Opinião

O efeito Hezbollah na guerra da Síria

Uma grande parte do povo sírio quer se livrar de um ditador sanguinário, e viver num país livre e mais democrático

A recente entrada de forças militares do movimento libanês xiita Hezbollah na guerra civil da Síria, em apoio ao regime do presidente Bashar al-Assad, tem acirrado o tom sectário não somente na Síria, mas também no Egito. No dia 23 de junho, lá no vilarejo de Zawyat Abu Musalam, perto de Cairo, uma multidão de 3 mil habitantes, enfurecidos depois de dias de sermões antixiitas por xeques salafistas, linchou até a morte quatro habitantes xiitas.

Os quatro xiitas egípcios morreram de uma maneira bárbara: espancados, chutados e esfaqueados no meio da rua por uma multidão enlouquecida de ódio. Suas casas também foram saqueadas e queimadas. Um jornalista, Hazam Barakat, presenciou tudo, tirou fotos, e postou mensagens ao vivo no Twitter. “Por três semanas os xeques salafistas atacaram os xiitas, acusando-os de serem infiéis e de espalharem libertinagem,” disse Barakat ao site Ahram Online. “Eu vi vários dos xiitas sendo esfaqueados.” Esse assalto violento deixou, além dos quatro mortos, pelo menos 30 xiitas gravemente feridos no hospital. A polícia já prendeu oito suspeitos.

O grupo antissectário Egípcios Contra a Discriminação Religiosa culpou o presidente Mohamed al-Morsi, a Irmandade Muçulmana, os salafistas e seus aliados ultraconservadores pelo acirramento sectário no país. Em específico, o grupo apontou o discurso de Morsi, durante uma conferencia em apoio aos rebeldes sírios, em que o presidente disse que a luta entre os rebeldes e o ditador Bashar al-Assad era sectária. O presidente sírio é alauíta, uma ala pequena no xiismo.

O grupo pediu ao povo egípcio para ter cuidado com “as conspirações forjadas contra eles no escuro,” e para ir às ruas no dia 30 de junho para protestar e derrubar o atual regime, que desprezou o valor dos direitos de cidadania e do estado de direito.

O Egito é uma nação majoritariamente sunita, com uma minoria substancial de cristãos, aproximadamente 10% da população, e somente três milhões de xiitas. É claro que os fortes problemas políticos e econômicos que o país está passando desde a derrubada do presidente Hosni Mubarak, em 2011, têm contribuído para o ar de intolerância que toma a sociedade.

É irônico que o Egito tenha sido governado pelo califado xiita dos fatímidas de 969 até 1171, e que eles tenham fundado a cidade de Cairo e a primeira universidade do mundo islâmico, o Al-Azhar, que hoje é o mais importante centro de estudos islâmicos do mundo sunita. Os fatímidas eram descendentes diretos da filha do profeta Maomé, a Fatima — por isso o nome dado ao império deles, que se estendia da costa oeste da África do Norte, até a ilha de Sicília, à costa oeste da península árabe, e até Jerusalém.

A ruptura no islã, que deu as origens do racha entre sunitas e xiitas, se deu no dia 10 de Muharram, ano 61 do calendário islâmico, ou no dia 10 de outubro de 680, na batalha de Kerbala, quando o neto do profeta Maomé, Hussein ibn Ali, sua família e seus seguidores foram mortos e derrotados pelas forças do califa Yazid. Os xiitas todo ano marcam a data histórica com marchas sombrias, nas quais eles choram a derrota de Hussein, que eles chamam de Ashura.

Em janeiro de 2007 eu visitei as cidades de Qatif e Awwamiya, na província Ocidental da Arábia Saudita, redutos dos xiitas no reino sunita, para ver a Ashura ser marcada. Caminhei com os xiitas pelas ruas estreitas de Qatif, lamentando a morte de Hussein e se batendo com as mãos. Também fui aos Husseiniyas, que são lugares de estudo xiitas para ouvir discursos sobre a história dessa data. Por isso fiquei surpreso ao ler que grupos sunitas egípcios ultraconservadores, em maio, tinham tentado destruir um prédio em Tanta que eles acusavam ser uma Husseiniya. Para o Ahram Online, ativistas xiitas negaram a existência de qualquer sala de Husseiniya no país.

Mas mesmo na Arábia Saudita, os xiitas têm dificuldades enormes de serem aceitos pelos mais extremistas, que regularmente denunciam os xiitas como sendo não muçulmanos. Há confrontos violentos quase todo mês entre jovens xiitas desempregados com a polícia, e em agosto de 2012 o xeque popular xiita Nimr al-Nimr foi preso numa emboscada policial. Ele segue na prisão, depois de o governo o acusar de ajudar “terroristas” e instigar tumultos. Um promotor já pediu a pena de morte para o xeque, que é muito popular na sua cidade de Awammiya.

Mas voltando à guerra civil na Síria. É lamentável que o Irã, a maior potência xiita na região, tenha de continuar com seu apoio financeiro e militar ao regime do Bashar. Como o jornalista iraniano Amir Taheri disse recentemente, a maioria dos iranianos não tem laços com a Síria, e pouco se importam com o que vai acontecer lá. O Irã está num jogo estratégico de manter seu único aliado no mundo árabe, e, com a entrada de Hezbollah na guerra, o conflito tem tomado ares ainda mais sectários.

Os apoiadores do regime Assad — que tem muitos adeptos aqui no Brasil — gostam de enxergar a luta na Síria como algo entre o regime secular e os extremistas islamistas, que “comem os órgãos dos seus inimigos” e — se vencerem a guerra — vão massacrar alauitas, cristãos, xiitas e secularistas. Isso está longe da verdade, é tática para apavorar a opinião pública o suficiente para levá-la a apoiar Bashar. Uma grande parte do povo sírio quer se livrar de um ditador sanguinário, e viver num país livre e mais democrático. Infelizmente, isso parece um sonho longe de se realizar. Por enquanto.

Rasheed Abou-Alsamh é jornalista