que, em 2010, uma obra do cinético alcançou US$ 506 mil em leilão da Christie’s. — Meu pai nunca se prostituiu para estar numa galeria ou entrar numa coleção. É um artista verdadeiro.

“Muito bonito!”, interrompe Le Parc, na porta de uma das “salas de jogos”. Lá estão objetos cujo movimento é acionado pelo espectador, que, a essa altura da montagem, já terá passado por muitas peças luminosas — há as que refletem incontáveis espelhos na parede, as que têm uma luz giratória refletida em cilindros de vários tamanhos e até um labirinto de espelhos — nele, o artista passou bons minutos divertindo-se com a própria imagem repetida inúmeras vezes.

Relação com o espectador

A montagem na Daros é alongada. Uma sala inteira, por exemplo, é dedicada a um único móbile no teto, que o público poderá ver deitado num imenso pufe instalado exatamente sob a obra. Sem perceber — ao menos é o que deseja o artista —, o espectador será levado a uma dimensão política: para Le Parc, a possibilidade de se relacionar com a beleza diretamente, de poder dizer “muito bonito!” diante de uma obra, é como exercer um direito social.

Em uma das salas de jogos (elas são as únicas que não ficam no escuro), aperta-se um botão, e um ventilador faz tiras de papéis voarem pelo espaço. Ou aciona-se com o pé um pedal vermelho, e uma luz da mesma cor começa a girar, como numa sessão de hipnose. Tudo na exposição, enfim, é luz e movimento:

— Sempre tratei de ser um pouco livre dentro da sociedade em que vivo. Pelo menos, tentei ver minha situação profissional como um mecanismo social e de cultura, tirando do ofício de artista condições de pensar: de que maneira se pode fazer para construir uma relação mais recíproca com o espectador? Como fazer com que ele seja menos cobrado para se integrar ao que é a ideia de apreciar a arte? Em geral, quem vê arte contemporânea não entende nada, e é considerado ignorante. Eu sempre busquei outro caminho, o da proximidade com a beleza.