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Moradores de antigas comunidades quilombolas ainda lutam por sua preservação

Dos quatro quilombos na cidade, dois se encontram na Zona Oeste

No Camorim, a Capela São Gonçalo do Amarante, construída em 1625 pelos escravos
Foto: Pedro Teixeira / Agência O Globo
No Camorim, a Capela São Gonçalo do Amarante, construída em 1625 pelos escravos Foto: Pedro Teixeira / Agência O Globo

RIO - Os primeiros africanos trazidos para serem escravos desembarcaram no Rio no início do século XVII, e até hoje há locais onde seus descendentes mantêm as tradições culturais, religiosas e de subsistência daquela época. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, a primeira instituição pública voltada para promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira criada pelo governo federal, há mais de 1.500 comunidades quilombolas no país hoje, sendo apenas quatro na cidade do Rio de Janeiro. Dessas, duas estão no Parque Estadual da Pedra Branca e foram reconhecidas apenas no ano passado pelo órgão, com publicação no Diário Oficial da União: a Camorim— Maciço da Pedra Branca, no Camorim, e a Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande. As outras estão na Pedra do Sal e na Sacopã.

— A cidade que está completando 450 anos em 2015 nasceu indígena, se batizou portuguesa, mas foi consolidada pelo braço do africano. Este foi o povo que sustentou a coroa portuguesa quando ela veio para cá. A preservação e discussão sobre os remanescentes de quilombos fazem parte da tomada de consciência da importância da presença africana na cidade, da raiz e direitos dessa cultura — diz Milton Guran, historiador e membro do Comitê Científico Internacional do Projeto Rota do Escravo, da Unesco.

No Camorim, a Capela São Gonçalo do Amarante, construída em 1625 pelos escravos e onde havia um cemitério em que foram encontradas ossadas de africanos, é apenas um dos indícios que confirmam a presença dos cativos. Em um terreno próximo à igreja ficava o Engenho do Camorim, com sua casa-grande e sua senzala. Segundo dados do IBGE de 2000, no local há cerca de 872 famílias descendentes de quilombolas.

— Meu avô e meu pai foram capitães do mato e me contavam que muitos escravos fugidos moravam na Pedra do Quilombo. Eles andavam a cavalo e com a pistola na cintura — conta Moacir Francisco de Azevedo, de 94 anos.

Caminhos que foram feitos pelos escravos fugidos no Camorim ainda podem ser percorridos hoje no Parque Estadual da Pedra Branca, mas não há placas informativas Foto: Pedro Teixeira / Agência O Globo
Caminhos que foram feitos pelos escravos fugidos no Camorim ainda podem ser percorridos hoje no Parque Estadual da Pedra Branca, mas não há placas informativas Foto: Pedro Teixeira / Agência O Globo

A casa-grande e a senzala também foram descaracterizadas. No terreno, hoje, funciona uma pousada. Em outra parte da área quilombola, onde há uma gruta em que os fugitivos chegaram a se instalar, está sendo construído o complexo que abrigará jornalistas durante os Jogos de 2016.

— Dei entrada no Incra em 2004 para o reconhecimento dessas terras como quilombo, para que elas pudessem ser tombada. O processo está rolando desde então, mas, em 2013, uma construtora comprou a área e começou a trabalhar nela. Mais de mil árvores nativas e centenárias foram arrancadas. Buscamos os órgãos públicos para tentar conter as construções, mas não conseguimos — diz Adilson Batista de Almeida, presidente da Associação Cultural do Camorim (Acuca).

O historiador Guran lamenta as intervenções:

— As comunidades quilombolas guardam uma parte importante da memória da nossa cultura. Uma intervenção dessa natureza em uma área reconhecida pela Fundação Palmares é uma atitude agressiva. É como colocar um elefante em uma loja de louça. Lamento que não tenha sido precidida por um laudo antropológico de impacto sobre aquele meio ambiente.

SONHO DE CRIAR CENTRO CULTURAL

O presidente da Associação Cultural do Camorim afirma que a comunidade do quilombo Camorim-Maciço Pedra Branca não tem informações a respeito de quaisquer medidas que sirvam de contrapartida à construção da Vila da Mídia no terreno. Seu sonho é que a construtora responsável, a Living, criasse em parte da área um centro cultural.

— Atualmente, a sede da associação é no terreno da minha casa. A comunidade é muito carente de atividades sociais e de lazer e merece esse centro. As atividades que promovemos acontecem ao lado da capela, onde não há espaço suficiente. Na feijoada de Zumbi dos Palmares, que promovemos em novembro, ele fica lotado, com mais de 300 pessoas — conta Adilson Batista de Almeida, que tem outros projetos. — Estamos capacitando jovens para receber os turistas nas Olimpíadas e contar a nossa história, mas não temos onde receber os visitantes. Não podemos impedir as construções; só queremos que o poder público olhe para a gente.

No Parque Estadual da Pedra Branca, é possível percorrer trilhas que fizeram parte do caminhos dos fugitivos, embora não haja placas informativas indicando-as. Ali estão grutas que abrigaram escravos; o Açude do Camorim, onde pescavam; e cachoeiras onde se banhavam.

— As grutas foram base para pelo menos 50 escravos. Lá, eles formaram uma comunidade, fechando as laterais da pedra com bambu e barro. Quando foram descobertos, os que estavam doente ficaram para serem capturados enquanto os outros fugiam para a Pedra do Quilombo — conta Almeida.

Apesar de frequentar há anos a cachoeira do Camorim, o atleta Sandro Cardoso não sabia que o local era frequentado por escravos.

— É surpreendente descobrir que este é um local histórico — diz Cardoso.

Procurada, a construtora Living diz que tem as licenças necessárias para construir a Vila de Mídia no local.

MEDO DA EXPULSÃO

Em Vargem Grande, o quilombo Cafundá Astrogilda foi formado por africanos que trabalhavam na fazenda cafeeira Vargem Grande, propriedade de Miguel Ferreira. Atualmente, a área também se vê ameaçada. Sandro da Silva Santos, descendente de Astrogilda, a matriarca da comunidade, e filho de Jorge dos Santos Mesquita, presidente da Associação Quilombo Vargem e Griô (contador de histórias que guarda a sabedoria de uma comunidade negra), diz que o estado considera as 70 famílias que moram no local invasoras do Parque Estadual da Pedra Branca.

A visto do alto do Quilombo Cafundá Astrogilda, com a Praia do Recreio ao fundo Foto: Divulgação/Felipe Tubarão
A visto do alto do Quilombo Cafundá Astrogilda, com a Praia do Recreio ao fundo Foto: Divulgação/Felipe Tubarão

— Nossa luta começou há alguns anos, após a acusação de invasão. O estado vende a imagem de que nós e outras comunidades estabelecidas há anos no Parque Estadual da Pedra Branca somos invasores. O parque foi criado apenas em 1974, é ele que fica dentro da comunidade — defende Santos.

A agricultura, base da subsistência do quilombo em sua formação, é a principal atividade no local até hoje. O cultivo é feito com ênfase nas tradições herdadas dos escravos.

— Na formação do quilombo, os núcleos familiares plantavam banana, café, aipim, batata. É assim até hoje. O Pedro Mesquita, vice-presidente da Associação Quilombo Vargem e líder dos agricultores daqui, foi o primeiro da cidade a ter a produção vendida para uma escola pública, a Teófilo Moreira da Costa, de Vargem Grande — diz Santos.

PARCERIAS PARA MANTER MEMÓRIA

A preservação da natureza, garante Sandro da Silva Santos, do quilombo Cafundá Astrogilda, é uma preocupação dos moradores. São eles quem cuidam das estradas e fazem o manejo das trilhas do Parque Estadual da Pedra Branca na comunidade, diz, com recursos próprios e em mutirão:

— A cidade toda está crescendo desordenadamente. As florestas são destruídas e quem visita as trilhas e cachoeiras da região deixa lixo e pichações. Ajudamos na preservação porque tratamos a natureza de uma forma diferente; é uma relação de simbiose, porque convivemos diretamente com ela.

Além de plantar, os quilombolas produzem bebidas artesanais.

— Fazemos licores e bebidas de infusão. Um destaque é o parangolé, criado pelo meu pai, o griô, e conhecido por todos como o Viagra do quilombo — conta Santos.

Pai Tertuliano. O griô Pingo e a imagem do mentor do centro espírita Foto: Divulgação/Felipe Tubarão
Pai Tertuliano. O griô Pingo e a imagem do mentor do centro espírita Foto: Divulgação/Felipe Tubarão

Assim como o quilombo Camorim-Maciço da Pedra Branca, o Cafundá Astrogilda carece de estrutura urbana. No local há apenas uma praça, coberta pelo mato:

— Gostaríamos de ter uma clinica da família, por exemplo. Não existem políticas públicas que beneficiem os quilombolas. Queremos apenas que as autoridades respeitem nossas tradições, nossos antepassados e nossos sentimentos de amor à terra que nos viu nascer.

Enquanto não conta com proteção oficial, o antigo quilombo vai desaparecendo. No local onde os quilombolas criaram um centro espírita funciona hoje a sede da comunidade:

— A nossa família ainda guarda um oratório de mais de cem anos que era do centro espírita. É uma lembrança histórica. Lá, se faziam chás e orações, e as mulheres davam à luz.

Em busca de apoio e visibilidade, a comunidade Cafundá Astrogilda desenvolveu parceiras com pesquisadores:

— Juntos desenvolvemos estudos antropológicos, cartografia social, geográfica e econômica, um estudo de microclima (com Rita Montezuma, da UFF) e uma parceria com a escola Teófilo Moreira da Costa, que traz os alunos para nos visitar e aprender sobre a nossa cultura.