Economia Defesa do Consumidor

Serviço secreto

‘Recall branco’, oficialmente, não existe. Mas sobram casos de defeitos de fábrica que são reparados silenciosamente nas revendas
Ilustração Foto: Cláudio Duarte
Ilustração Foto: Cláudio Duarte

Um barulho na direção do Corolla deixou o administrador de empresas Silvio Machado intrigado. Numa concessionária da Toyota, o problema foi resolvido rapidamente. Mas os funcionários não deram muitos detalhes sobre o defeito no sedã com menos de mil quilômetros rodados. Curioso, Silvio descobriu que outros donos de Corolla tiveram o mesmo problema — e soube, por um mecânico da autorizada, que um boletim da fábrica orientava a troca das peças da caixa de direção e do eixo dianteiro.

Casos como este são chamados vulgarmente de “recall branco”, mas há nomes oficiais, como “campanhas de serviço”, “instrução técnica”, “ações de oficina” e “boletins de informação técnica”. O objetivo é o mesmo: aproveitar a ida do carro à oficina e resolver problemas de fabricação detectados após o lançamento, evitando fazer um recall convencional.

No momento, a suspeita paira sobre carros da Chevrolet. Motores de oito modelos da marca (do Celta à Spin) apresentaram falhas e perda de potência. Segundo a revista “Auto Esporte”, as revendas estariam trocando as válvulas dos motores para sanar a questão.

Chamados são obrigatórios se defeito afetar segurança

O assunto é espinhoso e levanta dúvidas jurídicas. Por lei, não há irregularidade em um fabricante fazer reparos após constatar um defeito de fabricação. O problema é omitir este problema.

— Trocar uma peça que esteja com defeito é obrigação. O ilegal é não anunciar publicamente que existem peças defeituosas — afirma o advogado José Alfredo Lion, especializado em direito do consumidor.

Executivos das fábricas alegam que o recall branco é usado apenas quando os defeitos não põem em risco a vida ou a integridade física do consumidor. Desta forma, a empresa está dentro da legalidade e não precisa abrir a carteira para fazer uma convocação como determina a lei, com anúncios na mídia.

No caso da omissão de informação, especialistas em direito do consumidor acreditam que até cabe uma ação por danos morais por parte do cliente, já que ele pode alegar aborrecimento e frustração por seu carro ter um defeito após a compra. Mas as probabilidades de sucesso nesse tipo de ação são mínimas, uma vez que o fabricante cumpriu seu papel e fez o conserto.

Há margens para interpretações. Muitos problemas considerados banais podem ter consequências.

— Imagine que o consumidor está dirigindo na estrada e o carro subitamente perde potência. Isso pode causar acidentes no momento de uma ultrapassagem ou numa curva — avalia Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Proteste. — O fabricante é responsável, mesmo fazendo recall. E no caso do recall branco, é pior ainda.

— Se o defeito não traz um dano imediato, mas pode oferecer um risco eventual, cabe argumento jurídico — faz coro Lion.

A verdade nas cartas

Há casos em que a marca pode fazer um chamado, digamos, “reservado”. Se for um item que não envolva a segurança, basta uma carta ou qualquer tipo de contato direto com o cliente. Foi o que já fez a Peugeot, com o extinto 206. A francesa chamou 7 mil donos do compacto para o reparo gratuito do conector do limpador de para-brisa.

— Nunca poderá ser às escondidas. O consumidor pode ser convidado para ir à revenda e, muito claramente, fica definido que se trata de um serviço que não tem implicação na estrutura de segurança do veículo. Mas se há qualquer referência ao aspecto de segurança, é preciso fazer o recall — diz Luiz Carlos Mello, consultor do Centro de Estudos Automotivos.

Mesmo nos casos em que o fabricante julgue não haver riscos à segurança, pode ser convocado recall. Cabe aos órgãos de defesa do consumidor e ao Ministério Público avaliar o defeito e obrigar a empresa a fazer o chamado.

Foi o que aconteceu com o Fox, em 2008. Depois que mais de 20 clientes se feriram (alguns tiveram os dedos decepados) ao tentar rebater o banco traseiro do carro, o Ministério da Justiça determinou que a Volkswagen tinha de fazer um recall para corrigir o dispositivo.

Este ano, a Justiça do Rio Grande do Sul obrigou a Volks a convocar donos de Gol, Fox e Voyage 2009/2010 para verificar a possibilidade de desgaste prematuro dos motores 1.0 VHT.

Também recentemente, a GM assinou um acordo judicial para comunicar os proprietários do Cobalt no Rio e em São Paulo sobre a necessidade de conserto das pinças dos freios.

Quando os mecânicos avisam

As determinações internas citadas no início desta reportagem é que saem da curva. Em geral, são defeitos comuns relatados por clientes. Os próprios mecânicos detectam o problema e entram em contato com o fabricante, que repassa o procedimento para a rede.

Um funcionário do pós-venda de uma autorizada da Mitsubishi em São Paulo (que obviamente não quis se identificar) admitiu que já recebeu orientações da fábrica para fazer reparos específicos em determinados modelos da marca. Um deles foi para a troca do filtro de combustível.

Um boletim recomendava a substituição da peça em determinadas unidades da picape L200 Triton (especificando ano/modelo), pois a mesma perdia potência repentinamente.

Também no anonimato, outro empregado, este de uma revenda da Mercedes-Benz, lembra que, há uns dez anos, recebeu orientação da marca por meio de um comunicado interno para revisar a bomba da direção hidráulica dos Classe A nacionais.

— O que se percebe é que os fabricantes esperam a revisão e trocam as peças aos poucos. Economizam, mas isso é errado. Todo produto que é colocado no mercado tem que ter acompanhamento — reclama Maria Inês, da Proteste.

As marcas negam que exista o tal recall branco. No caso do problema do motor, a GM, por meio de nota, afirma que a rede de concessionárias “tem realizado contato telefônico com os proprietários dos veículos para o procedimento de verificação e eventual substituição das travas das válvulas do motor”.

No caso dos Corolla com barulho na direção, a Toyota afirma que os ruídos “não oferecem risco à segurança de motorista e passageiros” e que substituiu as peças “visando a máxima satisfação dos seus clientes”.

— Não acredito que uma marca deixe de fazer um recall por economia. O fabricante que se negasse a fazer um recall estaria depondo contra a própria marca. Custo de imagem é tão grande que não paga esta economia — pondera Luiz Carlos Mello.