O Brasil se “fifaliza”

A canção oficial da Copa 2014, “We are one”, retrata o Brasil como um país latino, glamouroso e totalmente irreal

LUÍS ANTÔNIO GIRON
10/04/2014 08h00 - Atualizado em 11/04/2014 11h34
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O rapper americano Pitbull e a cantora brasileira Cláudia Leitte, em sessão de fotos com a bola oficial da Copa do Mundo (Foto: Buda Mendes - FIFA/FIFA via Getty Images)

Vamos bailar la conga o la waka-waka? No, por favor! O som cool do momento é o reggaton “We are one (Ole ola)”, de Pitbull, o rapper de Miami que contagiou o mundo com um tipo de mistura dançante hoje copiado por todos. Trata-se da canção oficial da Copa do Mundo do Brasil 2014, a música que puxa o álbum One Love, One Rhythm – The 2014 FIFA World Cup Official Album (Fifa-Sonymusic), com 17 faixas, a ser lançado nas próximas semanas. Pitbull divide a gravação com Jennifer Lopez e a brasileira Claudia Leitte (sussurrando “lepo lepo” no refrão). A música desagradou a muita gente por não ser representativa da cultura nacional. Mas alguém espera mais da Fifa, que em 2010 africanizou Shakira? Miamizar o Brasil não é surpresa.

Deixemos o nativismo de lado. “We are one” ensina menos sobre a essência do Brasil do que a forma como a Fifa compreende aquilo que a Federação pensa ser o Brasil. Para isso, conta  com a ajuda do cast da gravadora Sony. E é uma compreensão que ressalta o exotismo latino do antigo país do futebol, suas belezas naturais, corpos voluptuosos e muita salsa. As outras faixas contêm surpresas como Sergio Mendes e Carlinhos Brown cantando “One nation”, Arlindo Cruz exaltando o mascote da Copa em “Tatu bom de bola”, a nova versão de Ricky Martin para “Vida” e, claro, “Lepo lepo”, de Psirico. Mas talvez o espanto maior ainda está por vir. Mal posso escutar o “Tico-tico” por Bebel e Lang Lang. Será o esplendor da reduplicação. A cantora e filha de João Gilberto e o elétrico pianista (acústico) chinês vão trazer nuances impensáveis ao clássico “Tico-tico no fubá” de Zequinha de Abreu.

Ao ouvir a coletânea, chego à conclusão de que o celebrado “padrão Fifa” é a Fantástica Fábrica de Estereótipos. Tenho medo de um Brasil “fifalizado” conforme anunciado no álbum. O Brasil parece a imagem de um Eldorado com cara de Nova Miami. Felizmente, é uma imagem falsa. Ou não?

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Talvez eu esteja enganado e o Brasil só anseie em ser como é mesmo o que a Fifa quer que ele seja. O Brasil se fifaliza. O fato de os produtores da coletânea terem escolhido Claudia Leitte em detrimento da inimiga Ivete Sangalo – a cantora mais popular do Brasil há duas décadas – é menos um julgamento estético do que razões contratuais entre a Fifa e a Sony. Ivete pertence à gravadora Universal, rival da Sony, e isso diz tudo sobre os critérios de escolha do elenco e do repertório da coletânea – ou, como diríamos em português fifalizado, da setlist e da playlist. Não é uma escolha por mérito, e sim por conveniência.

Não tenho nada contra a composição assinada por Pitbull. É a prova da força pegajosa dos produtores musicais de Miami. Eles são os responsáveis pela nova onda latina que varre o mundo para debaixo do tapete do velho bom gosto. O reggaton é uma espécie de bebida isotônica tóxica cuja fórmula contém salsa, merengue, rap, funk e o que puder ser adicionado. Bomba em qualquer pista. Gruda para sempre nos ouvidos mais apurados.

A mensagem dos versos da canção é igualmente isotônica e de um visgo ecumênico comovente: “Sete continentes, 195 países/ Não três, mas um mundo só/ Eu viajei pelo mundo/ Nunca vi tantas coisas/ Mesmo que possamos ser diferentes/ Somos realmente a mesma coisa.” Os versos nos trazem uma lição de domesticação. Nada mais reconfortante que saber que a humanidade pode ser nivelada assim por baixo com tanta singeleza, não é mesmo? Bonito assistir à grande família humana a produzir detritos com euforia e total comunhão em estádios lotados – sem contar a massa que estará fora deles, babando de emoção. Lindo demais. Quero só ver se a Seleção Brasileira não ganhar.

Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras



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