01/04/2014 09h33 - Atualizado em 07/04/2014 11h13

Professores deixam escolas no Haiti para trabalhar até 15h por dia em SP

Em Campinas, educadores trocaram lousa pelo balcão de lanchonete.
G1 produz série sobre as relações da cidade com o país do Caribe.

Lana Torres*Do G1 Campinas e Região, em Porto Príncipe

Educação em crise no Haiti faz professores migrarem para Campinas (Foto: Lana Torres / G1)Menina de uniforme colorido e penteado no cabelo durante aula na periferia(Foto: Lana Torres / G1)

Eles trocaram as salas de aula do Haiti pelo balcão de uma das redes de fast food mais famosas do mundo, em Campinas (SP). Das lições de matemática, ficou para Frantz, Stanley e Jean apenas a prática: calcular o troco do hambúrguer, somar o salário dos dois empregos, subtrair do dia a jornada de até 15 horas, dividir a casa de quatro quartos entre cinco e multiplicar as esperanças após a fuga de um país devastado para a terceira maior cidade do estado mais rico do Brasil. E eles não são os únicos. Com a educação em crise, agentes de ensino ajudam a engrossar as estatísticas de imigrantes haitianos no interior de São Paulo.

O sistema de ensino, assim como quase tudo no Haiti, entrou em colapso após o terremoto de 2010, que deixou pelo menos 200 mil mortos e 1,5 milhão de desalojados. Com salários baixos e poucas escolas de pé, restaram raras oportunidades aos mestres haitianos, que se renderam ao movimento migratório.

"Isso causa prejuízos tremendos. O que acontece no Haiti é que você cria uma situação que é uma espécie de dança infernal, em que os melhores quadros vão embora. Isso significa uma situação de precarização crescente no próprio país", explica o sociólogo da Unicamp, Omar Ribeiro Thomaz, que estuda o país há 16 anos.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Campinas, nos últimos 10 meses, foram emitidas 123 carteiras de trabalho para refugiados do Haiti que vieram em busca de oportunidades na região. Só em fevereiro, quando segundo o gerente regional do trabalho, Sebastião Jesus da Silva, houve um "boom" na procura, foram 55 documentos expedidos. "Muitos mencionam as obras do Aeroporto de Viracopos como uma das oportunidades que os atraíram para cá. Alguns costumam chegar sem ter nem onde ficar", explica Silva.

Da lousa ao caixa
Frantz, de 35 anos, conta que, mesmo com emprego de professor de matemática em uma escola pública de Porto Príncipe, a precariedade do trabalho e a falta de oportunidades no Haiti o motivaram a buscar meios de viajar para o Brasil. Em Campinas, com a ajuda de um amigo, ele conseguiu emprego na rede de lanchonetes Mc Donalds, onde exerce hoje a função de caixa.

“Quando eu cheguei, não falava nada da língua portuguesa. Fiz um pouco de aula, eu fui crescendo, aprendendo e fui promovido. Mas o salário não é grande e eu trabalho muito, em dois lugares. Não tenho tempo para mais nada”, conta o rapaz, que divide a casa em Barão Geraldo com a esposa, um amigo e um segundo casal, que agora também tem um bebê de 4 meses.

À exceção das mulheres, todos os moradores da espécie de república dos haitianos em Campinas têm dois empregos para conseguir pagar as contas e ainda enviar ajuda à família. O dia para eles começa antes de clarear, repondo estoque em um supermercado, e só termina depois que escurece, vendendo hambúrguer na lanchonete. A rotina, admitem, não é fácil, mas eles sorriem mais do que reclamam e, na medida do possível, ainda se empenham para conseguir trazer os amigos e parentes que deixaram na terra natal.

Educação em crise no Haiti faz professores migrarem para Campinas (Foto: Lana Torres / G1)Mulher leva crianças uniformizadas para a escola de Porto Príncipe (Foto: Lana Torres / G1)

Plano C
A mais de cinco mil quilômetros daqui, Abelard Kemmplé, também professor de matemática, arruma as malas em Porto Príncipe para um plano C na sua vida. Após o terremoto, ele trocou o giz e os livros pela tesoura. Conseguiu emprego de barbeiro na base do Exército brasileiro no Forte Nacional, onde, conta, corta até 25 cabelos de militares por dia no salão improvisado na área externa da companhia. Ele manuseia a máquina de barbear ao som de um radinho de pilha. Entre uma música e outra, no bate-papo com a “clientela” tupiniquim, ele aprendeu a língua portuguesa e agora vai tentar a sorte no Brasil.

“Tenho visto permanente e viajo em abril. Eu sou professor, falo português e francês e aceito fazer qualquer coisa. Qualquer coisa. Só preciso de um lugar para ficar aí em São Paulo”, diz em um tom de voz que mescla desespero e esperança. Kemmplé viaja com destino certo, mas ainda sem saber como fará para sobreviver no início da empreitada.

Os professores que estão ficando no Haiti têm muita coragem para trabalhar. Não estão ficando porque esperam um futuro melhor no setor da educação, mas porque não tem outra alternativa"
Dieunane Antoine, diretora de escola no Haiti

Sobreviventes
O G1 visitou as instalações de uma escola na periferia de Porto Príncipe em busca da resposta à pergunta que quase todos se fazem ao conhecer a história de Abelard, Frantz, Stanley e Jean: Por quê? As paredes danificadas, a quadra de chão batido, o quadro negro desgastado e a falta de iluminação, ventilação e móveis nas salas de aula falariam por si só. Mas a diretora adjunta da escola, Dieunane Antoine, usa sujeito, verbo e predicado para justificar a fuga desesperada dos colegas de profissão.

“O governo não oferece vantagens para a área educativa. Os que estão ficando no Haiti é porque têm muita coragem para trabalhar. Não estão ficando porque esperam um futuro melhor no setor da educação. Os que ficam, ficam porque não tem outra alternativa”, desabafa.

O sociólogo da Unicamp explica que a crise política que se arrasta há tempos no país se refletiu diretamente no sistema educacional. "O desmantelamento do estado significou o fim da escola pública no Haiti e a precarização total e absoluta da educação. Manter os filhos na escola atualmente exige um esforço brutal da família”, afirma o professor universitário.

Educação em crise no Haiti faz professores migrarem para Campinas (Foto: Lana Torres / G1)Sem proteção, ave ocupa mesa dos estudantes em
escola do Haiti (Foto: Lana Torres / G1)

Mensalidade
Thomaz explica que a associação que fazemos no Brasil de que escola pública é gratuita e escola particular é cara e boa não vale para o Haiti. Naquela nação, paga-se para estudar independentemente do tipo de instituição de ensino. Além disso, colégios particulares não são garantia de qualidade, infraestrutura e pessoal suficientes.

Na escola comandanda por Dieunane, por exemplo, apesar da falta de estrutura, os pais das crianças devem desembolsar no início do ano letivo mil gourdes, que correspondem a aproximadamente a 22 dólares para conseguir matricular seus filhos. Apesar do valor soar quase simbólico, a diretora conta que muitos haitianos deixam de frequentar um colégio por não ter condições de assumir a quantia.

“O nível da educação no Haiti hoje é triste por conta dos problemas que nós encontramos pelo caminho para ensinar. Há crianças que têm muita vontade para vir para a escola, mas não podem por falta de economias”, falou.

Educação em crise no Haiti faz professores migrarem para Campinas (Foto: Lana Torres / G1)Estudantes aproveitam um dos únicos postes de
luz para fazer lição na rua (Foto: Lana Torres / G1)

Culto à educação
Apesar da ausência de políticas públicas para garantir ensino a todos, existe entre a população uma relação cultural muito respeitosa com as escolas. Exemplo disso é que, em meio à falta de saneamento e água, os haitianos não abrem mão dos uniformes absolutamente limpos e das fitas engomadas no cabelo. "Se não estiver com tudo limpo e arrumado, nem entra na escola", conta uma haitiana.

Um passeio noturno pelas ruas de Cité Soleil, região mais miserável do Haiti, revela mais um indício desta devoção aos estudos. Sem acesso à energia elétrica, um grupo de estudantes aproveita um dos poucos postes de iluminação do bairro para fazer a lição de casa. Com menos de cinco anos de idade, um deles se acomoda em um caixote de madeira para estudar.

Educação em crise no Haiti faz professores migrarem para Campinas (Foto: Lana Torres / G1)Garoto exibe trabalho feito em escola do Haiti  (Foto: Lana Torres / G1)

* A repórter viajou a convite do Ministério da Defesa.

 

 

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