Rio

Em campanha, Paes tenta vincular sua imagem às transformações feitas por Pereira Passos

Ex-prefeito permeia a imaginação do atual, que fincou, no reformado Jardim do Valongo, uma placa em homenagem ao colega do passado, como se ele estivesse inaugurando algo

Ator com roupas de Passos ao lado do prefeito
Foto: Marcos Tristão / O Globo
Ator com roupas de Passos ao lado do prefeito Foto: Marcos Tristão / O Globo

RIO - Por pouco, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, não inaugurou a primeira fase das obras da Zona Portuária, no dia 1º, fantasiado — com roupas de época — de ex-prefeito Francisco Pereira Passos. A ideia era incorporar, de forma teatral, o espírito do responsável pela maior reforma urbana já vista no Rio. Aconselhado por assessores e a poucos dias do início da campanha eleitoral, Paes, candidato à reeleição, desistiu da ideia. Coube a um ator a tarefa de representar o ex-prefeito.

Pereira Passos (1902-1906) permeia a imaginação de Paes, que fincou, no reformado Jardim do Valongo, uma placa em homenagem ao colega do passado, como se ele estivesse inaugurando algo.

— Isso (a fantasia) foi de brincadeira — desconversa o prefeito, dias depois, ao falar sobre como gostaria de ser lembrado: — Um urbanista à la Pereira Passos com um coração à la Pedro Ernesto (que foi interventor entre 1931 e 1935 e prefeito de 1935 a 1936, lembrado por grandes feitos na saúde e na educação). Sob o ponto de vista da modernização da cidade, de grandes intervenções que possam melhorar e recuperar o Rio, acho que tem muita coisa acontecendo como aconteceu no governo Passos.

As cidades de 1906 (último ano do governo Pereira Passos) e de 2012 são muito diferentes, e comparar períodos assim, dizem historiadores, é sempre arriscado. Paralelos entre os dois momentos, no entanto, puderam ser traçados na tentativa de avaliar as referências do prefeito.

A começar pela remoção de habitações. Pereira Passos governou para cerca de 800 mil habitantes — cerca de 20 mil deles, de acordo com o historiador Milton Teixeira, perderam suas moradias com as demolições do bota-abaixo, como ficou conhecido o plano de obras do senhor de quase 70 anos que, unido ao presidente Rodrigues Alves, mudou o rumo do Rio. Hoje, são 6,3 milhões de moradores na capital fluminense, e, desde 2009, 18 mil famílias — número proporcionalmente inferior — já foram reassentadas, num cálculo da Secretaria Municipal de Habitação que inclui transferências por obras e riscos ambientais.

Observadas as circunstâncias de cada período, dizem especialistas, as remoções ou reassentamentos de ontem e de hoje são diferentes, embora carreguem traços de memória ainda latentes na população, principalmente a de baixa renda. Críticas de movimentos sociais, impensáveis outrora, já começaram a surgir. O Comitê Popular da Copa, entidade que reúne moradores, ONGs e pesquisadores para discutir as mudanças urbanas no Rio, calcula que 30 mil pessoas foram ou serão removidas de suas casas, em 24 locais. Para o comitê, são, até agora, 7.185 famílias (1.860 já retiradas e 5.325 em vias de). As resistências giram em torno da obrigação, em vários casos, de uma mudança indesejada de bairro, geralmente para uma região distante.

— O Pereira Passos talvez tenha sido marcado pelo bloco mais dramático. Tudo foi feito de uma maneira inviável, que hoje seria barrada por mandados judiciais. Ele não foi eleito. Mandava tirar as pessoas, o presidente dava apoio e pronto. Mas era uma situação calamitosa, com febre amarela e varíola. Passos transformou a cidade, mas a população sofreu, muitas pessoas foram deslocadas — explica o historiador e professor da UFRJ José Murilo de Carvalho. — Hoje seria impensável fazer algo na mesma proporção.

O historiador Milton Teixeira destaca as diferenças entre as reformas.

— Não há como comparar. Pereira Passos mudou a ordenação da cidade, definiu o Centro como local de trabalho, a Zona Sul como moradia da elite e a Zona Norte, dos trabalhadores. Paes jamais fará isso, as novas obras não estão buscando reordenar a cidade. Além disso, Pereira Passos era um ditador, um déspota. Nem na ditadura militar poderia haver um Pereira Passos — diz ele, que fala sobre Pedro Ernesto, também citado pelo atual prefeito: — A construção da escola era só consequência. Foram criados um planos de formação, de cargos e salários e de conteúdo para os professores. Gostaria que ele (Paes) fizesse alguma reforma no ensino do Rio.

Soraya Silveira Simões, antropóloga do Ippur e pesquisadora do LeMetro/IFCS/UFRJ, afirma que há pontos discutíveis sobre a ideia do bem comum:

— Existe um processo vertiginoso de estabelecimento de um tipo de modo de morar que privilegia os condomínios com desprezo à ideia de que a vizinhança é importante. O universo acadêmico já aponta, desde os anos 50, que o argumento do desenvolvimento é muito controverso.

Paes rejeita o que considera um “senão” de Passos:

— Fiz questão de inaugurar as obras do porto a partir do Cais e do Jardim do Valongo, para destacar essa diferença, valorizar a história da população que ali está e ali chegou. Queremos muita gente morando na Zona Portuária.

Reportagem publicada no vespertino para tablet O GLOBO A MAIS