31/03/2014 07h56 - Atualizado em 31/03/2014 07h56

Controvérsia sobre o dia do golpe de 1964 ainda divide historiadores

Para militares, 'revolução' foi no dia 31; para esquerda, em 1º de abril.
Pesquisador aponta 2 de abril, dia em que Congresso depôs João Goulart.

Renan RamalhoDo G1, em Brasília

Um tanque de guerra do exército em frente ao palácio da Guanabara no Rio de Janeiro após golpe em 08 de abril de 1964 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo)Um tanque de guerra do Exército em frente ao Palácio da Guanabara no Rio de Janeiro em 8 de abril de 1964 (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo)

Entre as várias controvérsias que cercam a ditadura militar no Brasil, uma ainda persiste e divide parte dos estudiosos: o dia e o momento exato do golpe que tirou João Goulart (1919-1976) da Presidência e deu início ao regime autoritário.

(ESPECIAL "50 ANOS DO GOLPE MILITAR": A renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, desencadeou uma série de fatos que culminaram em um golpe de estado em 31 de março de 1964. O sucessor, João Goulart, foi deposto pelos militares com apoio de setores da sociedade, que temiam que ele desse um golpe de esquerda, coisa que seus partidários negam até hoje. O ambiente político se radicalizou, porque Jango prometia fazer as chamadas reformas de base na "lei ou na marra", com ajuda de sindicatos e de membros das Forças Armadas. Os militares prometiam entregar logo o poder aos civis, mas o país viveu uma ditadura que durou 21 anos, terminando em 1985. Saiba mais.)

 A história registra que a queda de Jango se deu entre 31 de março e 2 de abril, mas desde então, duas correntes se dividem sobre a data: para uns, entre os quais militares, a "revolução" se deu no dia 31; para outros, principalmente os militantes de esquerda, em 1º de abril, o dia da mentira.

Durante todo o dia 31 de março, o que há são negociações, conversações políticas e militares. As partes estão medindo forças, os golpistas não sabem se podem vencer, e o governo conta com forças militares para derrubar os golpistas. Essa operação militar não teve planejamento. Há um movimento golpista em curso, mas esse movimento está indefinido."
Jorge Ferreira, historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Na sucessão de eventos que levaram ao início da ditadura, concentrados num intervalo de pouco mais que 48 horas, os pesquisadores destacam alguns fatos decisivos.

É sempre lembrado um discurso que Jango fez a sargentos ainda na noite do dia 30, no Automóvel Clube do Rio. Em sua fala, transmitida pela TV, ele defendeu as "reformas de base", que incluíam, por exemplo, a distribuição de latifúndios improdutivos para os camponeses.

O encontro com os oficiais foi interpretado como mais um passo da aproximação de Jango em direção às esquerdas e contrariou setores conservadores. Daí que na madrugada do dia 31, numa iniciativa isolada, o general Olympio Mourão Filho partiria com suas tropas de Juiz de Fora (MG) em direção à Guanabara para derrubar o presidente.

É a partir desse momento que, durante todo o dia 31, parte dos militares que queriam tirar Jango do poder, ainda bastante desarticulados, iniciaram uma intensa troca de telefonemas, principalmente entre Rio, São Paulo e Minas, para decidir se apoiavam ou não um golpe de Estado.

"Durante todo o dia 31 de março, o que há são negociações, conversações políticas e militares. As partes estão medindo forças, os golpistas não sabem se podem vencer e o governo conta com forças militares para derrubar os golpistas. Essa operação militar não teve planejamento. Há um movimento golpista em curso, mas esse movimento está indefinido", diz o historiador Jorge Ferreira, um dos dois autores do recém-lançado "1964 – O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil" – o outro é Ângela de Castro Gomes; ambos são professores da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O dia 1º é o dia em que Jango perde efetivamente o controle do Exército, não consegue forçar uma reação legalista [...] A rebelião militar é desencadeada no dia 31, mas o golpe de Estado, como engenharia política, que realmente tira as bases da Presidência como figura institucional, ocorre no dia 1º."
Marcos Napolitano, historiador, professor da Universidade de São Paulo (USP)

Ferreira, no entanto, sustenta que os momentos decisivos para a queda de Jango ocorreram em dois dias. O primeiro, pouco antes da meia-noite do dia 31, quando o general Amaury Kruel, comandante do Exército em São Paulo, até ali um aliado de Jango, pediu ao presidente a demissão de ministros de esquerda. Jango recusou, e o militar aderiu à conspiração.

"Quando ele faz isso, diversos comandos militares tomam posição ao lado dos golpistas. Aí, no dia 1º, o movimento cresce, com tropas passando para o outro lado", diz Ferreira.

O segundo momento-chave, na interpretação do historiador, se dá perto do meio-dia de 1º de abril, quando, acuado ante a tomada do Forte de Copacabana por militares golpistas, Jango decide deixar o Rio de Janeiro rumo a Brasília, para depois seguir para Rio Grande do Sul, sua terra de origem.

"Quando ele faz isso, essa decisão é interpretada pelos seus adversários como admissão de derrota, de rendição", diz. Em Porto Alegre, Jango decide recuar de vez: mesmo sob conselhos de iniciar uma resistência, opta por evitar uma guerra civil no país.

Professor da USP e autor de "1964: história do regime militar", Marcos Napolitano vê no dia 1º de abril o momento crucial do golpe, em que Jango perde o controle do aparato militar. Isso se dá, segundo ele, quando, ao lado de Kruel, os generais Humberto Castello Branco e Arthur da Costa e Silva – influentes nas Forças Armadas e que mais tarde se tornaram presidentes –, resolvem aderir à conspiração.

O fato que marca o golpe se dá na madrugada do dia 2 de abril, quando o presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, formaliza a deposição de João Goulart."
Marco Antonio Villa, historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos

"O dia 1º é o dia em que Jango perde efetivamente o controle do Exército, não consegue forçar uma reação legalista", diz Napolitano. "A rebelião militar é desencadeada no dia 31, mas o golpe de Estado, como engenharia política, que realmente tira as bases da Presidência como figura institucional, ocorre no dia 1º", completa o historiador.

Visão distoante apresenta Marco Antonio Villa, historiador da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Ditadura à brasileira – 1964-1985 – a democracia golpeada à esquerda e à direita". Para ele, o fato que marca o golpe se daria na madrugada do dia 2 de abril, quando o presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, formaliza a deposição de João Goulart.

O então deputado Almino Affonso, que estava na sessão do Congresso de 2 de abril de 1964, corrobora a opinião de Villa. "Até hoje persiste a ideia de que o golpe de estado de 64 se configurou no dia 31 de março. Como isso se deu, não consigo entender. Mas a imprensa botou, outros acharam que era dia 1º de abril e, até agora, não se conseguiu criar a verdade histórica. O golpe aconteceu no dia 2 de abril”, afirmou.

A sessão, convocada às pressas, foi marcada por tumulto, com protestos por parte dos aliados de Goulart quanto à constitucionalidade do ato. Mesmo sabendo que Jango ainda estava no país, o que impediria sua destituição, Moura Andrade diz que ele "abandonou o governo" e que a nação estava "acéfala, numa hora gravíssima da vida brasileira".

Sem debates, o senador declarou vaga a Presidência, sob gritos acusando-o de "golpista". Em seguida, por volta das 3h15, foi, junto com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Álvaro Ribeiro da Costa, para o Palácio do Planalto. Às escuras, empossaram o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, na Presidência da República. O deputado ficaria no comando por apenas dez dias; no dia 11, o Congresso elegeu Castello Branco, por 361 votos favoráveis e 72 abstenções.

"A compreensão que se tinha naquele momento era que a intervenção militar era cirúrgica, como outras já ocorridas na história do Brasil até aquele momento.(...) Não passava pela cabeça de ninguém, inclusive dos militares, essa ideia da eternização [no poder]. Imaginava-se que seria uma coisa curta", diz Marco Antonio Villa.

Causas do golpe
Se discordam quanto aos momentos decisivos do golpe, os três historiadores consultados pelo G1 concordam que o simbolismo da data é pouco relevante em relação aos fatores políticos, históricos, sociais e econômicos que levaram à queda de Jango.

Para Jorge Ferreira, embora contasse com um razoável apoio até a metade de seu governo, a crise de Jango com setores conservadores das Forças Armadas, do Congresso, do empresariado, da imprensa e da própria sociedade começa a partir do final de 1963 e vai crescendo até março de 1964.

Na visão do historiador, quatro episódios marcam esse período de isolamento do presidente. O primeiro, em 12 de setembro de 1963, quando cerca de 600 sargentos da Aeronáutica e fuzileiros navais da Marinha tomam Brasília, cortam as comunicações do país e prendem os presidentes da Câmara e do Supremo Tribunal Federal. Eles protestavam contra uma decisão do STF que excluía suboficiais de se candidatarem em eleições.

No dia, Jango não estava na capital e a revolta só foi contida 12 horas depois. "Então a direita pensa: se um punhado de sargentos toma a capital da República, o que não fará a ala janguista do Exército, generais com comando de tropa? É a partir daí que a imprensa começa a hostilizar Goulart", diz Ferreira.

Em outubro, Jango tentou implantar o estado de sítio, o que permitiria a ele derrubar os governadores Adhemar de Barros (São Paulo) e Carlos Lacerda (Guanabara). Apesar do fracasso, a manobra intensificou a oposição dos dois ao presidente, que a partir daí começa a buscar apoio na militância de esquerda.

O terceiro lance se deu no dia 13 de março, quando Jango fez um comício na Central do Brasil, no Rio. "Ali, ele selou aliança com as esquerdas e o movimento sindical. Mas é além disso: ele ia governar o país com o apoio das esquerdas. Para as direitas, era algo absolutamente intolerável."

A "gota d'água", na avaliação de Ferreira, se deu em  25 de março de 1964, quando marinheiros se rebelaram contra a cúpula da Marinha no Rio, exigindo melhores condições de trabalho e apoiando as reformas de base propostas por Goulart. O presidente anistiou os rebelados, contrariando as Forças Armadas, que viram no aval uma quebra da hierarquia e da disciplina.

O historiador Marcos Napolitano sustenta que a crise política de Jango se deu em razão da dificuldade de um Congresso "conservador" em incorporar demandas sociais. Enquanto Jango propunha um governo reformista, a maioria dos parlamentares desejava um projeto "modernizante também, mas excludente".

"No fundo são dois projetos de país inconciliáveis. Eles bateram de frente em 1964. As instituições não conseguiram absorver demandas sociais", disse. "E aí o golpe acabou sendo a opção de muitos atores, inclusive institucionais", completou o historiador.

Tradição de intervenções militares
Marco Antonio Villa, por sua vez, observa que, desde o século 19, intervenções militares se tornaram uma "tradição" no Brasil em momentos de crise política. A própria Proclamação da República, em 1889, foi fruto de um golpe militar. Na década de 20, as "revoltas tenentistas" desgastariam a República Velha, levando Getúlio Vargas a tomar o poder em 1930. Os militares seriam também decisivos em 1937, na instalação do Estado Novo, e em 1955, para garantir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.

Villa lembra que na época de Jango não havia apenas um projeto de golpe. "Eram vários, da direita e vários da esquerda, com a democracia atacada pelos dois lados", diz o historiador, citando planos do Partido Comunista, de militares ligados a Leonel Brizola, das Ligas Camponesas. "A luta armada já era preparada antes de 1964, por influência da Revolução Cubana, para se chegar ao poder pelas armas", diz.

Para o historiador, o próprio Jango planejava um golpe ao propor a formação de uma Constituinte que reformasse a Constituição e permitisse a reeleição. Mas para Villa, a intenção de Goulart não era implantar uma ditadura de viés comunista.

"O que estava na cabeça do Jango não era um golpe comunista. Era repetir 1937 em 1964, dar um golpe e com muita referência latino-americana, o velho caudilhismo latino-americano".

Jorge Ferreira diz que a insatisfação de governadores e empresários, não apenas com a aproximação de Jango com as esquerdas, mas também com a crescente inflação em 1964, levaria a um quadro de radicalização. O golpe arquitetado pelos conservadores, porém, deveria apenas depor Jango. A ditadura ao longo dos 21 anos seguintes não estava nos planos.

"Preferiram chamar os militares para resolver o problema. A imprensa, os partidos políticos, o presidente do Congresso, a Igreja chamou os militares. Chamou e eles foram. E quando chegaram, não quiseram sair mais."

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