Vida

O movimento sufragista – ou parte dele

O movimento sufragista – ou parte dele

O filme "As sufragistas" conta com vigor uma história poderosa, num ano em que as feministas fizeram barulho. E provoca polêmica por colocar na tela apenas mulheres brancas

NINA FINCO
23/12/2015 - 18h41 - Atualizado 23/12/2015 18h52

O ano de 2015 foi notável para as mulheres. Diante de ofensas e desrespeito, as brasileiras reagiram. Campanhas nas redes sociais, como #partocomrespeito, #primeiroassedio e #meuamigosecreto, escancararam os abusos machistas. O Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, relembrou a escritora francesa Simone de Beauvoir e exigiu que os candidatos se posicionassem sobre a violência contra a mulher. Nas ruas, passeatas clamaram pelo direito de acesso ao atendimento de saúde nos casos de aborto dentro da lei. No dia 24, a discussão feminista chega aos cinemas, com a estreia de As sufragistas. O filme britânico é corajoso e mostra com ineditismo a luta das mulheres pelo direito ao voto. Mas provocou polêmica por retratar na tela apenas mulheres brancas. Será que a diretora Sarah Gravon, ela também feminista, cometeu uma impropriedade histórica?

sufragistas (Foto: Divulgação)

O movimento sufragista inglês ganhou força no início do século XX. Após décadas de manifestações pacíficas sem resultado, um grupo militante passou a coordenar atos de insubordinação social, quebrando vidraças e explodindo caixas de correio. No filme, Sarah Gravon e a roteirista Abi Morgan usaram Maud Watts (Carey Mulligan), uma personagem fictícia, para contar a história real de muitas mulheres: o despertar para o fato de que recebem tratamento inferior ao dispensado aos homens. Maud, mãe e trabalhadora de uma lavanderia, sem educação formal nem formação política, envolve-se com o sufragismo e enfrenta a resistência da polícia e do marido.

A truculência contra as sufragistas é retratada sem censura. Elas eram agredidas nas ruas durante os protestos e iam para a prisão. Nas fábricas e lavanderias, onde recebiam menos que os homens e trabalhavam mais, sobravam insalubridade e abusos sexuais. Some a história forte às atuações impecáveis de Carey, Helena Bonhan-Carter, Anne-Marie Duff e Meryl Streep, numa aparição rápida, mas importante (no papel de Emmeline Pankhurst, fundadora da União Política e Social das Mulheres). As sufragistas é um ótimo filme e deve agradar aos olheiros do Oscar. No entanto, a decisão de usar um elenco totalmente branco (mesmo entre os figurantes) realmente dá a sensação de história contada pela metade.

>> Meryl Streep envia carta ao Congresso americano exigindo igualdade de direitos

>> Igualdade feminina é valor que não se mede em dinheiro

Não é surpreendente que um movimento surgido num país de maioria branca fosse encabeçado por mulheres letradas, de classe média ou alta -- e brancas. Emmeline Pankhurst, por exemplo, vinha de uma família politicamente ativa (inclusive as mulheres) e casou-se com um famoso advogado dos direitos femininos. Mas havia minorias étnicas no movimento, como as indianas. A princesa Sophia Duleep Singh, afilhada da rainha Vitória, foi uma sufragista proeminente, membro da União Política e Social das Mulheres e amiga de Pankhurst. “A vida dela deveria ter sido repleta de festas e privilégio. Ela se sacrificou para lutar pelo voto das britânicas e pela emancipação das indianas”, afirma Anita Anand, autora do livro Sophia: princess, suffragette, revolutionary. A ausência incomodou de maneira aguda uma parte do público que os criadores do filme esperavam atrair. “Esse filme não fará diferença para mim como mulher, feminista e negra”, afirma Luma de Lima, militante feminista brasileira e educadora.

“Os registros do censo de início de 1900 não mostravam a diversidade étnica, mas, a julgar pelos nomes, evidências fotográficas e relatos escritos, parece que apenas duas mulheres de cor se juntaram ao movimento do Reino Unido”, disse, em entrevista, a diretora Sarah Gravon. Ela se refere à indiana Sophia e justificou sua exclusão por sua posição social. Como aristocrata, ela não representaria o foco do filme: as mulheres da classe trabalhadora, muito relevantes para o movimento. A mártir do sufragismo, Emily Davison, mal tinha dinheiro para ir à escola quando criança, enquanto Sophia viveu os privilégios de ser princesa durante anos.

Sarah também afirmou que o movimento sufragista britânico teve uma representação muito diferente do americano -- foi justamente nos Estados Unidos que o filme recebeu suas maiores críticas. “Nos Estados Unidos, havia muitas mulheres de cor envolvidas no movimento, algumas excluídas, outras não. Na Inglaterra, não foi assim. Nós tivemos bolsões de imigração, mas foi mais tarde, durante a 2ª guerra, que a Inglaterra realmente passou a se transformar no que conhecemos hoje”, afirmou. A razão para a ausência de mulheres indianas ou negras entre as sufragistas é sustentável. Mas e a carência de figurantes não-brancos? Maud mora e trabalha no East End, uma área famosa no século XIX por sua superpopulação de pobres e imigrantes. No início dos anos 1900, havia entre 20 mil e 25 mil imigrantes negros na região. “Não mencionar pessoas não brancas foi uma escolha política. Isso traz consequências”, afirma Beatriz Accioly, antropóloga brasileira que pesquisa direitos, mulheres e justiça. “Essa posição é um problema pior em países que sofreram com a escravidão, como os Estados Unidos e o Brasil, onde há movimentos negros muito fortes, que lutam por representatividade na mídia e na política.”

A divergência entre os contextos britânico, americano e latino mostrou-se ainda mais evidente durante a promoção do filme. Em uma sessão de fotos para a revista Time Out, as atrizes principais posavam com camisetas brancas com os dizeres: “Eu prefiro ser uma rebelde que uma escrava” – frase da própria Pankhurst. “A frase está fora de contexto”, afirma Mônica Karawejczyk, especialista nos movimentos que levaram ao voto feminino no Brasil. “Pankhurst queria expressar que preferia ser uma lutadora e descrita como uma rebelde, do que continuar a ser uma escrava dos homens e ficar à mercê das suas leis e suas vontades”. Para uma mulher branca como Pankhurst, ser impedida pelo marido e por outros homens de exercer qualquer direito era escravidão. Naquela época e lugar, a mulher negra não era incluída nessa luta, pois sua escravidão não era questionada nem pelas feministas. Hoje em dia, a citação não seria apropriada – por isso a polêmica.

Há ainda uma última escolha questionável que incomoda, no final do filme. Pouco antes de os créditos subirem, uma lista afirma que as mulheres americanas conseguiram o direito de voto em 1920. Na verdade, em alguns Estados, homens e mulheres negros foram impedidos de exercer esse direito até a década de 1960.

As sufragistas é o primeiro filme a retratar essa luta (a não ser que você conte o musical Marry Poppins, de 1964, que tem a questão do voto feminino como pano de fundo) -- e, portanto, um marco. Mulheres do mundo todo, sejam negras, brancas ou indianas, ganharam com a conquista das britânicas. Mas ao optar por mostrar apenas uma etnia, num período histórico -- o atual -- em que se pede por mais representação, o filme diminui o impacto que poderia causar. Não há apenas uma história do sufrágio. É uma história com muitos rostos diferentes. Pena que As sufragistas tenha pintado todos de branco.








especiais