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Esboço para uma decisão em três atos

seg, 07/07/14
por douglas.ceconello |
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(Foto: Reuters)

1. A vertigem (ou O tempo da loucura)

Até a lesão de Neymar, a trajetória do Brasil desde o início do Mundial era marcada por uma certa labirintite emocional, dos jogadores, da imprensa e da torcida. Entramos todos em uma espiral de tortura e tonteira, com nossa visão periférica buscando Barbosas reencarnados ou heróis inéditos. Foi a época da esquizofrenia – “Bati na porta do meu vizinho, que respondeu que não estava em casa. Temos que ser campeões, mas vamos cair nas oitavas de final”. Todos estávamos loucos. Dormíamos amarrados e atirávamos pedra em avião.

Em grande parte, a instabilidade emocional do time brasileiro, especialmente no início da Copa do Mundo, podia ser vinculada à pressão extrema de se ver obrigado a remendar a fissura histórica que desde 1950 só se alarga, mas talvez também acontecia por certa percepção VELADA, íntima e intransferível de cada um dos jogadores de que o time não estivesse à altura de um feito tão grandioso. A torcida, é claro, no começo de cada jogo, entrava em uma cápsula imune a versões alternativas da vida: enxergava em campo as onze camisas amarelas, cinco Copas do Mundo e apenas um desfecho possível.

Foi preciso Neymar cair no gramado do Castelão para acabar com a nossa vertigem. Porque hoje tudo mudou. O Brasil, não interessa o que aconteça, já está absolvido. Subitamente, nos tornamos mais compreensivos e oferecemos os dois ombros ao próximo, para que conforte sua desolação. Porque, em termos técnicos, praticamente todos no time de Scolari eram passíveis de substituição, exceto um. Justamente Neymar.

Caso a lesão de Neymar, por exemplo, tivesse acontecido ainda na fase de grupos, hoje a participação do Brasil nas semifinais já poderia ser considerada um verdadeiro milagre. Nesta Copa, entre os times que avançaram até as fases eliminatórias, a maioria costumava DELEGAR responsabilidades entre seus jogadores mais destacados. Menos o Brasil, que era apenas Neymar, e depois dele havia um vácuo, seguido de outro vácuo, de uma noite no deserto e depois mais cem folhas em branco, até chegarmos aos outros expoentes técnicos: a dupla de zaga, e contra a Alemanha apenas metade dela estará em campo.

Perder Neymar era o mais negro dos acontecimentos, o mais cinematográfico dos enredos e, portanto, de certa forma algum roteirista sádico escondido numa fresta de nosso CEREBELO já sabia que era inevitável. Mas de alguma forma a ausência de Neymar é a libertação de todos os outros jogadores. Nenhum deles mais corre o risco de repetir Barbosa. Mesmo a pior das derrotas será o menor dos fiascos. E qualquer vitória, por menos vistosa que seja, será uma epopeia. Não estamos mais saracoteando em um liquidificador de sentimentos antagônicos. Nossos pés estão no chão. Nossa esquizofrenia saiu de maca junto com Neymar.

2. A Comoção (ou A taça subiu aos céus, de helicóptero)

Exatamente neste ponto da TRAMA, no entanto, ergue-se uma circunstância peculiar e paradoxal. Após a lesão de Neymar, há um clima de profunda solidariedade da torcida em relação ao Brasil, um sentimento que lateja e certamente vai evoluir para transformar o Mineirão em um órgão vital e pulsante. Concordo com quem afirma que torcedor de Copa do Mundo é diferente do torcedor de clube – menos apaixonado, menos atuante e menos ENGAJADO. Menos torcedor, enfim.

Pois hoje, depois que um helicóptero carregou Neymar ao limbo e junto ABDUZIU nossa obrigação de ganhar a Copa, há uma atmosfera que parece contribuir para que este mesmo torcedor, que vai para o estádio colecionar copos e abanar para o telão enquanto Pinilla acerta o travessão no último minuto da prorrogação, se transforme naquele lunático que, desesperado e urgente, tenta impedir na base do grito que seu clube caia para a segunda divisão. Sentimento de comunidade, este é o nome, que, se não aparecer agora, jamais aparecerá entre a torcida brasileira de Copa do Mundo.

Este Mundial já era o mais árduo dos trabalhos mitológicos do Brasil em Mundiais, mais difícil até mesmo que acreditar em uma seleção treinada por Lazaroni: era obrigado a vencer porque está em casa, para costurar a história, pela memória de Barbosa, mas ao mesmo tempo nunca o Brasil esteve tão longe da sua escola de futebol, do estilo que impôs ao mundo. Hoje, a nostalgia do futuro definitivamente ficou para trás. Se o Brasil vencer, quanto mais feio jogar, tanto mais será inesquecível. E, neste quadro pintado com pinceladas instintivas, o torcedor se sente importante, e cogita até mesmo ser protagonista. E a sensação, bem, é de que talvez seja a hora de deixar o telão de lado e permanecer em pé e urrando coisas incompreensíveis.

3. O maçarico contra a pedra de gelo

Com ou sem Neymar, praticamente nenhuma seleção do mundo poderia se manter incólume ao imenso fogão a lenha em que vai se transformar o Mineirão, por força das circunstâncias. O grande problema é que uma das poucas camisas que não tremeria nesta situação é exatamente a Alemanha. Além de contar com uma equipe regular, com muitos destaques individuais, historicamente a esquadra germânica não se intimida diante das dificuldades, por maiores que sejam. A Alemanha, por exemplo, impediu que duas das maiores seleções de todos os tempos, Hungria de 1954 e Holanda de 1974, entrassem para o restrito panteão dos grandes campeões mundiais. Porque a Alemanha não respeita favoritos, carrosséis ou países-sede, nem a beleza no futebol, o sentimento das ruas ou o fluxo ideal da história.


(Foto: Getty Images)

Mas o Mal, mesmo que involuntário e circunstancial, usa disfarces singelos para nos persuadir. Desde que chegaram ao Brasil, os comandados de Joachim Löw empenharam-se de forma comovente a desmontar o mito da frieza germânica. Fixaram residência provisória em Santa Cruz Cabrália, na Bahia, interagiram com a população local, cantaram a plenos pulmões o hino do Bahia e inclusive comemoraram junto com os brasileiros a vitória do time de Felipão contra o Chile, nas oitavas de final. Os alemães, em suma, sentem-se em casa e por méritos próprios já levaram a taça de seleção mais carismática do Mundial. Ninguém como eles encarou de forma tão intensa a experiência de disputar e VIVER uma Copa do Mundo no país do futebol, com todas as circunstâncias que isto envolve. Como se não bastasse artimanhas tão sedutoras, nesta terça a Alemanha vai a campo com uma camisa do Flamengo. Gente cautelosa e calejada, experimentada no futebol, na convivência e no misticismo, já viu nisso indícios de tentativa de ludibriar os sentimentos brasileiros para angariar uma simpatia que os alemães jamais teriam se obedecessem sua imagem clássica de austeridade.

Porque em todas as vezes que entraram em campo os alemães deixaram de lado a recém-adquirida brasilidade e reencarnaram seu extremo poder de competição e o semblante imperturbável que já pulverizou sonhos e devastou seleções revolucionárias na história do futebol. Mesmo na verdadeira provação contra a Argélia, os germânicos venceram na base da persistência e de FLEUMA pela qual são tradicionalmente conhecidos. Mas nem a mais portentosa geleira resiste a um maçarico obstinado. O aquecimento global está aí de testemunha. E o que resta ao Brasil, portanto, sem Neymar, sem Thiago Silva, sem lenço e sem documento e nem meio-campo, é fazer o Mineirão abastecer a fornalha de carvão e manter-se em fogo alto e constante como quem amacia um hidrante até que carne de panela se torne. Porque pedra de gelo não se destrói quebrando, mas derretendo aos poucos.

Se estes são os três atos de uma tragédia ou de uma epopeia, vai depender muito da disposição de quem segura o maçarico, da quantidade de carvão que cada um dos torcedores no Mineirão consegue carregar.

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2 comentários sobre “Esboço para uma decisão em três atos”

  1. Ismael Lavallos disse:

    É tudo verdade! E, estranhamente, toda essa combinação de fatores joga uma visão leve e uma expectativa ABSURDA sobre o confronto! Todos com quem falei ontem e hoje estão confiantes, mas ao mesmo tempo, de \"sangue doce\". Queremos muitos, mas não estamos preocupados em perder…

    Parece briga de bêbado, mas os ÉBRIOS somos nós!

    Ademais, excelente texto, como de costume!

  2. Kaio disse:

    Um dos melhores textos que li nestas semanas de Copa do Mundo. Admito que agora me sinto um pouco justificado por estar torcendo para a Alemanha vencer o jogo de hoje. Queria ver a geração treinada por Löw finalmente ganhar o título que merece há 8 anos.



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